O romance de estreia de Bruno Vieira Amaral, 37 anos, comunica com a sua biografia, mas não é autobiográfico. O seu ponto de partida foi a vida de bairro que conheceu bem enquanto crescia no Bairro Fundo de Fomento do Vale da Amoreira, na Moita, distrito de Setúbal. Em As Primeiras Coisas (Quetzal, 2013), vencedor do Prémio José Saramago do ano passado (entre outras distinções), é o bairro Amélia e as suas figuras que assumem o protagonismo. Um bairro imaginário mas tão real quanto as referências que o compõem – e nos fazem mergulhar num bairro ocupado por retornados no final dos anos 70.
À VISÃO, o autor falou da importância de resgatar as suas personagens da amálgama que está muitas vezes associada à ideia de bairro social. “Para mim, as pessoas não são determinadas exclusivamente pelas condições em que vivem, caso contrário não teria interesse nenhum contar a história das pessoas daquele bairro ou das personagens que eu lá coloquei, contando a história de um, contar-se-ia a história de qualquer outro”, diz.
O protagonista do livro regressa ao bairro Amélia em conflito com o passado, mas o escritor nunca sentiu o mesmo em relação ao seu bairro: “Aquilo que eu sou foi muito marcado por aquele lugar, aquelas pessoas, as relações entre elas, a vida naquele bairro”, afirmou, antes de recordar a origem do título do seu romance: “Foi ali que eu vi as primeiras coisas”.
A ideia de bairro sempre teve uma presença forte na sua vida?
Sim, eu entendo a vida de bairro como uma espécie de aldeia urbana ou de família alargada em que as relações, para o bem e para o mal, são de uma grande proximidade. O lado positivo é a entreajuda e solidariedade que essa proximidade traz. O lado negativo, que torna os bairros mais interessantes, é o excesso de proximidade. Por vezes, é difícil separar aquilo que é estritamente pessoal e íntimo do que é comunitário e social. As nossas vidas acabam por ser também as vidas dos nossos vizinhos e as vidas dos nossos vizinhos também acabam por ser um pouco as nossas. Hoje é diferente, estou a falar da altura em que eu era criança. Eu cresci nesse ambiente de bairro. Para mim, o bairro é isto, não é apenas um espaço geográfico, mas um espaço social e cultural. A nossa vida toda acontecia ali.
A fragilidade dessas fronteiras entre o pessoal e comunitário é muito visível em As Primeiras Coisas através do rumor, do diz que disse, das histórias mal contadas…
Esse é um dos aspetos centrais do livro e das histórias que lá são narradas, essa incerteza, essas dúvidas, essas histórias mal contadas… Alguém se separou, mas as explicações para essa separação variam de pessoa para pessoa… Às vezes, começa-se a ouvir uma história e depois completa-se com o que outra pessoa diz mais tarde… É tudo muito fragmentado e nós vamos completando com a nossa imaginação, com o conhecimento que temos daquelas pessoas, com os rumores… Eu quis plasmar isso no livro, dar forma literária a essa experiência. Na verdade, não foi uma coisa assim tão racional. Simplesmente quis retratar aquele mundo e aquela forma de as pessoas se relacionarem entre si.
O que o fez pensar que um bairro poderia ser profundamente literário?
As histórias das pessoas. Desde cedo senti que tinha ali matéria-prima que poderia resultar em matéria literária. Podemos conhecer histórias interessantíssimas na vida real e não conseguir encontrar forma de as transformar em matéria literária e, por vezes, histórias muito interessantes do ponto de vista humano dão má literatura… Mas havia uma coerência naquele ambiente, não só naquelas histórias reais que eu conhecia, mas noutras que eu pensei que poderiam encaixar ali, histórias inventadas, histórias que partiram de notícias que li em jornais e que cabiam naquele universo. O ponto de partida foi crescer ali, ouvir muitas histórias, e pensar porque é que haveria de ir à procura de outras histórias se tinha ali um ponto de partida. Mas por que não ir buscar histórias a outros lugares e trazê-las para aquele universo? A certa altura percebi que fazia mais sentido assim.
Os bairros de hoje são muito diferentes do Vale da Amoreira da sua infância ou do bairro Amélia de As Primeiras Coisas?
Sim, mudou a relação de proximidade. Antigamente, as casas dos nossos vizinhos eram quase uma extensão da nossa. As pessoas que nos viam na rua a brincar sabiam de quem é que éramos filhos, hoje isso não acontece. As pessoas vivem mais fechadas e fazem menos vida de bairro. Não é uma vida comunitária, é uma vida em que cada um vive no seu pequeno nicho, no seu pequeno favo da colmeia e não partilha. Não sei se isto é mau… Não estou a dizer que seja uma perda, é uma transformação que tem aspetos positivos e negativos, da mesma forma que a vida comunitária antiga tinha questões muito positivas e outras francamente negativas.
Quando cresceu no Vale da Amoreira havia o tradicional local de encontro público?
O bairro era todo público [risos]. O que havia era uma “vida de café”, hoje há pessoas que continuam a frequentar os cafés, mas o que existia naquela altura era a cultura do café, as pessoas saiam todas depois do jantar. Lembro-me de os meus avós terem aquele hábito de irem beber a bica depois do jantar. Todos os espaços do bairro eram públicos porque a vida era muito virada para fora, para os cafés, para os parques, para os campos da bola… No meu tempo havia enxames de miúdos na rua a partir de determinada hora, isso mudou.
E hoje não há uma tentativa de regresso à vida de bairro?
Eu não vivo em Lisboa, mas vejo que os meus amigos que vivem têm essa nostalgia, essa fantasia da vida de bairro dentro de Lisboa. Eu acho que é um pouco artificial, mas a partir do momento em que as pessoas vivem essa construção, ela passa a ser real. Creio que há uma revalorização dessa proximidade, ainda que eu sinta que é um pouco em diferido, em segunda mão, não é original. As pessoas só querem as coisas boas dessa vida de bairro, é essa a principal diferença, enquanto na vida real do bairro levava-se com o bom e o mau, agora não, há a tentativa de pegar nas coisas quase turísticas. Só queremos o bom, daí eu falar em construção.
Pensar o bairro com distanciamento trouxe-lhe alguma espécie de reconciliação?
Não, eu nunca tive nenhum problema com o bairro. Deixei de viver lá, naturalmente. Aí há uma grande diferença entre mim e a personagem, o narrador do meu livro, que de facto está em conflito, sai para não voltar. Eu nunca tive essa relação de conflito com aquele espaço, sempre gostei muito de voltar quando não estava lá a viver. Estavam ali as minhas recordações de infância. O livro que escrevi acaba por ser também uma homenagem ao bairro.
Mas quando olha para trás…
Há uma avaliação do que foi a nossa vida, pensamos em que é que aquele espaço nos influenciou. O que é que eu tenho em mim que tem a ver com aquela experiência? Aquilo que eu sou foi muito marcado por aquele lugar, aquelas pessoas, as relações entre elas, a vida naquele bairro. Se calhar, eu não tive nenhum conflito porque tive a sorte de perceber que não podia cortar com aquele bairro porque ele era parte da minha identidade, não como uma ligação de sangue ou uma espécie de pátria, mas através das memórias. Essas são as primeiras coisas.
Um contributo importante na sua vida de bairro foi o aparecimento da biblioteca de Vale da Amoreira…
A biblioteca foi inaugurada quando eu tinha 12 anos e foi muito importante. Não quero fazer um discurso neorrealista, mas para quem cresceu quase sem livros em casa – apesar de eu ler muita coisa e interessar-me muito… – o facto de ir a uma biblioteca e tê-los ali, disponíveis, poder pegar neles e levá-los para casa durante duas semanas, foi quase como abrir o cérebro e deitar coisas lá para dentro. Claro que mudou a minha vida.
É inevitável desembocarmos no cliché de que “o bairro são as pessoas”?
Todas as coisas são as pessoas, mas as pessoas também são o bairro, no sentido em que as pessoas são as casas, os cafés, as mercearias… Portanto, eu diria que sim, o bairro são as pessoas, mas as pessoas também são influenciadas por questões de espaço, de arrumação, de urbanismo, se têm espaço para o convívio ou não… A relação entre as pessoas é afetada por tudo isso.
O bairro também desempenha um papel importante no que diz respeito à inclusão ou exclusão social dos seus residentes?
A exclusão, muitas vezes, não vem das pessoas que querem excluir, mas precisamente daquelas que querem incluir da forma errada, quando há um excesso de condescendência e paternalismo para com as pessoas que vivem em determinados bairros. Se há uma leitura sociológica do livro é que mesmo num bairro facilmente visto como um bairro crítico, em que todas as experiências são reduzidas à experiência de vida num bairro social, há histórias que escapam a essa prensa, que são histórias de amor, de tristeza, em que a explicação não passa apenas pelo lado sociológico ou pelas características económicas e sociológicas do bairro, há uma outra vida, que é a vida de qualquer pessoa. Para mim, as pessoas não são determinadas exclusivamente pelas condições em que vivem, caso contrário não teria interesse nenhum contar a história das pessoas daquele bairro ou das personagens que lá coloquei; contando a história de um, contar-se-ia a história de qualquer outro. A minha ideia era encontrar aquilo que é único porque acredito que as pessoas, apesar de serem influenciadas pelas condições de um lugar, não são determinadas por esse ambiente.
Faz sentido associar a palavra democracia ao bairro?
Não, não creio. Acho que a democratização não passa pela questão do bairro. Acredito que só pode haver realmente democracia quando as pessoas têm condições de vida dignas, se as pessoas não tiverem condições de vida dignas não há democracia, seja num bairro, seja onde for. Não quer dizer que não possa haver algumas condições de vida dignas e depois não haver democracia, mas se não houver condições dignas somos subjugados pelas necessidades.
Como é que se faz um bairro melhor?
Criando condições para as pessoas viverem melhor, tornando-as responsáveis pelos lugares que habitam. Isto não passa por uma política para um bairro específico, passa por uma educação cívica mais alargada. Acredito que tudo aquilo que se tenta impor de cima para baixo é frágil. As transformações que têm de existir devem incluir as pessoas, o que também passa, obviamente, por equipamentos e condições materiais, mas se não dermos às pessoas condições para elas se responsabilizarem por aquilo que também é delas, creio que em pouco tempo as coisas se degradam e voltamos à estaca zero.
Por um bairro melhor é a iniciativa que une a VISÃO, SIC Esperança e a Comunidade EDP em busca dos vizinhos mais ativos do País. Participe, dê ideias, contribua. Tudo por um bairro melhor.