“Aqui, as pessoas responderam ao medo e não tanto ao discurso científico, como na Alemanha”

Foto: Diana Tinoco

“Aqui, as pessoas responderam ao medo e não tanto ao discurso científico, como na Alemanha”

A mãe foi a principal responsável por instigar a sua curiosidade científica, e também foi dela que herdou a origem inglesa, essencial para a sua fácil adaptação à britânica Universidade de Oxford, onde concluiu o doutoramento na área de Fisiologia, Anatomia e Genética. Aos 40 anos, Clara Ferreira investiga como a mosca-da-fruta reage a uma situação de perigo quando está sozinha ou acompanhada, o que pode dar pistas sobre o comportamento humano. À VISÃO, a neurocientista da Fundação Champalimaud fala sobre a relevância dos cientistas na sociedade e destaca a importância de saber comunicar em tempos de pandemia. A bióloga critica a falta de investimento na Ciência, em Portugal, e admite estar a ponderar mudar-se para a Alemanha, o país de origem do companheiro, em busca de um maior equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal, fundamental para quem tem dois filhos, com 6 e um 1 ano. Sem pruridos, aborda o sexismo que tem testemunhado ao longo da sua carreira.

A pandemia contribuiu para uma revalorização da Ciência?
Sim, creio que contribuiu para uma revalorização da Ciência e do papel do cientista na sociedade, mas ainda não é claro qual será o impacto dessa revalorização no financiamento e nas carreiras dos investigadores.

Por outro lado, também deu visibilidade aos negacionistas… Como lida uma cientista com o discurso contra a Ciência?
Com bastante dificuldade… O negacionismo baseia-se em sentimentos e não em argumentos científicos. Na Fundação Champalimaud, desenvolvemos atividades de comunicação de Ciência para a população em geral, incluindo em escolas, e tentamos dar o máximo de informação sobre o nosso papel enquanto cientistas. É fundamental termos um relacionamento aberto com a sociedade para as pessoas confiarem mais na Ciência.

Mas dificilmente os negacionistas estarão disponíveis para esse diálogo…
É verdade mas, se houver criatividade, acredito que é possível. Talvez os negacionistas representem um desafio ainda maior do que o público que simplesmente não se interessa pela Ciência ou que considera a Ciência um assunto de elites, mas é fundamental a população perceber que, apesar de seguirmos um método científico rigoroso, somos pessoas acessíveis e que conseguimos falar do nosso trabalho de uma forma compreensível.

O que tem falhado na estratégia de comunicação da situação pandémica?
[Longa pausa.] Se eu comparar Portugal com a Alemanha, que tem uma Chefe de Estado que é cientista e que, por isso, ocupa uma posição de maior certeza, penso que lá a maioria das pessoas aderiu melhor às medidas sanitárias. Agora, como poderia ter corrido melhor em Portugal? Não sei responder a essa pergunta, porque depende tanto das autoridades como da população. Aqui, acho que as pessoas responderam muito ao medo e não tanto ao discurso científico, como aconteceu na Alemanha.

Essa preponderância do medo deve-se à falta de literacia científica em Portugal?
Claramente que essa é uma das hipóteses. Também falta o Governo enfatizar a evidência científica que está na base das medidas implementadas [para combater a pandemia] e, por outro lado, as pessoas sentem que a Ciência está muito distante delas, que é algo que fazem uns investigadores de bata no laboratório e que não tem nada que ver com elas. Se calhar, se percebessem melhor de onde vêm estas medidas, as pessoas seriam capazes de responder melhor às regras que lhes são apresentadas.

Está a investigar a forma como as moscas-da-fruta reagem ao perigo num contexto de predação. De que forma um animal como a mosca-da-fruta permite extrapolar para o comportamento humano?
Ao nível do comportamento, a mosca-da-fruta permite-nos fazer paralelismos com os humanos e com muitos outros animais. Ao nível dos processos neuronais é que já não é tanto assim, porque o grau de complexidade da mosca-da-fruta é bastante diferente. Contudo, conseguimos perceber vários mecanismos básicos no que diz respeito a como um cérebro consegue lidar com determinadas informações e processá-las de forma a produzirem certos comportamentos.

Quer dizer que temos comportamentos semelhantes aos da mosca-da-fruta?
Em alguns contextos, sim. No caso dos comportamentos defensivos, por exemplo, há bastantes semelhanças. Quanto aos outros comportamentos mais complexos, as semelhanças são menores.

As principais reações perante uma situação de perigo são a luta, a fuga ou a imobilização. Já sabemos o que nos faz optar por uma em detrimento das outras?
Sabemos alguma coisa sobre os contextos que nos fazem optar por uma ou por outra numa situação de predação. Se os animais tiverem um refúgio por perto, por exemplo, a tendência é a fuga para esse lugar seguro. No entanto, se estiverem num sítio de onde não podem escapar, o melhor é a imobilidade numa tentativa de passarem despercebidos ao predador. Agora, em termos dos processos neuronais, como um determinado tipo de comportamento é espoletado e não outro, ainda estamos a investigar como tudo isso se processa.

Repetimos muitas vezes que os seres humanos são gregários, mas as razões para isso são bastante interesseiras… Uma delas é o coletivo proteger-nos do perigo?
Exatamente. Esta agregação, que se vê por todo o reino animal, pensa-se que tem por base coisas bastante simples, como a proteção da predação, o favorecimento da reprodução e do cuidado da prole e, também, a facilitação da procura de alimento.

Também se tem dedicado à investigação das chamadas pistas sociais de segurança, ou seja, o que nos indica que o perigo passou. Isso poderá ajudar-nos a prever qual será o comportamento das pessoas à medida que a pandemia for sendo controlada?
No fundo, é isso que nós estudamos na mosca-da-fruta, mas nunca tinha pensado numa extrapolação tão direta para os seres humanos. Como esse estado de resposta ao perigo é revertido para um estado mais normal é algo que ainda está em aberto. Perceber isso num animal bastante simples dar-nos-á pistas sobre o que acontece em animais mais complexos, mas nunca poderemos fazer um paralelismo imediato.

O que falta a Portugal para ser uma referência na área da Ciência?
Portugal é uma referência na área da Ciência. A Champalimaud Research é conhecida mundialmente, e o País está muito bem cotado, em alguns setores, ao nível internacional. Nas Neurociências, somos claramente um exemplo. Noutras áreas, é incrível a Ciência que se faz com tão pouco financiamento. Na Champalimaud, o limite acaba por ser quase sempre imposto pela nossa própria criatividade, mas noutros sítios é preciso contar os tostões; mesmo assim, há muita Ciência de qualidade a ser produzida em Portugal.

Continuamos a ser essencialmente exportadores de cientistas?
Sem dúvida. É difícil ficar… Eu própria estou a ponderar começar o meu grupo de investigação lá fora… Há globalmente alguma instabilidade na carreira dos cientistas, mas há países com estratégias para incentivarem os seus talentos a regressar. A Alemanha, por exemplo, tem um programa de financiamento para quem fez o pós-doutoramento no estrangeiro conseguir voltar com boas condições. Aqui, não existem esses mecanismos de financiamento. Ao nível da FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia], por exemplo, o número de pessoas que obtém financiamento é restritíssimo.

Tudo se resume à falta de financiamento?
Falta de talento não há. Por isso, penso que sim. Alguns dos problemas são mundiais, como a falta de posições intermédias nas estruturas da Ciência. Vários países já estão a tentar solucionar essa questão, outros ainda não. Mas em Portugal há muito pouco investimento.

E esse investimento deveria ser público?
Aqui [na Champalimaud] temos investimento privado, mas eu penso que uma grande fatia do investimento devia vir do Estado. A Ciência faz parte da sociedade, e os avanços científicos são em prol da sociedade. Portanto, acho que a Ciência devia integrar uma estratégia nacional.

Até agora, nunca tive um entrave direto, mas vi, várias vezes, o papel das mulheres na Ciência a não ser valorizado de uma forma bastante explícita

A Ciência ainda é uma área dominada pelo sexo masculino?
Cada vez há mais mulheres na Ciência e, em certas áreas, até somos mais do que os homens. O que se passa é que nas chefias, em alguns contextos, continuam a dominar os homens, e as mulheres estão em níveis hierárquicos inferiores. É interessante ter tocado nesta questão das mulheres porque, mesmo na investigação, acontece muito estudar-se simplesmente os homens ou os animais machos e o sexo feminino tem ficado um bocado perdido no meio de tudo isso. O que se tem verificado, por exemplo, é que alguns fármacos provocam reações adversas nas mulheres, que não tinham sido identificadas nas fases pré-clínicas, porque não tinham sido feitos estudos com o sexo feminino. Esta questão está a começar agora a ser abordada.

Como se inverte esse paradigma masculino?
Uma grande questão é a representatividade. Apesar de cada vez mais mulheres frequentarem os cursos, depois continuam a não ocupar posições de liderança. São precisos apoios que permitam às pessoas terem famílias e também fazerem Ciência, tanto para os homens como para as mulheres, mas estas questões ainda pesam mais sobre as mulheres, começando pelo facto de as licenças de maternidade e de paternidade não serem equilibradas. Perante esta dificuldade de equilibrar a vida pessoal e profissional, acabam por perder-se várias cientistas pelo caminho.

Como se contraria o preconceito de que as mulheres têm menos apetência para a Ciência?
Basta olhar para o sítio onde trabalho para ver a Ciência espetacular que as mulheres fazem. Creio que quem perpetuou essa ideia foram pessoas que se sentiam em risco de perder os seus empregos, não consigo imaginar outra razão. Talvez também esteja relacionada com questões da vida pessoal, como saber-se que, a determinado momento, algumas mulheres têm filhos e que a produtividade baixa nessa altura. Agora, há imensas tentativas de ter isso em conta; por exemplo, está aberto um concurso na FCT em que o prazo para atingir determinado patamar na carreira é alargado quando se tem filhos.

A apetência para a Ciência deve ser estimulada desde a infância?
Completamente. Não faz sentido nenhum haver uma diferenciação entre brinquedos de menino e de menina. O meu filho mais velho e a minha sobrinha têm uma idade bastante próxima, e tudo aquilo em que ele está interessado, ela está interessada também. Tendo ambos acesso a tudo, os interesses são muitos semelhantes, e isso permite desenvolver as capacidades de outra forma. Se uma criança for ensinada que o seu papel é tratar da boneca, é preciso batalhar muito para sair daí.

Sentiu esse preconceito de género ao longo da sua carreira?
Nunca foi nada que me fosse dito diretamente mas, sim, sempre o senti um pouco, principalmente com alguns professores mais velhos, até mesmo no tipo de anedotas sobre o papel da mulher na Ciência… Havia sempre a ideia de que as mulheres estavam na Ciência porque era preciso estarem representadas, mas que em termos de capacidade dedutiva eram inferiores. Também sei de pessoas que tiveram muitas dificuldades quando engravidaram. Num caso em particular, uma mulher com uma carreira brilhante acabou por desistir da Ciência. Até agora, nunca tive um entrave direto, mas vi, várias vezes, o papel das mulheres na Ciência a não ser valorizado de uma forma bastante explícita.

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