“Se um indivíduo for sujeito a temperaturas baixas, dá-se a ativação do sistema adiposo castanho, um aumento da termogénese, dissipação de energia, melhoria do peso e até da diabetes. Mas, agora, já quase não somos expostos ao frio”

Foto: Luís Barra

“Se um indivíduo for sujeito a temperaturas baixas, dá-se a ativação do sistema adiposo castanho, um aumento da termogénese, dissipação de energia, melhoria do peso e até da diabetes. Mas, agora, já quase não somos expostos ao frio”

Paula Freitas, 57 anos, sabe muito de obesidade, pois debate-se com a sua complexidade desde que escolheu a especialidade de endocrinologia, um ramo da biologia e da medicina que trata do sistema endócrino e das suas doenças, muitas vezes provocadas por distúrbios hormonais. À atividade de consultório alia as de endocrinologista do Centro de Responsabilidade Integrado de Obesidade da Unidade Local de Saúde São João e de docente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. E, desde fevereiro, assumiu a presidência da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, cargo que manterá nos próximos três anos.

Portugal foi pioneiro em declarar a obesidade como uma doença, há 20 anos. Mas os números não param de crescer. O que falta fazer para os reverter?
É preciso conhecer melhor a doença. A maior parte das pessoas e dos profissionais de saúde ainda não está ciente da sua complexidade. A obesidade é uma doença crónica, complexa, recidiva. Hoje, sabemos que 70% do peso é programado geneticamente. E também sabemos outra coisa: a obesidade é uma colisão entre o património genético e o ambiente em que vivemos. Ou seja, há pessoas que, independentemente do ambiente onde estão, nunca serão obesas. Outras têm um conjunto de genes que as coloca numa maior probabilidade de ter obesidade e formas de obesidade grave.

Em que ponto estamos?
Estamos num ponto de viragem. Se há uns anos praticamente não tínhamos tratamento para a doença, hoje existem fármacos bastante eficazes. Precisamos que as pessoas tenham acesso a eles.

Mas, em Portugal, esses medicamentos não são comparticipados.
E nós sabemos que a obesidade é muito mais prevalente nas classes sociais mais baixas. Saiu recentemente um estudo em que se demonstrou que esses fármacos reduzem a mortalidade em 20 por cento. Temos de perguntar até que ponto não é imoral e antiético não tratar os doentes com formas graves de obesidade. Também é preciso proporcionar ainda melhor acessibilidade ao tratamento cirúrgico.

Esse, sim, é comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde.
Com algumas limitações, que têm que ver com as listas de espera, mas, sim, as pessoas têm acesso às cirurgias.

Não seria melhor comparticipar antes os fármacos, para se evitar chegar a esse ponto, com muito mais riscos para o doente e custos para o Estado?
Tem razão. Provavelmente, se tratássemos numa fase mais precoce, alguns doentes não iriam parar à cirurgia.

E como se trata?
As guidelines que determinam a forma de tratar a obesidade mudaram. Ainda estamos muito focados na dieta e no exercício físico como soluções para a obesidade. Eles são muito importantes, mas o tratamento deve assentar essencialmente em três pilares fundamentais: intervenção comportamental, intervenção farmacológica e intervenção cirúrgica.

Essas intervenções acontecem por fases?
Sim, porque as pessoas podem precisar de um dos pilares ou de mais do que um ao longo da vida.

Se correr bem, podem não passar do primeiro patamar?
Quando as pessoas estão a ser tratadas do ponto de vista da psicologia, com intervenção comportamental, vão cumprir mais corretamente a dieta e a prescrição do exercício. O ideal era ter bons planos de prevenção para aqueles que ainda não têm a doença instalada. Esses planos deviam começar até antes de as pessoas terem nascido, atuando junto das mulheres, antes de elas engravidarem.

Em que consistiriam esses planos de prevenção?
A prevenção tem que ver com a literacia em saúde, disponibilizando mais informação, ensinando as pessoas a fazer escolhas alimentares corretas e estimulando a prática regular de exercício físico.

Mas isso já tem sido feito ao longo dos anos. Parece que a mensagem não está a passar…
Daí a obesidade ser tão complexa, pois tem que ver com as nossas escolhas alimentares, que também são determinadas pela disponibilidade. Por isso é que nelas vai ter impacto o que a indústria alimentar nos dá para comer, o que é definido pelas próprias políticas de agricultura. E são impactadas por outra coisa: os disruptores endócrinos, que estão por todo o lado.

Dê-nos exemplos.
A poluição dos microplásticos no oceano, os pesticidas, as tintas, os plásticos que utilizamos…

Fazem aumentar a nossa predisposição para a obesidade?
Não. Os disruptores endócrinos estão associados à ativação de células que vão ser adipócitos, ou seja, vão fazer aumentar a nossa quantidade de adipócitos, que são as células da gordura.

Hoje, sabemos que 70% do peso é programado geneticamente. E também sabemos outra coisa: a obesidade é uma colisão entre o património genético e o ambiente em que vivemos

Como se atua nesse ambiente obesogénico, que vai muito para além da medicina? Os arquitetos também têm de pensar nisso?
Também. A arquitetura das cidades tem impacto na obesidade.

De que forma?
Por exemplo, se um edifício tiver escadas interiores, que são pouco apelativas, faz com que menos gente as utilize. O número de equipamentos que uma cidade tem para a prática de exercício físico e os espaços verdes também são bons indicadores.

Nesse aspeto, temos melhorado muito. Não concorda?
Temos melhorado muito, mas também há outra dimensão, que é o mundo global, em que, por exemplo, o impacto da publicidade é enorme. Muitas vezes, os produtos são vendidos com um rótulo de saudável, não o sendo. Depois, há toda uma rota de literacia em saúde que tem de ser trabalhada.

Mas as pessoas geralmente leem rótulos, por exemplo?
De facto, a leitura de rótulos é essencial, e o semáforo nutricional tem melhorado essa informação, mostrando o que é a alimentação saudável. Mas, depois, existe outro problema: há muitas pessoas que dispõem de todo o conhecimento, mas, quando chega o momento de optar, não fazem as escolhas corretas.

Qual a razão desse fenómeno?
Hoje, sabemos que a regulação do apetite e da saciedade tem três níveis. O primeiro, a que chamamos controlo homeostático, ou seja, o que preciso de comer até ficar com uma certa saciedade. Isto é regulado por hormonas, muitas delas provenientes do trato gastrointestinal, que vão atuar ao nível do meu sistema nervoso central, dizendo-me quando tenho de parar de comer.

A tal sensação de saciedade…
Depois, há outro aspeto, que é o comer por prazer. Está associado a uma parte diferente do cérebro: o sistema mesolímbico. Ou seja, posso estar saciada, mas continuo a comer para lá daquilo de que preciso, para me sentir bem. Muitas vezes, posso ter compulsão: apesar da refeição, continuo a comer porque não estou satisfeita. Trata-se de uma fome emocional, em que preciso de me alimentar para combater qualquer acontecimento adverso da vida. Esta compulsão está muito associada ao stresse, à ansiedade e ao nervosismo.

E ainda há uma terceira dimensão, relacionada com a regulação do apetite.
É o aspeto cognitivo. Posso decidir, em cada momento, o que como ou não como. Aí, deve intervir a psicologia, para dar ferramentas às pessoas para…

Irem às compras?
Para fazerem as suas escolhas. É muito curioso que até as crianças, quando lhes perguntam o que é mais saudável de comer à sobremesa, se uma peça de fruta ou um doce, respondam, na sua maioria, que o mais saudável é uma peça de fruta. Na pergunta seguinte, “o que é que tu comes?”, a criança diz que come um doce.

Muitas vezes, sabemos o que está certo, mas não o pomos em prática. É isso?
É difícil de cumprir, numa sociedade em que há disponibilidade alimentar dia e noite. Há um estudo muito engraçado que mostra que um americano pode estar sempre a comer coisas com mais de quatro quilocalorias. E, por isso, deixaram de ter aquelas refeições formais: o pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar. E há outras teorias, como as relacionadas com a microbiota intestinal, a poluição, a luz e até a possibilidade de o próprio aquecimento global interferir neste processo. No inverno, estamos sempre em ambientes climatizados, nem sequer ativamos o tecido adiposo castanho – quando está ativado, faz com que se consuma energia.

Essa termogénese ativa-se só quando temos frio ou também quando sentimos calor?
Só com o frio. Algumas experiências provaram que, se um indivíduo for sujeito a temperaturas baixas, se dá a ativação do sistema adiposo castanho, um aumento da termogénese, dissipação de energia, melhoria do peso e até da diabetes. Mas, agora, já quase não somos expostos ao frio. Vivemos num ambiente altamente obesogénico, em que existe enorme disponibilidade alimentar e sedentarismo na maneira como trabalhamos, como nos divertimos.

Até a escola é muito sedentária.
Esse é um dos problemas da obesidade infantil, aliado ao facto de as crianças estarem expostas a um número de horas de ecrã muito grande. No início da evolução do Homem, tínhamos muita atividade e comíamos escassamente. Foi um gene, chamado poupador, que fez com que se sobrevivesse em ambiente de escassez. As pessoas que tinham esse gene é que sobreviveram.

Coisa que, imagino, não funciona bem no mundo da abundância.
Quem tiver esse gene está em desvantagem adaptativa no momento atual.

Qual é a percentagem de pessoas que têm esse gene?
Isto é uma maneira de dizer. O que sabemos é que há mais de 240 genes que fazem com que exista uma maior probabilidade de ter obesidade grave, diferentes tipos de obesidade e diferentes tipos de alterações metabólicas.

Podemos falar em metabolismo lento e rápido?
Há um estudo da Clínica Mayo [nos EUA] para identificar o fenótipo dos indivíduos que têm necessidade de comer mais para ficarem cheios (a tal fome emocional) e um grupo a que eles chamaram slow burn (pessoas que têm o metabolismo mais lento, pois, mesmo quando fazem exercício, a sua despesa energética é menor). Provavelmente, o grande problema é que ainda estamos a tratar todas as obesidades de forma mais ou menos igual. O futuro – eles, na Mayo, já têm trabalho científico nesse sentido – será dar a medicação de acordo com o fenótipo do indivíduo, mesmo que haja quem possa ter mais do que um, tornando tudo mais difícil.

É possível acelerar o metabolismo? 
O exercício faz isso. Quanto mais massa muscular tivermos, mais podemos acelerá-lo. Há investigação exatamente para esse fim – um anticorpo monoclonal para alterar o metabolismo, fazer perder peso e aumentar a massa muscular. Mas ainda está em estudo.

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