No dia 6 de maio de 1866 chegava a Lisboa, vindo da distante Dinamarca, um ilustre viajante, o escritor Hans Christian Andersen. Precedia-o a grande popularidade de que gozava, sendo já um contista muito aplaudido, autor de obra viagística considerável. Vinha a convite dos irmãos Jorge Torlades O’Neill e José O’Neill, que conhecera e com quem privara em Copenhaga entre 1828 e 1832, quando os portugueses permaneceram naquela cidade para aprender o idioma dinamarquês.
Estão, portanto, a passar os 150 anos de uma visita marcante para o escritor, a ponto de o levar a escrever Et Besøg i Portugal 1866 [Uma visita em Portugal em 1866], considerado pelos andersenistas como um dos cinco títulos mais importantes desse género “pelo caráter afetivo com que descreve a hospedagem” em casa dos amigos e “pelo louvor da paisagem”. Esta data é, assim, um bom pretexto para evocar o escritor e reler a sua obra.
Viajar foi para Andersen algo de fascinante e necessário. Foi um imperativo de vida. Após cada viagem sentiu sempre necessidade de escrever sobre ela, a partir de apontamentos que ia tomando nos seus diários íntimos e da abundante correspondência que enviou aos amigos. Deixou impressões e relatos em livros de viagens, que foram editados ao longo do tempo, e na sua autobiografia, Mit Livs Eventyr [O Conto da Minha Vida]. A primeira referência a uma viagem fá-la em 1826, por carta para Raasmus Nyerup, que de imediato a publica. Intitula-se Fragment af en Reise fra Roeskilde til Helsingør [Fragmento de uma viagem de Roskilde para Elsinore]. O seu primeiro livro de viagens é Skyggebilleder af en Reise til Harzen [Silhuetas de uma viagem à Montanha do Harz], de 1831, onde regista as impressões da sua primeira ida à Alemanha. Aí escreveu:
“Oh! Viajar! Viajar! – É, na verdade, o destino mais feliz! E por isso viajamos, todos nós, tudo viaja em todo o Universo! Mesmo o mais pobre ser possui o cavalo alado do pensamento e quando fica fraco e velho, então toma-o a morte consigo em viagem, viajamos todos!”
Em carta para Henriette Collin afirmou que ao viajar “torna-se a vida rica e vivida”. Esse desejo de conhecer outros ambientes, outras culturas, outras gentes, “ir para fora e respirar o ar do mundo”, configura-se como um percurso de crescimento interior, justificando a sua conhecida sentença “Viajar é viver”, assumida como guia de vida.
A visita de Andersen aconteceu por convite de Jorge O’Neill, endereçado por carta de 10 de maio de 1865: “O nosso pequeno Portugal é um país muito interessante”, escreveu. O convite foi aceite em carta de 9 de novembro, prometendo o escritor que a visita aconteceria na primavera seguinte. Para a aceitar procurou a opinião de amigos, que aconselharam que fizesse a viagem, e, antes de responder leu tudo o que conseguiu encontrar sobre o país. Não foi, por isso, um processo de decisão fácil nem imediato. De manhã entusiasmava-se com a viagem, à tarde receava-a. E escreveu no seu diário íntimo: “A carta de Jorge O’Neill despertou-me grande vontade de empreender esta viagem, mas depois veio o receio, quer pela travessia do mar quer pelas dificuldades por terra”. A sua vinda a Portugal não foi, portanto, nem um percurso de crescimento nem uma visita para receber os louros de uma carreira de escritor, que no reino mais ocidental da Europa não passava de um sucesso diferido, chegando apenas a um pequeno grupo através de jornais e livros editados noutros países. Foi, como confirma Pedro O’Neill Teixeira, uma viagem sentimental, para vir ao encontro de dois amigos dos tempos de juventude.
Andersen saiu de Copenhaga em janeiro de 1866, regressando à sua cidade a 9 de setembro desse ano. Cerca das quatro horas da manhã do dia 6 de maio entrou em Lisboa. Regressaria à sua pátria a 14 de agosto, no navio Navarro, vindo do Brasil rumo a Bordéus, onde aportou a 17 de agosto. Oito meses de viagem para uma estadia de três meses em terras lusas. Passou as primeiras cinco semanas na Quinta do Pinheiro, propriedade de O’Neill, a “meia milha” de Lisboa, de onde saía amiúde para visitar lugares marcantes ou individualidades de destaque como o rei D. Fernando ou Castilho. De 8 de junho a 9 de julho instalou-se em Setúbal, na acolhedora Quinta dos Bonecos, morada de Carlos O‘Neill, irmão Jorge e José. Em Sintra, na propriedade de José, permaneceu de 26 de julho a 8 de agosto. Aveiro e Coimbra estiveram também na rota do escritor.
No registo da viagem manifesta opiniões, dá a ver interesses, mostra-se atento, observador, por vezes também assustado. Descreve com pormenor os ambientes naturais que visita, relata pequenas histórias, deixa impressões diversas. Ocasionalmente regista um ou outro apontamento crítico. Lisboa surgiu-lhe mais limpa, “luminosa e bela” do que as leituras prévias lhe fizeram supor. “As ruas são agora largas e limpas; as casas confortáveis, com as paredes cobertas de azulejos brilhantes de desenhos azuis sobre branco; as portas e janelas de sacada são pintadas a verde e a vermelho, duas cores que se veem por toda a parte. […] O Passeio Público, um jardim longo e estreito no meio da cidade, é à noite iluminado a gás e aí se ouvem concertos. […] Nas ruas principais há vida e movimento. Passam ligeiros os cabriolés.” A Serra de Sintra e os arredores de Setúbal merecem-lhe rasgados elogios. Acerca da Serra de São Luís, junto a Setúbal, escreve: “Senti-me penetrado de toda a beleza da natureza, naquela atmosfera suave e quente. Era como a nave de uma igreja no mundo grandioso e estranho de Deus”. Não economiza palavras para descrever a Serra de Sintra: “Todo o caminho da serra é um jardim, onde natureza e arte maravilhosamente se combinam, o mais belo passeio que se pode imaginar.” Ao partir de Coimbra, deita um último olhar às suas casas, “de variegado colorido, destacando-se como um grande ramo de flores, ao alto, com verdura a toda a volta.”
Tendo sido publicado em 1868, integrando as obras completas do autor, este relato foi pela primeira vez editado em português em 1971 e posteriormente teve várias reedições, contendo preciosas anotações do tradutor, Silva Duarte. Apesar disso, há um desconhecimento geral e um estranho silêncio envolvendo quer a visita, quer o seu registo, o que é surpreendente e urge ultrapassar. Este é, pois, o momento de descobrir uma viagem feita de encontros e reencontros e marcada pelas impressões que deixou no excecional viajante que foi H. C. Andersen e pela memória de afabilidade e simpatia que ficou em quem com ele privou. A estrofe escrita no álbum de Carolina Teresa O’Neill dá conta do sentido desta visita: “Quando, querendo Deus, em breve passear/ Nas galerias de faias do meu país natal,/ Voará muitas vezes meu pensamento/ Para o belo país que é Portugal.”