“Atinge-nos ao ler este livro uma chuva de palavras entranhas. Quando estamos ali, na boca do precipício, somos confrontadas com poemas feito esperança. Apercebemos que ao lado da bomba, um mar, sobre os escombros, uma dança, no exílio, um regresso, entre uma morte e uma morte, uma memória cai sem aviso nos nossos entes: ser Palestina também é ser poema”, escreve Shahd Wadi no prefácio de Se Eu Tiver de Morrer, uma antologia de poesia de resistência palestiniana do séc XXI, coletânea de poemas inéditos em Portugal, publicada pela Traça Edições.
São dezenas de poemas de autores que vivem na Palestina ou no exílio, com tradução de Margarida Vale de Gato, Ana Guimil, António Hess, Duvall McGregor, Joana Craveiro e Cobramor.
Publicam-se aqui dois desses poetas e ainda um inédito de Noor Hindi, de um livro que a Traça vai publicar em 2025. As vendas do livro revertem a favor das ONG Eye Witness Palestine e MECA For Peace.
Um livro de resistência
Apesar do precipitar do nascimento deste livro ter acontecido devido aos acontecimentos de 7 de outubro, a sua génese há muitos anos que passeava pela minha cabeça. Não só pela minha ligação pessoal com a cultura e poesia árabe, mas também pelo acompanhamento regular da situação da Palestina.
Conhecia algumas recolhas de poesia árabe traduzidas para outras línguas, inclusivamente em português, mas nenhuma que colocasse o foco nas novas gerações, nem tão pouco no seu potencial enquanto forma de resistência. Não queria, no entanto, que o aspeto panfletário se sobrepusesse ao carácter estético da seleção.
Sete de Outubro de 2023 foi um sábado e o fim de semana seguinte, incapaz de nada fazer, foi passado inteiramente a traduzir e editar uma fanzine online gratuita chamada Poesia de Resistência Palestiniana, com descarga e distribuição encorajadas. Uma vez concluída, contactei todas as pessoas de que me lembrei para a divulgar.
Sabia que o que tinha feito era pouco e ambicionava ter um livro que espelhasse verdadeiramente a ideia esplanada no título. Passei alguns meses em pesquisa, recolha e contactos e tentei transformar este projeto em algo comunitário, como faria sentido, convidando a Ana Guimil, o Duwall McGregor, o Fernando Hess, a Margarida Vale de Gato e a Joana Craveiro que contribuíram com algumas sugestões e traduções, o que tornou o livro mais completo e abrangente.
Decidi também que não estaria identificado quem teria traduzido o quê. Algumas pessoas que tentei contactar não mostraram interesse ou não deram resposta, apesar de publicamente se posicionarem pro-Palestina, algo que até agora não compreendo.
Uma vez feita a recolha e enquanto traduzia, percebi que faria sentido este ser um projeto de crowdfunding com os lucros a reverter para duas ONGs da Palestina: ONG EyeWitness Palestine e da MECA. Desta forma, além da ajuda financeira, estaríamos também a dar voz a um povo massacrado e, espero, a contribuir para a sobrevivência da sua cultura.
Afinal, o papel das editoras e dos autores não pode ser meramente o de promoção e venda de livros, sob pena de sermos coniventes com a predação capitalista da nossa cultura e por arrasto com a nossa autodestruição. Demasiado idealista para os dias que correm, bem sei, mas foi essa uma das principais razões pelas quais a Traça Edições nasceu.
Cobramor – editor e tradutor da Traça Edições
O que um habitante de Gaza deve fazer durante um ataque aéreo israelita
Apaga as luzes em todas as divisões senta-te no corredor interior da casa longe das janelas fica longe do fogão pára de pensar em fazer chá preto, tem uma garrafa de água por perto suficientemente grande para arrefecer o medo das crianças agarra numa mochila de criança e outras tralhas, brinquedos pequenos e o dinheiro que houver e os documentos de identificação e fotografias dos avós, das tias ou dos tios falecidos e o convite de casamento dos avós conservado durante muito tempo e se fores agricultor, coloca algumas sementes de morango num bolso e alguma de terra dovas o da varanda no outroe aguenta firme no número que estava no bolo do último aniversário. Posso arrancar a terra de mim como uma rolha?
Mosab Abu Toha
Ode
Edgewater Beach, 2019 para Kevin A noite, tão amena, que poderia apaixonar-me por qualquer coisa incluindo eu própria. Meus amores, vocês são os únicos a quem eu submeteria a minha brandura. A lua tão azul. O que é áureo é áureo. O que é real somos nós apesar de um país tão desolado, tão desperto, tão sepulcral. A nossa penumbra tão ruidosa como munições. Escuta. Até mesmo o oceano implora. Coloca as tuas mãos na areia, meu amigo. O melhor é que nós próprios nos enterremos. O que é pesado. O que é pesado? Torna-se luz.
Noor Hindi
Que se foda a tua palestra sobre a arte, o meu povo está a morrer
Os colonizadores escrevem sobre flores. Eu conto-te como as crianças atiram pedras contra os tanques israelitas segundos antes de se transformarem em margaridas. Quero ser como aqueles poetas que se interessam pela lua. Os palestinianos não veem a lua das celas e das cadeias. É tão bela, a lua. São tão belas, as flores. Colho flores para o meu falecido pai quando estou triste. Ele vê a Al Jazeera o dia inteiro. Gostava que a Jessica parasse de me enviar mensagens de feliz Ramadão. Sei que sou americana porque quando entro numa sala, algo morre. As metáforas sobre a morte são para poetas que pensam que os fantasmas querem saber do som. Quando eu morrer, prometo assombrar-te para sempre. Um dia escreverei sobre as flores, como se elas nos pertencessem.
Noor Hindi