Num dos lados da mesa, o narrador, no outro, Jei Jei, um rapaz que, órfão por causa da guerra, teve de se reinventar na cidade. Os dois trocam histórias para cerzir os rasgos do passado e as incógnitas do presente. Inventam uma ficção que possa explicar a realidade e através desse artifício Museu da Revolução, o novo romance de João Paulo Borges Coelho, desdobra-se em infinitas imagens da história recente de Moçambique. Por vezes, o narrador (o próprio autor) abandona a mesa e passa a contar a própria saga de Jei-Jei e de muitas outras personagens, alguns ex-combatentes envolvidos em novas lutas. Romance labirinto, este é um livro que procura unir os fios de um passado que por norma é interpretado por blocos. Primeiro, a Guerra Colonial, depois a da Independência, a seguir a Civil. Mas, para Borges Coelho, estes passados são impossíveis de desligar, pois vivem dentro das pessoas, agitados pela memória, mesmo num país com tendência para o esquecimento.
Filho de pai português e mãe moçambicana, João Paulo Borges Coelho nasceu no Porto, em 1955, mas mudou-se com a família para a Beira, em Moçambique, ainda em criança, tendo adotado a nacionalidade moçambicana. Formado em História, é professor jubilado da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, e especialista nos conflitos do Sul de África. O seu primeiro livro, As Duas Sombras do Rio, foi distinguido com o Prémio José Craveirinha. Seguiram-se outros romances e volumes de contos, nomeadamente O Olho de Hertzog, vencedor do Prémio LeYa em 2009. Doutorado honoris causa pela Universidade de Aveiro, em 2014, foi agraciado em março passado com a Ordem do Infante D. Henrique, no âmbito da visita oficial do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, a Moçambique.
Jornal de Letras: Tem oscilado entre um registo mais pessoal, de memórias biográficas, e um mais próximo de narrativas ficcionadas. Como gere essa alternância?
João Paulo Borges Coelho: Com muita espontaneidade. A escrita é um espaço de total liberdade. Sento-me e escrevo o que me ocorre. Mas há alturas em que sinto uma espécie de pudor em representar a voz dos outros, sobretudo a dos que sofrem.
Porquê?
Porque é sempre uma mistificação. Os personagens pertencem ao autor, não são pessoas reais. E as que são têm de ter voz por elas próprias. Mas esta é uma dúvida que tenho de tempos a tempos, nunca estou muito seguro acerto disto. Nessas alturas de hesitação inclino-me mais para escrever sobre a minha experiência e localização no mundo, sinto vontade de regressar à infância, ao tempo de estranhamento do mundo, quando o olhar ainda não estava viciado e viam-se as coisas pela primeira vez.
A experiência individual é a mais verdadeira?
Nem sempre, também engana. A linha que separa a experiência individual como exercício de honestidade e de vaidade é muito ténue. É preciso estar atento para se conseguir fazer sobressair o espanto.
Os escritores falam muitas vezes na vontade de se colocarem no lugar do Outro. Tem vindo a desconfiar desse exercício?
A condição do Outro está sempre a uma grande distância. Claro que devemos ter sempre e cada vez mais uma atenção especial ao que nos é distante e estranho, mas não para afastar o Outro com uma cotovelada e para falarmos em seu nome. Nesse sentido, o que podemos e devemos fazer é facilitar o caminho até à sua própria voz, nunca a substituir. O processo de construção do Outro como imagem ou linguagem tem sempre, como dizia no início, um pouco de mistificação, porque ao fim e ao cabo esse Outro continua calado. É um problema de difícil de solução, ainda mais em Moçambique, onde as assimetrias, desigualdades e o sofrimento tornam o dilema mais denso, e não o inverso, à medida que tempo passa, com as alterações climáticas e as expropriações de terras, por exemplo.
Essa dificuldade também se coloca no discurso sobre a questão colonial? Muitas vezes, o ex-colonizador quer afirmar o discurso até sobre as injustiças que cometeu. É preciso equilibrar as vozes?
Sim, é verdade, mas nesse campo há dois riscos. O primeiro é o de nos prolongarmos no papel da vítima e não nos erigirmos como sujeitos da história. Moçambique tem quase 50 anos de independência, tem já uma pegada de história própria que tem de ser falada. O segundo perigo é a demonização total do tempo anterior para o atual ser de paraíso. É muito importante, por razões práticas e filosóficas, ligar os dois períodos.
Em que sentido?
Há um apagamento da história anterior à Independência. Claro que se compreende porque grande parte dessa história é de humilhação. O avô tem hoje dificuldade em explicar como era a sua vida ao neto, e o neto se calhar tem vergonha em procurar esse tipo de passado. Mas isso impõe à sociedade um esquecimento da experiência passada.
O que se poderia ganhar com a consciência dessa experiência?
Perceber precisamente a importância da Independência, que é muito mais funda do que um 25 de Abril, por exemplo. Não foi uma mudança política, mas a passagem de um estatuto infra-humano para o de humano. Poderemos sempre reconstruir essa experiência, procurar percebê-la em profundidade, mas não a podemos sentir. Mas é importante aprender com ela, algo muito difícil num país em que subsiste esta tendência para o esquecimento, se morre muito cedo e se nasce muito. Uma parte do passado foi apagado e por vezes comentem-se os mesmos erros.
Como por exemplo?
Fiz várias investigações sobre o assentamento das aldeias depois da Independência. Em muitos casos foram cometidos os mesmos erros do período colonial. Para o bem e para o mal, não é possível cortar com o passado. Há fios que se alongam e que emergem quando menos se espera. É melhor estar preparado.
O seu romance explora precisamente esses fios do passados que convergem para o Museu da Revolução. Foi lá que o livro começou?
Os meus livros começam sempre sem grande ordem. Há uma vaga ideia que depois se associa a outra e depois a outra. Com temas tão diferentes o desafio é encontrar as ligações, ver como é que o material funciona.
Como se descesse às reservas de um museu para montar uma nova exposição?
Sim [risos]. A história inicial, por exemplo, da Toyota Hiace, uma carrinha muito frequente em Moçambique, surgiu como a imagem da situação mundial em que vivemos. O Reino Unido já anunciou que vai acabar, até 2035, com os carros movidos a combustíveis fósseis. Isso significa que esses automóveis vão parar a África, como antes foram os veículos a diesel dessa história inicial do romance. Vieram, em segundas ou muitas mãos, do Jopão, da América, também do Reino Unido, juntamente com os computadores que não funcionam ou o lixo hospitalar. Este é um assunto difícil porque, em Moçambique, a Toyota Hiace, convertidas em chapas, são símbolos do movimento e da liberdade.
Mas o que o seduziu na ideia de museu e, em concreto, no Museu da Revolução que há em Maputo?
Um museu é um conceito muito apelativo, é onde estão organizadas as ruínas do passado. O que significa que, em primeiro lugar, é preciso identificar essas ruínas e, em segundo, decidir como as encadear, o que nunca é uma escolha inocente. Está-se a contar uma história, cujo título por norma aparece no nome do museu. Nesse sentido, também é um espaço de poder.
Qual é a história que se conta no Museu da Revolução?
A da Libertação e da Independência. Mas é um museu que tem questões muito específicas. A primeira é ter sido privatizado e pertencer hoje a um partido, à Frelimo, o que é um facto extraordinário. Houve até um responsável que disse qualquer coisa como o museu não é do povo, é do partido, outro facto espantoso. Há ainda outa dimensão curiosa em toda esta história: o museu encerrou há uns anos e nunca mais abriu.
Não foi dada nenhuma explicação?
Nunca se diz que o fecho é definitivo, é mais a ideia “o programa segue dentro de momento” ou o “volto já” das lojas, que no entanto se prolonga. Depois da Toyota Hiace, esta foi outra peça que tirei das reservas, como lhe chamou, ou da arca, como costumo dizer. Mais tarde encontrei um texto de um escritor sul-africano, P.R. Anderson, que de passagem por Maputo visitou o museu.
Que também cita no romance.
Sim. É um texto breve, de duas páginas, que saiu numa revista secundária sul-africana. O que chamou a minha atenção foi a sua incapacidade para entender o que via. Feito com o apoio dos norte-coreanos, nas representações da luta e da resistência só há pessoas sorridentes, com roupa impecável e a caminhar com flores. A confusão do escritor foi maior quando se deparou com uma concentração de Magermanes, os trabalhadores emigrantes que prestaram serviço na Alemanha Socialista, embora na altura se chamasse formação, e que então reclamavam a parte dos salários que diziam estar retida pelo Governo.
Ao puxar um fio ia dar sempre a outro.
Exatamente. Aliás, essa reinvindicação dos Magermanes, como ficaram conhecidos, é igual à que, durante o período colonial, vários trabalhadores das minas de ouro da África do Sul e da Rodésia fizeram. Também diziam que parte do salário tinha ficado retido e que era pago, em ouro, ao estado português. Era o mesmo problema, mas distorcido.
Mudaram os tempos, mas a História repete-se.
É esse, aliás, o sentido que procuro nos romances. Interessa-me tratar a guerra como ela é sentida, e não como uma coisa arrumada no tempo. Para os estudos académicos, primeiro veio a Guerra Colonial e depois a Guerra Civil. Mas para muitas pessoas elas estão misturadas, os diferentes conflitos existem ao mesmo tempo pela via da memória, expressando-se, claro, de maneiras diferentes. E também há protagonistas de uma guerra que, com outros papéis, aparecem na seguinte.
No romance, tudo o que conta é desencadeado por uma viagem. Como encontrou esse elo de ligação?
Foi outro acaso, embora verdadeiro. Soube de uma excursão a Moçambique que estava a ser organizada por ex-combatentes a que se juntou uma mulher da Beira, que saíra de Moçambique depois da Independência. Ao ver o anúncio da viagem na internet decidir ir atrás da mãe e escavar o passado. Este turismo da memória, esta viagem a um passado que continua por vários meios, pareceu-me muito sugestiva. Escrever é roubar da realidade.
“Uma história é tanto mais perfeita quanto mais se aproxima da realidade”, chega-se a dizer no romance…
Esse é o jogo que o narrador tem com Jei-Jei, uma das personagens principais. Contam histórias para viver histórias reais e para inventar outras que lhes permitem, e a mim também, unir pontas, propor uma explicação para o que não tem uma.
É uma tentativa de dar sentido às muitas incertezas do passado, do presente e do futuro?
Sim, porque têm consciência de que vivem um momento de transição, que a História nos ensina serem dos mais ricos. Carregam sinais do que vem de trás e do que já se anuncia. Mais uma vez, a separação académica, muitas vezes, não permite explorar esta dimensão. A incerteza em relação ao que se viveu é importante porque mostra como o passado é muitas vezes uma assombração, uma presença.
Tem também um longo percurso no ensino e na investigação no campo da História. A ficção dá-lhe o lado mais humano?
Os historiadores dão muitos tiros nos pés, caem na armadilha que constroem. Mas também se consegue chegar ao lado humano na história. Gosto muito do trabalho de historiadores como Carlo Ginzburg, que se foca na micro-história, procura chegar à experiência do indivíduo, tentando reconstruir percursos e itinerários. Neste sentido, é quase um ponto de encontro, uma terra cinzenta, onde a história e a ficção se cruzam. É muito interessante vaguear por essas zonas e perceber o que se pode colher.
A sua ficção é a sua micro-história?
Num certo sentido, sim. Mas a ficção, ao contrário da História, não tem compromisso com a verdade, só com as pessoas. A arte, como se sabe, não serve para nada. Nasce do livre arbítrio. A literatura não serve para afirmar pontos de vista ou mensagens. Exprime o que o autor procurou dizer e talvez seja capaz de criar pequenos espaços de atenção para quem queira parar um pouco nessas páginas. É um espaço de resistência, em particular, de resistência das formas antigas, como a história, o livro, a leitura. A tese do que vem depois é melhor do que veio antes dá muito que pensar.
É uma ilusão?
Pode ser, e sei que há um risco de o meu discurso ser confundido com conservadorismo. É preciso olhar com lucidez para o que se ganha e o que se perde. A literatura é um jogo de dar conta do que foi feito antes, é um exercício de cultura, com os seus códigos e regras, e uma tentativa de se inovar a partir do estranhamento, de um novo olhar lançado a realidades conhecidas.