Apple Silicon, por Sérgio Magno
A chegada dos primeiros Mac com processadores Apple M1 veio demonstrar que as promessas aparentemente demasiado fantásticas de Tim Cook quando, em junho, anunciou que a Apple iria começar a substituir os processadores Intel pelos Apple Silicon, eram para levar a sério. Os primeiros testes aos Mac com M1 demonstram um salto de eficiência só comparável ao que aconteceu quando a Apple abandonou a arquitetura PowerPC para passar a utilizar a arquitetura x86 da Intel em 2005, ainda pelas mãos de Steve Jobs.
O nível de revolução é semelhante: a mudança de arquitetura dos processadores leva a uma mudança fundamental no sistema operativo e em toda a comunicação entre software e hardware. Mas se na altura do abandono do PowerPC a Apple estava, em larga medida, a entrar em ‘águas nunca navegadas’, agora a situação é bem diferente. Até se pode dizer que a criação de chips próprios para substituir os processadores da Intel eram o segredo mais mal guardado da indústria. Já há anos que os rumores indicavam essa opção e, apesar da boa capacidade de a Apple em guardar segredos, o trabalho de desenvolvimento com vários parceiros acabava, pelo menos em parte, por tornar-se público.
Ao contrário da grande mudança de 2005, que até gerou muitos anticorpos negativos entre os fãs da marca – afinal, a Apple estava a mudar para os processadores que sempre tinha desdenhado através de marketing agressivo – a mudança para Apple Silicon foi mais bem recebida e, como referido, preparada. Isto porque há vários anos que a Apple desenvolvia os seus próprios processadores para iPhone e iPad e a estudar soluções como o desenvolvimento de código ‘universal’, ou seja, apps capazes de correr tanto em iOS e Mac OS. A evolução do iOS para o iPadOS, que ganhou muitas funcionalidades típicas de um sistema operativo (SO) para computadores, foi outro sinal da opção que acabaria por ser oficializada este ano.
Já agora, é importante desmistificar que os processadores Apple A (para iPhone e iPad) não passam de chips ARM criados por terceiros. Até pode ter sido assim nas primeiras gerações, mas desde, pelo menos, a geração A4 que são os engenheiros da Apple que desenham a arquitetura dos processadores. É verdade que não é Apple que fabrica os chips, mas isso também pode ser dito de marcas como a Nvidia ou AMD e não é por isso que se coloca em causa a engenharia destas empresa.
Como é habitual, a Apple não foi a primeira a usar chips de arquitetura ARM em computadores. Além de soluções mais específicas, como é o caso de muitos servidores, a Microsoft já o tinha feito com o Surface e com o Windows 10. Mas, também como é habitual, a Apple conseguiu fazê-lo de modo mais otimizado. Voltando aos testes já referidos, é incrível a eficiência demonstrada pelos novos Mac com chip M1. Ao ponto de conseguirem ser até mais rápidos, através da tecnologia de emulação (Rosetta 2), a executar aplicações criadas para os Mac Intel do que os próprios. Tudo parece mais fluído nos Mac M1 do que nos anteriores Mac Intel equivalentes.
As vantagens de se criar processadores à medida do software e vice-versa já são há muito conhecidas. De tal modo que gigantes como Google e Facebook já o fazem em grandes máquinas onde são usados processadores criados especificamente para executar determinados algoritmos.
Agora que esta otimização chega aos computadores pessoais através da Apple, é de esperar que o mercado desperte para esta realidade. Não será de estranhar, por exemplo, que a Samsung, que também desenvolve processadores próprios, siga o exemplo da Apple e acaba por criar computadores com chips próprios. Ou mesmo que a própria Microsft acabe por fazer o mesmo, nem que seja de modo indireto, através de um desenvolvimento de versões do Windows mais próximo dos grandes parceiros do hardware, como HP, Dell ou Asus.
Se o mercado não responder e se, como previsível, a Apple continuar a desenvolver a série M, levando-a às máquinas mais poderosas, então o universo dos PC Windows fica numa situação difícil.
Travis Scott em Fortnite, por Rui da Rocha Ferreira
Quando vi as notícias a dizer que o rapper norte-americano Travis Scott ia ter um evento especial no jogo Fortnite, não quis saber. Já tinha visto imagens de um outro concerto feito no jogo, com o DJ Marshmello, e não achei particularmente entusiasmante (apesar de ter sido um sucesso, com mais de 10 milhões de espectadores). Mas no dia a seguir ao show de Travis Scott, quando vi que o mundo online estava em completo rebuliço, tinha de perceber porquê.
Fui ao YouTube ver um vídeo que um jogador tinha gravado e…. uau! Logo ali, naquele momento, percebi que este não era apenas mais um evento especial num videojogo, era uma experiência pensada ao pormenor, da componente visual à parte sonora. Um Travis Scott gigante à solta na ilha de Fortnite, com o cenário a mudar consoante a música e com os jogadores a poderem mexer-se, em tempo real, no meio daquela algazarra toda. Nunca tinha visto – muito menos jogado – algo assim e senti, verdadeiramente, que tinha perdido algo de único e especial ao não ter experienciado aquilo em direto.
‘Mas esperem lá, nas notícias dizia que isto era uma espécie de tournée, que ele ia ter o mesmo espetáculo reproduzido mais umas quantas vezes’. Fui pesquisar quais os horários mais indicados para ver no fuso horário de Portugal Continental e acabei por entrar por duas vezes no jogo, em dois momentos diferentes, para poder ‘viver’ aquele concerto. Hoje tenho ainda mais certeza do que tinha na altura: o que vi ali não foi uma simples performance digital de um artista ou uma das maiores jogadas de marketing do ano, eu vi ali um vislumbre do futuro.
Acredito que há pequenos momentos, que apesar de discretos, vão ter repercussões inimagináveis no mundo de amanhã. O Movimento 37 do AlphaGo é um dos que guardo com maior espanto na minha cabeça. E este do Travis Scott entra diretamente para o meu Hall of Fame.
Além da espetacularidade e da intensidade daqueles quase dez minutos, aquilo aconteceu num momento diferente: era abril e estávamos todos fechados em casa. Isso ajuda a justificar o porquê de mais de 25 milhões de pessoas em todo o mundo terem visto, em direto no jogo, pelo menos um dos concertos. Não foi só mostrar quão especial e espetacular pode ser um concerto digital. Não foi só mostrar como estamos a caminhar para a criação de um mundo digital, verdadeiramente imersivo, que vamos usar como escape e acréscimo ao mundo real. Não foi só usar de forma genial uma plataforma interativa para lançar um novo single musical. Foi perceber que o mundo mais do que estar preparado para este tipo de eventos, precisava, naquele momento, de algo assim. Enquanto o vírus nos assustava no mundo real, eu e muitos outros tivemos uma experiência inesquecível no mundo digital.
Não quero saber quem é o próximo artista a dar um concerto em Fortnite, até pode ser o Zé Cabra, mas garanto-vos que vou estar na primeira fila a assistir.
The Last of Us II, por Paulo Matos
Confesso que, quando o Rui nos desafiou para escrever este artigo, não encontrei um produto que me viesse imediatamente à cabeça. Amaldiçoei a minha memória, mas prometi a mim próprio que não ia recorrer ao arquivo para pesquisar as coisas mais interessantes que testei, vi ou senti falta. E prometi igualmente que seria uma escolha pessoal, sem dar primazia à inovação tecnológica que estaria subjacente.
Assim, houve três momentos que sobressaíram: o Samsung Galaxy Z Flip, cujo conceito de dobrável que fecha em concha me despertou um misto de apelo nostálgico com vislumbre do futuro (e também porque o vi, pela primeira vez, em São Francisco, em fevereiro, na última viagem de avião que fiz este ano); a PlayStation 5, pelo momento histórico de duas consolas de nova geração realmente potentes chegarem ao mercado ao mesmo tempo (e por me ter feito muita companhia nesta segunda fase de confinamento); e, por fim, apesar de parecer estranho até para mim, o produto que mais me veio à mente foi o jogo The Last of Us II.
Quando escrevi a review para a revista ainda não tinha terminado o jogo, mas tentei fazer um artigo sem spoilers. Da mesma forma que evitei ao máximo ler o que outros tinham escrito sobre o título da Naughty Dog precisamente porque queria receber todas as novidades do enredo diretamente, sem inputs exteriores que pudessem condicionar a minha experiência. Tinha acabado o jogo original há menos de um ano, pelo que entrar neste foi o continuar de uma jogabilidade que ainda estava fresca na memória. Não havia novidades aqui. Os gráficos são muito bons, mas bons gráficos em jogos há aos pontapés.
O que há aqui de verdadeiramente diferenciador é o arrojo de uma produtora num argumento que arrisca, que explora a complexidade das personagens, que mostra que o mundo está longe de ser branco e preto, que nos dá murros no estômago ao exibir as diferentes camadas de cinzento, que consegue estabelecer uma forte carga emocional entre o jogador e as duas protagonistas (Ellie e Abby). Na minha jornada até terminar The Last of Us II houve três grandes momentos-chave (não vou dizer quais para não estragar a experiência de quem ainda vai jogar) e foram alturas em que tive de parar um pouco, absorver o que tinha acontecido, desfrutar das diferentes sensações que me invadiam. Há uns anos falava-se que o cinema estava a perder a capacidade narrativa que o diferenciava para as séries (da BBC, da Netflix, da HBO, etc.). Agora sinto que as séries estão a perder para os videojogos. Não me canso de repetir a quem acha que os jogos são uma brincadeira de miúdos, a indústria de videojogos vale mais do que as indústrias do cinema e da música… juntas!
De certa forma, foi uma experiência tão forte que me ‘estragou’ os jogos que vieram a seguir. Nada esteve sequer perto de me dar tanto prazer. Tentei voltar a jogar The Last of Us II na PS4 e desisti logo porque senti que a primeira vez tinha sido perfeita e que iria estar a deturpar a experiência. Voltei agora a arriscar cautelosamente com a PS5. E tenho ouvido muitas, muitas (demasiadas) vezes a banda sonora do jogo no Spotify – aqueles acordes do Gustavo Santaolalla dizem tanto com tão pouco… E a imagem que ilustra a minha seção do artigo tem sido o wallpaper do meu portátil de trabalho há meses… Porque a Ellie e a Abby continuam na minha cabeça… Até quando me perguntam sobre eventos marcantes do ano.
DeepMind a prever a estrutura de proteínas, por Sara Sá
Primeiro o DeepBlue venceu o melhor jogador de xadrez do momento e o mundo fez Uau!; depois o AlphaGo venceu o campeão em título do mais complicado dos jogos e o mundo fez duas vezes Uau! Apesar do espanto coletivo, aqui ainda estávamos na fase da brincadeira de crianças. Quando a Inteligência Artificial começa a entrar no mundo da Medicina, ou como antecipou Demis Hassabi, cofundador do DeepMind, “a ajudar a compreender o mundo”, é que a coisa começa a ficar séria e a admiração ganha adjetivos como ‘revolucionário’. Aconteceu no final de novembro quando o AlphaFold, a versão do sistema de Inteligência Artificial DeepMind aplicada à Biologia, venceu a já antiga competição mundial de previsão da estrutura de proteínas, CASP, derrotando, por KO, todos os seus adversários humanos.
Na competição deste ano, o AlphaFold previu a estrutura de dezenas de proteínas com uma margem de erro ínfima, ultrapassando largamente todos os outros métodos computacionais e equiparando-se, pela primeira vez, à precisão dos métodos laboratoriais usado normalmente como a microscopia crio-eletrónica, a ressonância magnética e a cristalografia de raio-X. Técnicas que oferecem bons resultados, mas que custam milhares de euros e podem demorar mais de um ano até conseguirem apresentar a estrutura tridimensional de uma proteína. Já o AlphaFold consegue revelar a forma como cada aminoácido se organiza no espaço para formar uma proteína completa em apenas alguns dias.
E como é que isto pode revolucionar as nossas vidas? Praticamente de todas as formas possíveis. As proteínas são a base de toda a vida. São elas os blocos que se vão juntando para formar um ser vivo, são as enzimas que controlam a forma como armazenamos e gastamos energia, como reconhecemos e combatemos invasores. São o objetivo máximo da tríade: DNA, RNA, proteína. A função de cada proteína depende não só dos aminoácidos que a compõem como também da sua estrutura no espaço tridimensional. Pequenas e subtis alterações na forma como os aminoácidos se organizam traduz-se numa grande diferença na sua função. Conseguir prever, reorientar, produzir em laboratório proteínas irá certamente revolucionar quase todos os setores, dos processos industriais à forma como se estudam e tratam doenças. Até ao objetivo maior, preconizado por Hassabi, de compreensão do mundo que nos rodeia.