Sessenta anos de vida, cumpridos esta semana, e 30 de Jaime Ramos. Com a reedição, na Porto Editora, de Morte no Estádio, Francisco José Viegas assinala duas datas redondas de um percurso sempre envolvido na escrita, nos jornais, na literatura, nas editoras (atualmente na Quetzal) e na política (foi secretário de Estado da Cultura no governo de Passos Coelho). Enquanto o seu detetive, uma das mais marcantes personagens da literatura nacional, está a caminho de um novo romance, a lançar este verão, continua a observar os “progressos” e as “tolices” da sociedade portuguesa.
Às vezes dá por si a pensar como a sua personagem?
Penso mais na idade do Jaime Ramos do que na minha [Risos]. Às vezes, calha-me, quando estou a escrever uma história, pensar como ele. Mas somos pessoas com experiências, memórias e biografias diferentes.
Nem quando lê sobre um caso que Jaime Ramos poderia investigar?
Também não. Costumo, sim, olhar para um caso ou uma paisagem e pensar: “Um belo sítio para se cometer um crime.” A certa altura, tornou-se uma obsessão. Chegava a um lugar novo e dizia: “Que cenário fantástico para uma história.” Mas nunca me desdobrando em Jaime Ramos. Aliás, primeiro crio uma narrativa e só depois o chamo para a desenvolver.
O lugar de Jaime Ramos é o da escrita?
Sim, no papel. Embora algumas pessoas me telefonem a dizer que estão a passar à frente da casa do Jaime Ramos, na Rua do Barão de Nova Sintra, no Porto. Deixa-me feliz sentir que tem uma vida nova junto dos leitores.
Se alguma vez se fizer a biografia da personagem, veremos que teve um parto muito peculiar…
Mas muito simples [Risos]. Na altura, precisei de ser operado e, quando se está mais ou menos saudável, como era o caso, o hospital pode ser um lugar tranquilo. Fui muito bem tratado, com refeições sempre a horas. Durante um mês, consegui escrever a maior parte da Morte no Estádio. A certa altura percebi que precisava de um detetive diferente.
O que procurava de diferente?
Uma voz mais cómica, cínica e mordaz. Que me fizesse rir, mais do que rasgar sorrisos no leitor. O Jaime Ramos apareceu assim, um pouco fora do mundo, não porque fosse melancólico e soturno como o Filipe Castanheira que vinha do romance anterior, mas porque fingia esse deslocamento.
Sendo o hospital um lugar de emergências, sentiu que a sua prosa precisava de alguma operação?
Nunca valorizei a meditação sobre a criatividade ou o nascimento da escrita. O meu pensamento sempre foi: se é para escrever uma história, vou escrever uma história, servindo-me de tudo o que puder.
É mais um escritor da ação, do fazer, do que de grandes planos?
Cada livro é um road book. Nunca fiz planos. Começo com um problema, um cenário e um cadáver, que é fundamental. A história constrói-se à volta disso. O problema principal nunca é descobrir quem matou, mas as interrogações que essa morte gera.
Trinta anos depois, pode dizer-seque encontramos um retrato da sociedade portuguesa nos romances de Jaime Ramos?
O romance não é apenas uma máquina de contar histórias, é também uma máquina interpretativa. Nos meus romances, há coisas que são mais ou menos permanentes e que têm que ver com a desconfiança que o Jaime Ramos tem em relação ao Portugal moderno, às classes do poder e à endogamia. Como escrevo histórias no Portugal contemporâneo, não podia evitar metê-lo nos romances.
Até que ponto essa mudança efetiva da sociedade portuguesa foi um estímulo para a escrita?
A ideia de explicar a sociedade portuguesa em 12 romances nunca me passou pela cabeça. Isso é até um dos pecados mortais da literatura. Nos romances que escrevo, não tenho qualquer tipo de ponto de vista sociológico ou político. Nem nunca me passaria pela cabeça dar lições de História através da literatura, da mesma forma que por escrever policiais me interesso pela sociologia do crime. Ao contar uma história, procuro colocar em jogo as falhas do destino e os problemas habituais do romance: a morte, a perseguição, a dúvida, a suspeita. Claro que, ao longo destes 30 anos, houve coisas que me inquietaram, nomeadamente o facto de a nossa sociedade ser muito marcada pelo remorso, pela culpa, pela indiferença do poder.
Entre as suas inquietações, está também a dificuldade de um confronto com o passado em Portugal, mesmo sabendo que em 2022 chegamos aos 48 anos em democracia, face aos 48 anos de ditadura?
Não sinto que haja uma falta de confronto com o nosso passado. Pelo contrário: temos um excesso de identidade e de explicação, assim como uma tendência muito comemorativa. Também o Jaime Ramos está sempre a investigar o seu passado comunista, de militar, a sua vida amorosa. Não me faz impressão esse olhar para o que foi. Mas não podemos estar constantemente a ir buscar a nossa identidade ao passado. Há coisas que hoje nos fazem ser muito mais tolinhos, arrogantes e ignorantes, ou mais felizes e cultos, do que o passado. Mesmo em relação ao 25 de Abril, já se passaram quase 50 anos, está cumprido.
Em que sentido?
Temos eleições livres, um País desenvolvido, completamente diferente do que era em 1974. Não é preciso estar todos os dias a dizer: “Viva o 25 de Abril!” Está garantidíssimo. E ainda bem. Nem quero imaginar o que seria o País se fosse um prolongamento do regime do salazarismo e do fascismo. Seria um País impossível.
Como interpreta que uma força política como o Chega recupere frases como “Deus, Pátria e Família”?
O Chega não tem interpretação possível. André Ventura é um tolinho incapaz de criar empatia. Não fala, vocifera. O seu carácter egocêntrico explica o tom conflituoso em que vive. Não quer dizer que todos o sejam, mas é sobretudo um partido de lunáticos dentro desta vaga de partidos populistas que, felizmente, o retrato de Putin pôs agora a nu.
Dependentes das redes sociais?
Há períodos da nossa História em que há uma certa abundância de tolice. O Chega em Portugal tem muito a ver com isso. Na política, como na vida, há horror ao vazio e surgiu uma oportunidade para um partido da direita populista e reacionária. Ventura limitou-se a ocupar esse vazio.
Será apenas um epifenómeno?
Temos de ver as coisas a longo prazo. A classe de pessoas que ainda acredita que o Salazar é que era bom existe e flutua mais em alguns períodos. Mas não é significativa. No entanto, temos um eleitorado que em alguns momentos é muito suscetível, também porque foi afastado pelo mainstream. Algumas das suas questões não foram respondidas pelos grandes partidos.
Antes de ser reconfigurada, a direita precisa de ser configurada. Uma das grandes vitórias de Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos foi terem aniquilado os partidos a que alegadamente pertenciam
É uma inversão irónica do dar voz a quem não a tem?
Sim. As pessoas julgam-se identificadas naquele discurso muito zangado, permanentemente em conflito com seja o que for. Faz parte da natureza humana. E penso que estes 12 deputados nunca mais se repetirão.
Nas questões do presente que o preocupam está a regulamentação da vida, do sal à linguagem?
Regula-se e doutrina-se em excesso. Há coisas que relevam do bom senso, não precisam de mais legislação. Claro que são necessárias leis, mas a questão da linguagem é outra: pensamos que ao substituir a linguagem substituímos a realidade. Também é por fases. Tivemos a Revolução Cultural Chinesa com os seus desmandos e agora temos esta geração woke que acredita que vai mudar o mundo pela linguagem. Tem de haver um debate sobre o racismo e o colonialismo. Mas gostaria de o ver mais sobre a inclusão do que sobre a exclusão de pessoas.
A tolice que vê no Portugal atual também explica o chumbo do Orçamento do Estado? Há quem diga que a postura do PCP e do BE foi irracional e suicida.
E foi. Começou quando o Bloco de Esquerda e o PCP assinaram a certidão de nascimento da Geringonça. Estava claro que António Costa ia metê-los no bolso ao retirar-lhes as suas características fundamentais: serem partidos de protesto e de rua.
Do outro campo político, quase podemos falar num novo hashtag: reconfiguração da direita…
Antes de ser reconfigurada, a direita precisa de ser configurada, porque não existe. Uma das grandes vitórias de Rui Rio e de Francisco Rodrigues dos Santos foi terem aniquilado os partidos a que alegadamente pertenciam.
Descaracterizando-os?
Completamente. Rodrigues dos Santos porque não tem maturidade e experiência para perceber a tradição do CDS, uma força que aglomerava pessoas que vinham da direita conservadora, mais liberal, ou da democracia cristã que, no entanto, podiam juntar-se. Ao Rui Rio julgo que faltou mundo, uma perspetiva sobre as novas gerações do centro e do centro direita em Portugal. Toda a gente diz que ele é uma pessoa excelente há 20 anos. Só se pode pedir que regresse a esse tempo.
Numa entrevista recente, dizia haver um problema de opinião pública em Portugal. Porquê?
É muito mais fácil criar ativismos. Uma pessoa come quinoa e torna-se ativista. Não estamos habituados a criar uma opinião pública informada e culta. Mais facilmente sitiamos o adversário do que tentamos perceber o que diz ou quer debater. Antes de entrarmos no debate, uns são logo fascistas, outros comunistas. Sendo lamentável, é uma das características dos tempos atuais. É a estratégia dos extremos. Entre as várias coisas que fazem falta à sociedade portuguesa, uma é a moderação, sentido da sensatez.
Alterações climáticas, pandemia e agora uma guerra. O mundo está mais incerto ou nós é que andávamos distraídos?
Andámos distraídos. Há problemas que não são desta década. É curioso lembrar a consciência ecológica que surgiu logo a seguir ao 25 de Abril, no grupo Viver É Preciso, ligado à editora Afrontamento, e que foi engolida pelo discurso político, à esquerda sobretudo. A direita, graças a Gonçalo Ribeiro Telles, foi sempre mais conservatista, no sentido de ter cuidado com a Natureza. Mas as boas ideias nunca funcionaram em pleno. Devemos estar preparados para os desafios das alterações climáticas, é banal dizê-lo, mas precisamos de ter alguma cautela na maneira como lidamos com esse combate. Estamos a criar uma geração de pessoas eco-ansiosas.
Se queres a paz, prepara-te para a guerra, diz a máxima latina. Era de esperar uma nova guerra na Europa?
Houve vários alertas. É uma surpresa porque não havia um conflito militar aberto na Europa, e ainda mais em Portugal, há muitos anos. A Guerra Colonial foi à distância. Para quase todas as gerações vivas, isto é o horror em direto.
É possível ser neutro?
Há duas posições. De um lado, a que vê à distância. Temos historiadores, analistas, politólogos e militares que nos explicam o que está a acontecer. Mas depois há o nosso lado como seres humanos, sensível à mágoa e ao sofrimento.
Como antever o fim desta guerra?
Tudo depende de Putin, do que lhe acontecer e do que pode fazer acontecer. A Europa está manietada. O território da paz perpétua, segurança, Estado social, conforto e prosperidade foi abalado. Não se imaginava a voltar à guerra. Putin, pelo contrário, foi criado na guerra.
Putin está a viver a sua ficção ou a defender os seus interesses?
Há uma tendência para se evocar a solidão de Putin, como antes se olhava para a solidão dos tiranos e dos déspotas. É uma grande “personagem”, mas não tenho apreço. Há qualquer coisa que me afasta imediatamente: o seu cálculo do horror. O problema é que não há maneira de terminar o conflito sem apresentar uma vitória. O Ocidente tem a responsabilidade de negociar por todos os meios para que seja impossível apoderar-se da Ucrânia e sair impune. De contrário, o que nos vale sermos europeus se uma pessoa como Putin pode invadir a Ucrânia e causar milhares de mortes? Vamos voltar a comprar gás e a pôr lá os bancos e os hambúrgueres como se nada se tivesse passado?