Ana Freitas Reis estreia-se na editora de João Paulo Cotrim, a Abysmo. Convém sublinhar que esta editora, entre nomes consagrados da literatura portuguesa (Helder Macedo, desde logo), mas de outras literaturas (José Luiz Tavares, nome maior da literatura cabo-verdeana), tem fixado um conjunto de poetas portugueses – Rita Taborda Duarte, Inês Fonseca Santos – que, em maior ou menor grau, prolongam, ou aprofundam, certas linhas gerais da poesia mais recente e que, especialmente no feminino, se tem vindo a escrever.
Quando, daqui a uns anos se olhar para trás, para a década 2010/20, ver-se-á que uma das grandes conquistas da poesia em Portugal foi o ter-se aberto a uma poesia que, feita por mulheres, representa, politicamente, um traço caracterizador insofismável. É nessa escrita que alguns dos aspetos mais arriscados na poesia estão a acontecer. Não me refiro apenas à libertação de temas associados ao corpo ou à sexualidade, pois nesse particular nomes como Maria Teresa Horta, Luiza Neto Jorge, Inês Lourenço, Fátima Maldonado, Rosa Alice Branco, Ana Mafalda Leite, Ana Luísa Amaral, Ana Marques Gastão, ou certa Adília Lopes, conseguiram atingir em alguns dos seus livros pontos altíssimos na expressão da dor, do amor, do sexo, das prisões várias de que se fez (e faz) a condição feminina; uma condição tanto mais intensa quanto constrangida às malhas que cada época tece.
Benédicte Houart, uma das mais singulares vozes reveladas nestes últimos 20 anos sintetiza, em versos de enorme rigor, o modo escrevente desse feminino a braços com essas malhas reais e também emocionais: “dizem os meus pretendentes que sou linda/ o que eles querem é ter-me por rainha/ ulisses há de vir decepar-lhes a cabeça/ e fazer-lhes engolir as palavras que manejaram […]/ com o meu rei, sabei, fui parideira/ com eles, carne de corpo inteiro” (in Vida: Variações II, Cotovia, 2011, p.73).
Rosa Oliveira, quanto a mim a maior revelação recente, será um bom exemplo de como esse ser-se “carne de corpo inteiro” tem de ser dito, sobretudo, através de um jogo contínuo de recriação gramatical, sobretudo ao nível da sintaxe. Se é de corpo feminino que falamos, é de um modo de fazer a frase, sendo-se mulher, que devemos também falar, porque se inter-ditos se trata, de exprimir pelo alusivo o que no masculino se pode dizer às claras.
Tatiana Faia, Golgona Anghel e Margarida Vale de Gato, outras três vozes incontornáveis para se entender que poesia está a acontecer hoje, apostam ora em formas mais clássicas (o soneto em Gato), ora em livres formas, como sejam o versilibrismo pejado de irrisão em Golghona ou a expressão coloquial-clássica em Faia.
Entre dizer o corpo, o sexo, a condição de se ser mãe, dona de casa, mulher que cuida dos filhos e do marido, mulher que tem o seu emprego, mas precisa de ter um quarto só seu, Ana Freitas Reis (AFR) acrescenta em Cordão uma textualidade dramática, uma permanente teatralização disso que são as condicionantes da poesia no feminino. A sua voz não é abrupta e irónica como a de Golgona, não especula, em tergiversações erótico-sensíveis como a de Inês Fonseca Santos, nem tão-pouco se adensa no jogo instigante de formas que uma Rita Taborda Duarte celebra.
A sua expressão é por vezes minimal (“A flor abre/ e fecha os olhos/ fenda do amor e do tempo/ a ousadia de viver/ gerando em simultâneo/ mulher, colher e vaso./ Lenta, a pausa, escuro, o silêncio./ Até que explode/ expele/ guarda/ e recolhe./ Solta/ as águas”). Esta orientação em espinha, esta amostragem do ato de nascer – dirigido à filha – arrasta o leitor para dentro de um livro onde ocultação e revelação se conciliam.
Livro dedicado à filha, é certo, mas livro onde, a cada poema, há ecos de influências, de leituras, especialmente de poetas que pensam obsessivamente a poesia, o corpo, a sexualidade não apaziguada (penso em Luís Miguel Nava, cada vez mais o nome que congrega poetas de gerações mais recentes de criadores): “Tem um coração/ que transita/ em todas as estações do corpo”, escreve-se.
Mas é de poesia, ao fim e ao cabo que AFR quer e vem falar-nos. Alude-se a uma “palavra em branco”, a essa “língua crespa da lua [que]/ sorve o sangue”; fala-se, pois, da perspetiva da mulher que chega a casa, da perda latente de qualquer coisa que só ela, como mulher e poeta, sente. Se, por um lado, AFR domina, por exemplo, a elipse e a alusão, se nela o querer falar de galáxias é outro modo de dizer que a poesia pode ser esse “evento apaixonado” feito corpo de palavras (equilibra-se o livro em dois pés: o poema longo e os tercetos que funcionam como cortinas separadoras de momentos de reflexão), exige-se, porém, que se eliminem certas expressões que desequilibram o conjunto, pois nem toda a metáfora, ou catacrese, ou imagem vale em poesia: “minhocas frenéticas”, “o vento assobiava azul” são dois exemplos a não repetir, creio.
Todavia, dito isto, Ana Freitas Reis é uma poeta que, com este seu primeiro livro nos oferece textos muito pensados, reescritos. O arranjo gráfico, a escolha de certas estrofes que isoladamente se colocam na página, mesmo a construção “abrasileirada” de algumas expressões (“Tem horas paradas, águas”, “tem telas soturnas, pálidas”, “Tem um homem que depende do despertador” – e até mesmo, neste poema, “Pianos”, a atenção às sonoridades), essa forma de associar um estado de alma a um estado de observação, quase sempre preocupado, essas são armas fortes nesta poesia delicada.
Cordão é um livro também feito de observações (leia-se “Cidade Isolada”, ou “Dorso”), mas observações que vão do interior para o exterior, num permanente vaivém de flashes, ou de pormenorizadas visões (“O homem não dormia/ […]/ O contágio com a pele acelerava-lhe o peito/ o mesmo relâmpago que o perseguia na cabeça.”, p.40). Neste particular, qualquer coisa começa a ser escrita – de novo – com este primeiro livro.