O mundo precisa desesperadamente de encontrar novas formas de combater as infeções causadas por bactérias. Porque se não conseguirmos travar o avanço das resistências aos antibióticos (um processo biológico através do qual uma bactéria sofre uma mutação que lhe permite escapar ao efeito do medicamento), infeções tidas como banais podem tornar-se fatais e cirurgias simples podem tornar-se inviáveis, pelo risco de infeção. Novas soluções é o que procuram os 300 especialistas que participaram, na semana passada, em Lisboa, no encontro anual da Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID, na sigla em inglês). Médico e professor de Medicina na Universidade de Sevilha, Jesús Rodriguez Baño, 53 anos, trabalha todos os dias para que isso aconteça. Atualmente, o especialista em epidemiologia tenta recuperar antibióticos, desenvolvidos há 40 ou 50 anos, e entretanto abandonados. Um exemplo disso é a fosfomicina, medicamento desenvolvido em Espanha, usado no tratamento de infeções urinárias, mas que também pode ser eficaz no combate a infeções disseminadas. Para um problema complexo, defende uma solução em várias frentes: melhor formação dos médicos, mais recursos e novos fármacos.
Qual é o estado atual da resistência a antibióticos?
Continua a haver um aumento da resistência em várias partes do mundo, em particular na Índia, em África e nos países do Sul da Europa, sobretudo alguns tipos de resistência, como na família de bactérias Gram-negativas, um grupo grande no qual estão incluídas várias estirpes. Algo que nos preocupa é, por exemplo, o aumento na resistência aos antibióticos carbapenem, que está a aumentar em todo o mundo, incluindo a Europa.
O que é especialmente grave, por se tratar de uma solução de fim de linha…
Digamos que eram antibióticos eficazes contra tudo e o que se tem verificado é que já existem resistências a estes também.
Qual é a origem deste problema?
É uma questão multifatorial. Uma das causas é o uso excessivo de antibióticos, há já muitos anos e em várias partes do mundo. Outra causa é a transmissão de bactérias entre pessoas, em zonas em que a higiene é deficiente (como acontece na Índia, por exemplo), e também o uso de antibióticos em animais. O mundo está muito ligado hoje em dia, a globalização encarrega-se disso. Há deslocação não só de pessoas como também de animais. E isso faz aumentar a disseminação das resistências.
É correto dizer que a atenção que tem sido dada ao microbioma [bactérias que vivem no intestino] veio reforçar a necessidade de limitar a toma de antibióticos, já que estes alteram o equilíbrio do mesmo, com efeitos que podem durar até seis meses?
Depende dos antibióticos. Uns afetam mais, outros menos. Mas sim, pode demorar bastante tempo até se restabelecer. O microbioma é um assunto importantíssimo e o seu estudo terá um impacto tremendo, mas estamos mesmo no início. Para já, andamos completamente às cegas.
Um estudo de um grupo de economistas ingleses previu que em 2050 a resistência aos antibióticos será um problema mais grave do que o cancro, matando dez milhões de pessoas por ano. Parece-lhe um cenário real ou algo alarmista?
Esse trabalho é uma previsão baseada em estimativas. O cenário parte deste pressuposto: se nada mudar, é isso que irá acontecer. Ora, eu acredito que vão ocorrer mudanças. Atualmente promovem-se programas de combate às resistências em hospitais por todo o mundo, defende-se um melhor uso dos antibióticos, assim como a redução da utilização destes fármacos em animais, e a melhoria nas medidas de higiene hospitalar. Mas ainda falta fazer muito, sobretudo ao nível dos países em vias de desenvolvimento.
E a nível individual, o que podemos fazer?
Só tomar antibióticos quando o médico os prescrever e seguir as indicações com rigor. Não pressionar o médico para passar um antibiótico só porque se tem febre.
Os médicos prescrevem sempre bem?
Não. O uso dos antibióticos, por parte dos médicos – e eu sou médico – é muitas vezes inadequado. É preciso, por isso, trabalhar na formação, a fim de evitarmos uma medicina defensiva, e melhorar as técnicas de diagnóstico, para que os médicos saibam qual a causa da febre.
Há situações em que os médicos receitam antibióticos de forma profilática. Numa cirurgia dentária, por exemplo…
Há circunstâncias muito concretas em que isso pode fazer sentido. Alguém com problemas cardíacos, com risco de infeção no coração, ou se há uma infeção prévia na boca. Mas em geral, em 99% dos casos, não há razão para se tomar um antibiótico de forma preventiva.
Mas sabe que é prática comum prescrever antibióticos para prevenir uma infeção?
Esta é precisamente uma das linhas de ação no combate às resistências. A prescrição inadequada ocorre em vários âmbitos. Nos cuidados primários, no hospital, na odontologia. O médico aprendeu assim. Alguém lhe ensinou dessa forma. Ensinar o contrário dá muito mais trabalho do que aprender bem desde o início. Mudar não é fácil.
Faz sentido a pessoa recusar-se a tomar, questionar a indicação do médico?
Em países como a Holanda, em que a população está muito sensibilizada para estes problemas, são os próprios pacientes que perguntam ao médico: “Preciso mesmo?” Em Espanha estamos muito longe disso. Não sei como é a situação em Portugal…
Será semelhante à espanhola…
Pois. Creio que é mais fácil começar por formar bem os médicos, ao mesmo tempo que se sensibiliza a população para não exigir antibiótico. Penso que, com isso, vamos começar a melhorar. É importante que as pessoas percebam que a toma de antibióticos deve ser vista como uma situação excecional. Quando é preciso, é preciso. Mas na grande maioria dos casos – como a tosse no inverno ou uma ida ao dentista – não é preciso tomá-los.
A Holanda e outros países do Norte da Europa têm valores mais baixos de resistência. Enquanto países como Portugal e outros do Sul apresentam taxas muito elevadas. Como se explicam estas diferenças?
Para começar, os países do Sul consomem mais antibióticos. Em segundo lugar, os nossos hospitais são menos eficazes a evitar a transmissão de infeções, de paciente para paciente. Estamos melhor do que outros países, mas pior do que no Norte da Europa, em que há menos doenças por paciente e a prática da lavagem das mãos está mais instituída. Algumas teorias apontam ainda para questões relacionadas com o clima – certas bactérias multiplicam-se mais em climas mais quentes. E até questões culturais: as pessoas no Sul da Europa tocam-se mais, é uma questão de costumes. Tudo somado explicará esta diferença.
Que medidas têm de ser tomadas?
Bem, as medidas serão as mesmas. No entanto, no Sul faltam mais meios, mais profissionais nos hospitais e mais tempo por paciente para que as decisões possam ser tomadas com mais calma. Por exemplo, esperar dois dias e voltar a ver um doente com febre para poder avaliar a evolução. O que só se consegue fazer sem agendas completamente cheias. Também faltará disponibilizar análises que descartem que o paciente necessita de antibiótico. E falta mais formação nesta área. Nas faculdades de Medicina temos de trabalhar muito mais a lavagem das mãos, a toma de antibiótico… É preciso que a política de saúde encare esta questão como prioritária, tal como tem sido feito com o enfarte de miocárdio ou o AVC.
É uma questão que não tem sido encarada assim?
Infelizmente, não. Tem estado no discurso. Mas é preciso demonstrá-lo com medidas, com ações, não apenas com palavras.
O que existe em termos de novas soluções, novas moléculas?
Não há muita coisa. Praticamente não há antibióticos novos. O que existe são modificações de antibióticos antigos, o que acaba por resultar em resistência pouco depois de entrarem no mercado. Há algumas linhas de investigação interessantes que passam pela inibição de alguns processos biológicos, impedindo a bactéria de provocar infeção, em vez de a matar [como acontece na abordagem clássica], reforçando alguns aspetos do sistema imunitário, com uma vacina, por exemplo. Soluções atrativas, mas ainda distantes da prática clínica.
Também se fala nos fagos [vírus que combatem bactérias], como alternativa aos antibióticos já existentes. Em que ponto estamos?
Os fagos são uma solução antiga, que se usa na Rússia e em países da antiga União Soviética, sobretudo para infeções na pele, em pomada. A novidade é o estudo da sua utilização em infeções disseminadas. O tratamento com fagos é bastante individualizado, porque o fago, que é um vírus que infeta a bactéria, é muito específico para cada bactéria, pelo que para cada infeção pode funcionar um fago e apenas aquele. Mas é uma linha interessante, claro!
Há ensaios clínicos que estão a ser feitos no âmbito do COMBACTE [programa europeu público/privado com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento de novos antibióticos]. São de que tipo?
Estamos a testar moléculas contra bactérias Gram-positivas, resistentes a carbapenem, e outros ensaios clínicos com antibióticos para tratar a pseudomonas aeruginosa, uma bactéria com frequência resistente. Outros ainda são de caráter preventivo, para pessoas que irão submeter-se a uma cirurgia, e também para a clostridium difficile, que causa diarreias graves.
Estamos a falar de novas moléculas?
Algumas são modificações de antibióticos antigos, outras são anticorpos monoclonais, que levantam o problema do preço. Ainda é preciso avaliar se são eficazes e quanto custa a sua produção.
A questão do preço é importante no desenvolvimento de novos antibióticos?
O problema é que não são rentáveis. Se comparamos um fármaco para a tensão, que a pessoa vai tomar durante 30 anos da sua vida, com um antibiótico – que se toma durante uma semana, cinco dias ou ainda menos, já que o objetivo deve ser tentar que não se use –, é fácil compreender que a indústria não esteja muito interessada neste negócio. É por isso que se estão a estudar novos modelos económicos, como o pagamento prévio, quer se use quer não, para garantir que o medicamento esteja disponível. Ou o pagamento depender do sucesso do tratamento.
Considera-se um otimista?
Não vamos transmitir uma mensagem de pânico, de que vai morrer toda a gente amanhã, o que não é verdade. Mas é certo que temos visto situações bem dramáticas, em determinados países e em determinados hospitais.
Já acontece não ter nada mais para se dar a um doente?
Sim, sim. Há situações em que se esgotam as soluções.
E o paciente morre?
Exato. Esta mortalidade deve-se, em parte, ao facto de se tratar de pacientes já em estado grave, em virtude de outras patologias, mas também porque não há tratamentos disponíveis para debelar a infeção. Mas creio que tudo o que se está a fazer trará resultados em breve. Acredito que a taxa de resistência aos antibióticos vai parar de aumentar e que vão surgir novas moléculas.