Procurar a pulsação do Mundo, escondida em lugares reservados aos que nasceram com a sensibilidade para acolher o vazio enquanto território de escuta e criação, é talvez a demanda de qualquer artista.
Piet Mondriant hesitou entre ser sacerdote e pintor, Kandinsky defendeu acerrimamente a “necessidade interior” na produção artística e a procura de “tesouros invisíveis” como forma de elevar a “pirâmide espiritual que alcançará o Céu”, enquanto Malévitch encarnou a recusa da figuração, procurando no Suprematismo a estrada para a representação de algo que fosse universal.
Desde sempre, e provavelmente para sempre, os artistas deram a ver uma certa forma de transcendência. Das artes plásticas à música, passando pela literatura, pelo teatro ou pelo cinema pressente-se a representação de algo que, não estando nunca lá, está sempre.
Os artistas são o mais próximo que temos de profetas, arrancando pincelada a pincelada, nota a nota, palavra a palavra, o que, não estando lá, está lá sempre, e para sempre
Kandinsky chamava-lhe “o sentir íntimo de um período”, Soulages o outrenoir, Rui Chafes (RC) refere-se a “uma nostalgia do ideal” e Delfim Sardo a “exterioridades transcendentes”.
O indizível, o invisível, o inaudível… o imortal. Apesar de, como escreveu Kandinsky, toda a obra de arte ser “filha do seu tempo e, muitas vezes, a mãe dos nossos sentimentos”, ela ultrapassa-o, renascendo de cada vez que ressoa em almas a séculos de distância. Nesse sentido, os artistas são o mais próximo que temos de profetas, arrancando pincelada a pincelada, nota a nota, palavra a palavra, o que, não estando lá, está lá sempre, e para sempre.
Num tempo em que a tecnologia parece querer, cada vez mais, destronar a criatividade, substituindo-a por uma perfeição técnica, infalível e desumana, o JL decidiu dedicar o tema da presente edição à relação entre Espiritualidade e Arte, à qual a fragilidade humana é ainda indispensável, alimentada por uma procura diametralmente oposta à dos algoritmos digitais: a do invisível.
A relação entre Espiritualidade e Arte não está perdida e prova disso são as numerosas exposições, instalações e obras que, desde o início do ano, se têm inaugurado no nosso país.
A floresta catedral de Ernesto Neto
Do Brasil chegou Nosso Barco Tambor Terra, instalação de Ernesto Neto (EN), patente na galeria oval do MAAT até 7 de outubro. A estrutura de crochet, realizada com chitas sanjoaninas e mantida em equilíbrio por uma série de pesos e contrapesos, feitos de sacos de especiarias, levanta-se do chão recordando, simultaneamente, uma floresta tropical e uma catedral erigida à contemplação, à Natureza, a deuses e deusas ancestrais.
Através dela, somos levados a refletir sobre o atual “desequilíbrio gigantesco que existe na sociedade, que pesa para todo o mundo”. Tal como com o Planeta Terra, explica EN, “se o visitante puxa demais a escultura, começa a fragilizá-la e aí, talvez amanhã, quando ele chegar, ela não esteja como estava antes”.
No interior na instalação, circundado de referências a diversas práticas religiosas típicas do Brasil e ao som dos tambores que parecem brotar do chão, o corpo une-se à vibração do espírito e agradece-se o dom da vida.
Incapaz de conceber corpo e mente como entidades separadas, EN procurou criar uma peça que ajudasse “a arte europeia, muito mental,” a aceitar “a alegria, a graça da vida e o facto de esta ser uma dádiva”.
A operação de restauro da Igreja de Santa Isabel
Diametralmente oposta no que respeita a “religiosidade”, mas profundamente de acordo com a ideia de que matéria e espírito são indissociáveis, é Fernanda Fragateiro (FF).
Com vários projetos realizados, no passado, em espaços de culto, a artista foi responsável pela pintura mural da Capela da Porta Dourada, na Igreja de Santa Isabel, inaugurada em maio deste ano e criada a convite do arqº João Appleton e do padre José Manuel Pereira de Almeida, no âmbito da operação de restauro do espaço arquitetónico da igreja.
Curiosamente, a pintura, uma sequência de arcos que vão do branco ao preto, passando por uma série de gradações de cinzento, recorda a depuração de certas formas usadas por Malévitch enquanto procurava representar uma universalidade utópica.
Poder-se-iam tecer dezenas de interpretações. A própria artista recorda como “uma pintura tão singela” foi capaz de suscitar tamanha “diversidade de leituras”. Se o patriarca de Lisboa encontrou “uma série de referências relacionadas com temas importantes para a Igreja Católica”, para FF “o espiritual está na seriedade do trabalho de cada um dos envolvidos neste processo, na vontade de contribuirmos para o restauro deste belo espaço arquitetónico, e, obviamente, no respeito pelo passado enquanto se pensa no presente e se deseja o futuro”.
Da mesma operação de restauro havia também tomado parte, em 2013, Michael Biberstein, autor do fresco que ocupa o teto da igreja, o qual pintou apenas em maqueta, pois acabaria por morrer antes de começar a sua maior, e última, obra.
A 20 metros do chão, os 800 m2 do Céu de Santa Isabel recebem as preces de quem se senta nos bancos corridos, devolvendo-as, quem sabe, à obra de FF, num diálogo silencioso e eterno, reservado às obras de arte e alimentado pelos muitos significados que delas florescem.
O facto de a maioria das interpretações jamais ter cruzado a mente dos autores no momento da criação, é apenas a prova de que talvez Schumann estivesse certo ao afirmar que a vocação de um artista é aquela de “projetar a luz nas profundidades do coração humano”.
Um mapa para a contemplação
Os deuses e o amor à Natureza, de Ernesto Neto, a importância dada à matéria e ao espaço, por Fernanda Fragateiro, e a aura “celestial” da paleta cromática do céu de Biberstein, ecoam em Evidence, outra exposição que, também este ano, se inaugurou em Lisboa.
Inspirados pelas viagens que os poetas Arthur Rimbaud, Antonin Artaud e René Daumal fizeram, a fim de encontrarem lugares que os ajudassem a desaparecer e a transcender a sua própria existência, o Sounwalk Collective e Patti Smith criaram uma instalação, patente no CCB até ao próximo dia 15 de setembro, que é um autêntico mapa a quatro dimensões, no qual desenhos, fotografias, pedaços de tecido, poemas recitados, peças musicais, esculturas de madeira, vídeos de rituais tribais, de cidades e de paisagens, sons da natureza e até um canteiro de cogumelos alucinogénios dão forma ao amor à poesia, à beleza, ao caos e à capacidade de se entregar ao espanto e ao assombro, que assaltam todos os que se detêm a contemplar o Mundo.
No seu romance inacabado, O Monte Análogo, escrito entre 1939 e 1944, René Daumal, uma das inspirações para a exposição, imagina uma ascensão metafísica em que o tema e o vocabulário do montanhismo servem de enquadramento para uma viagem interior em busca de “outra montanha”, “o caminho que une o Céu e a Terra”.
Memento Mori
Convicto de que “a porta para o invisível deve ser visível”, Daumal ter-se-ia identificado, por sua vez, com as reflexões que Manuel Tainha e Matilde Travassos levaram, de 23 de março a 26 de abril deste ano, à galeria Plato, em Évora, com Abalo.
Os artistas procuraram criar um memento mori constante de uma morte que é perda, não necessariamente da vida biológica, mas de uma parte de si mesmo. A morte enquanto fim de um ciclo, sucedido de um inevitável período de luto, durante o qual cada um trava as lutas necessárias para atingir uma espécie de ressurreição indispensável a quem quer seguir vivo na vida.
Cada ressurreição é única, irrepetível, profundamente relacionada com a causa de cada uma das pequenas mortes que, fazendo de nós mais humanos, simultaneamente nos revelam forças sobre-humanas que tantas vezes nem sabíamos ter.
Enquanto Manuel Tainha, através de pinturas e de esculturas de alumínio, tentou “congelar processos intermédios” e o caráter irreplicável, quase sagrado, de cada ressurreição, que é momento fugaz, mas intenso, Matilde Travassos ilustrou, através da fotografia, várias formas de encarar a morte; da dor, choro e luto de quem fica, representados na imagem de uma carpideira de Portalegre, ao medo de tudo o que nos pode matar, como uma serpente ou uma operação ao coração.
Defronte a uma tela destinada a modificar-se ao longo dos anos ou à imagem de um coração aberto, percebemos que, na tentativa de evitarmos a morte, acabamos, tantas vezes, por nos limitarmos a resistir à vida, sucumbindo ao destino que Rui Chafes traça para os covardes em Entre o Céu e a Terra: “Que ninguém se iluda, […] não têm acesso à Beleza”.
Efetivamente, o sentimento do Belo parece ressoar em nós apenas quando nos entregamos sem reserva. Contemplar a beleza do mundo e, sobretudo, reconhecê-la, não será mais do que reconhecer a beleza que já carregamos dentro, tendo a ousadia de deixá-la ocupar mais espaço do que o individualismo que nos fecha em nós próprios e nos impede de “abrir a cabeça para outros lugares”, socorrendo-nos das palavras de Samuel Silva (ver entrevista).
Mergulhar no silêncio
O artista inaugurou, no início do verão, Rémiges Cansadas, exposição inspirada pelo poema-objeto País de Deus, escrito pelo monge poeta Daniel Faria [1971-1999] que o ofereceu um amigo, em 1991, como presente do seu primeiro passo para o sacerdócio.
Rémiges como as penas que orientam o voo dos pássaros. Cansadas como se sentiria qualquer um após um “voo” de cerca de cinco horas através de um poema com 40 metros, escrito em papel de caixa registadora, religiosamente enrolado dentro de um pote de barro, onde em tempos se encontravam também pequenos búzios.
Patente na Galeria da Brotéria até ao próximo sábado, 7 de setembro, a mostra é dominada pelo silêncio e pelo convite à reflexão, num tentativa de “resumir a ideia de condição humana, do ser humano e da sua circunstância”.
Mergulhados na escuridão que engole as duas salas da Galeria da Brotéria, assalta-nos de novo o pensamento de que os artistas, crentes em Deus, em deuses, na Arte ou em si mesmos, são, no seu âmago, seres inquietos.
O ato de “procurar” parece unir as almas praticantes de um oficio que, antes de sê-lo, era já vocação. Aquela de mostrar possibilidades, não importa onde nem como, pois, regressando a Chafes, “se houver uma pessoa, uma só pessoa, que seja tocada, que se emocione, uma única, a arte será salva”.
Se houver uma pessoa, uma só pessoa, que seja tocada, que se emocione, uma única, a arte será salva
Rui Chafes – artista plástico