Trocar as voltas à morte é o sonho de uma imensa maioria e uma promessa concretizável para os empreendedores da longevidade, dispostos a investir milhões para reverter o envelhecimento e prolongar os anos de vida saudável. É o caso do cientista inglês Aubrey de Grey, um dos fundadores da SENS (Strategies for Engineered Negligible Senescence), que dirige atualmente no estado norte-americano da Califórnia. Após identificar sete fatores responsáveis por doenças crónicas e várias formas de degenerescência, defende que o segredo do rejuvenescimento implica encontrar soluções para problemas como a alteração da estrutura molecular das células, a perda ou o crescimento anormal das mesmas, mutações de ADN e a acumulação de proteínas nocivas. Com fundos próprios e a angariação de doações, Grey pretende criar terapias inovadoras capazes de prevenir o declínio físico e cognitivo e permitir uma vida útil que pode ir até aos mil anos. Embora os seus estudos em tecnologia anti-aging tenham sido alvo de controvérsia no início deste século, acaba de receber o Prémio Bacon 2020, de Liderança de Pensamento em Superlongevidade, atribuído pela Coalition for Radical Life Extension. O investigador é um dos oradores da 3ª edição do evento Building The Future, dedicado à transformação digital. Liderado pela Microsoft e desenvolvido pela iMatch, vai decorrer em live streaming a partir de Lisboa, entre os próximos dias 26 e 28.
Como define um biogerontologista?
Considero-me um gerontologista biomédico. Investigo as bases biológicas do envelhecimento que estão na origem do aparecimento de várias doenças. A intenção é produzir novos medicamentos para prevenir essas doenças.
Porque diz que o envelhecimento é uma doença curável em vez de um processo natural?
Não lhe chamaria doença, antes um problema do campo da medicina regenerativa. O cancro e a tuberculose, por exemplo, são processos naturais, o que não quer dizer que sejam inevitáveis.
Quando avançou para o financiamento nesta área?
Comecei há 25 anos, ainda não se pensava no envelhecimento como uma questão médica passível de ter solução no futuro, com recurso a Inteligência Artificial. Ao longo dos anos, fui conseguindo motivar pessoas e angariar fundos para fazer investigação nesta área, ao ponto de vir a ser uma grande indústria.
Que caminhos levam à degenerescência?
Há duas décadas, identifiquei sete componentes do envelhecimento e ninguém me levou a sério. Contudo, muita coisa mudou nos últimos dez anos, graças aos trabalhos de Maria Blasco, uma gerontologista espanhola célebre, que descreve nove tipos de fatores de envelhecimento. Existem outros, que consideram seis, ou mesmo oito.
Mas quais são e como atuam?
Vou tentar explicar. Mesmo antes do nascimento, criamos danos ao nível molecular. Com a passagem do tempo, sucede aos nossos corpos o mesmo que acontece a uma máquina ou a um avião: dá-se um processo de desgaste. Só conseguimos acomodar uma parte desse desgaste, que acontece devido à acumulação de danos. É aí que as coisas começam a correr mal: desenvolvem-se processos inflamatórios e doenças, como a perda óssea e muscular, problemas cardiovasculares, Alzheimer ou doenças oncológicas.
Estamos programados, até no plano cerebral, para ter um tempo limitado de vida?
Não necessariamente. As células neuronais estão programadas para funcionar indefinidamente, e tal só não acontece por causa da acumulação de danos. Na doença de Alzheimer, por exemplo, a proteína tau acumula-se nas células cerebrais: algumas morrem e não chegam a ser substituídas. O mesmo para a doença de Parkinson.
Como se revertem esses processos?
Os radicais livres, que são moléculas tóxicas, têm uma vida curta, mas produzem danos que decorrem do metabolismo do oxigénio que respiramos, combinado com nutrientes dentro das células, na mitocôndria. O processo de extração de energia desses nutrientes gera os radicais livres, e não há maneira de o evitar. O que podemos fazer é remover esses resíduos para que não se acumulem ao ponto de serem nocivos ao nível do ADN. Outros danos conduzem à morte celular, como sucede na doença de Parkinson.
E na menopausa? O organismo deixa de produzir óvulos.
Nesse caso, existe, de facto, uma programação: há um número limitado de óvulos que se vão perdendo. Em todo o caso, poderíamos regenerar esses óvulos da mesma forma que os homens regeneram o esperma ao longo da vida. Já estão a fazer-se estudos sobre regeneração ovárica, para que a mulher possa continuar a ovular até mais tarde.
Numa Ted Talk que deu em 2005 [mais de 4 444 visualizações], afirmou ser possível prolongar a vida humana em 15 anos. E hoje?
Podemos conseguir prolongar a vida saudável até aos 100 ou 110 anos, sensivelmente, mas as novas terapias não são perfeitas e é pouco provável manter a juventude além desse limite. A tendência é aperfeiçoar essas intervenções com o intuito de reparar os danos autoinfligidos e prolongar a vida saudável por mais 30 ou 50 anos, na medida em que seriam administradas à mesma pessoa, de dez em dez anos.
Isso já foi verificado em cobaias?
Por enquanto, ainda não é viável usar a reparação de danos para prolongar a vida de qualquer organismo. Fazêmo-lo laboratorialmente, com recurso a truques não aplicáveis aos humanos. É preciso dominar razoavelmente a técnica num nível mais amplo, porque, ao reparar algumas coisas, podemos matar outras. Temos pela frente um longo caminho até conseguir terapias inovadoras que nos confiram décadas a mais de vida saudável.
Na prática, temos sempre de levar em conta o fator entropia, certo?
Correto. Seja qual for a idade, não importam os danos que aconteceram antes, quando se trata de repará-los.
Há diferenças entre as terapias de rejuvenescimento e as de extensão do tempo de vida saudável?
O prolongamento da vida é uma consequência do rejuvenescimento, decorrente da remoção de danos que originam as doenças e levam à morte.
Prolongar a vida em muitos anos – até mil anos, como chegou a afirmar – é uma metáfora?
Não é uma metáfora. Se olharmos para o impacto das doenças que surgem com o envelhecimento, elas são as principais responsáveis pelas mortes no mundo industrializado. Sabemos que aos 26 anos as hipóteses de não chegar aos 27 são menos de uma em mil: a permanecer assim, o corpo humano pode viver mil anos.
Admitindo essa hipótese, tem ideia dos custos médios envolvidos?
A produção de tratamentos inovadores é sempre cara, ou pouco acessível, mas não os ter também é muito dispendioso. Basta pensar que 90% de todas as mortes no mundo industrializado derivam do envelhecimento. Se morrer velho, terá estado doente por muito tempo, e isso é ridiculamente caro. Cerca de 80 ou 90% do orçamento médico do mundo ocidental é canalizado para os problemas de saúde em idades avançadas. A existirem, os novos tratamentos irão refletir-se numa poupança assinalável, por duas razões: por um lado, é mais barato manter pessoas vivas sãs do que doentes; por outro, as mais velhas serão mais produtivas e os descendentes também, pois não precisam de ficar a tratar delas. Em síntese, qualquer país estará interessado em fornecê-las.
Concorda com o historiador Yuval Noah Harari [autor de Homo Deus] quando ele diz que a morte é um problema técnico?
Não, porque há outras formas de morrer, ainda que menos frequentes.
Quais as implicações destas terapias, em sustentabilidade e no cenário de excesso demográfico?
Bom, faço-lhe outra pergunta: acha que seria válido ter uma cura para o Alzheimer? Ou para o cancro? Vê algum aspeto do envelhecimento relacionado com problemas de saúde que pudesse não ser uma boa coisa?
Ocorrem-me os tratamentos que matam células más, mas matam as boas pelo caminho.
Isso é outro assunto. Está a perguntar se precisamos de melhores fármacos, com menos efeitos secundários. Também apostamos nisso. Voltando à sua questão anterior, sugere que pode não ser boa ideia colocar o envelhecimento sob o controlo médico, que não se concilia com a sua crença de que os outros aspetos ligados ao envelhecimento também têm de ser considerados nesse campo.
Vendo então por outro ângulo: podemos evitar os fatores de stresse que contribuem para o desgaste?
O stresse não têm um grande peso aqui. Lembre-se de que estamos a falar em reparação de danos, e aí não é importante o quão rápido são criados. Se uma pessoa levar uma vida stressante e não for muito boa a lidar com isso, o desgaste pode chegar mais depressa. É sabido que a resposta ao stresse faz aumentar a produção de cortisol, que acelera a acumulação de danos no organismo. Isso significa que algumas pessoas vão precisar destes tratamentos biológicos com mais frequência do que outras.
A questão mantém-se: será sustentável?
Como expliquei, as novas terapias antienvelhecimento não serão apenas para os ricos. Pagar-se-ão a si mesmas e todos vão querê-las, pois ninguém quer ficar doente.
Já têm voluntários para os testes com humanos?
Sim, algumas destas terapias estarão em ensaios clínicos dentro de um ou dois anos. Tratando-se de pessoas com danos, eles terão de ser reparados ao mesmo tempo, mas ainda não chegámos a esse ponto. Por isso, escolhemos voluntários com uma doença específica, que acumularam um certo tipo de dano mais rapidamente do que outras pessoas. No caso da doença de Parkinson, que envolve perda celular, está em curso um ensaio clínico no Japão que usa a terapia das células estaminais, a fim de substituir as células, algo que o corpo já não consegue fazer por si mesmo. Há ainda as doenças que envolvem mutações genéticas e, havendo terapias que funcionam em ratos, o primeiro passo é identificar pessoas com essas doenças e ver se elas melhoram. Dentro de cinco ou dez anos, contamos ter novas terapias a funcionar razoavelmente bem. Podemos começar a combiná-las e a administrar mais de uma terapia à mesma pessoa. A partir daí, será viável tratar o envelhecimento de uma forma global.
Tem uma estimativa de quantas pessoas estão envolvidas?
Algumas centenas, talvez. Quando os ensaios clínicos forem concluídos, teremos milhões de pacientes a quererem estas terapias.
Equacionou submeter-se também a estes ensaios?
Depende do quão velho estiver para precisar delas [Risos]. Tudo se resume à questão do custo-benefício. Todos desejamos tratamentos que funcionem, mas admitamos: ninguém quer ser o primeiro!
Quando fala em “nós”, refere-se aos financiadores e à sua fundação?
Lidero a SENS Research Foundation e sou o rosto do movimento. Todos me conhecem neste campo de investigação, que iniciei há muito tempo. Estamos envolvidos nesta cruzada, cuja finalidade é ver o envelhecimento sob o controlo médico.
Inclui nesse movimento Raymond Kurzweil [cientista computacional visionário]?
Ele está mais interessado na Inteligência Artificial e na possibilidade de, a longo prazo, podermos transferir a consciência humana para máquinas. Não trabalho nessa área e achei que não valia a pena ir por aí, porque estamos a ser bem-sucedidos nas pesquisas orientadas para a reparação e manutenção dos corpos que temos hoje.