O Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (CEGER) lançou uma auditoria à plataforma de contratação eletrónica mais usada para as compras do Estado. A auditoria, que foi desencadeada no final de outubro, tem por objetivo apurar se a plataforma gerida pela Gatewit anda a desrespeitar a legislação atual, cobrando custos indevidos aos fornecedores do participam nos concursos lançados pelos organismos do Estado.
Manuel Honorato, diretor do CEGER, confirma a auditoria, apesar de recusar dizer o nome da plataforma em que a auditoria incidiu. Sobre as irregularidades registadas nas plataformas eletrónicas durante os últimos tempos, traça o seguinte cenário: «Cinco plataformas melhoraram o modo de funcionamento; uma delas está em fase de convergência com as nossas recomendações, mas não está a operar; e há uma plataforma que não está em conformidade».
O líder da CEGER não refere o nome – mas no mercado não falta quem oficiosa e oficialmente aponte o dedo à Gatewit. A própria Gatewit não esconde que foi alvo de auditoria, mas classifica a ação do CEGER como normal e defende que nada está a fazer de ilegal. Em causa está a cobrança de um serviço conhecido como «aposição do selo temporal», que valida as propostas de um ou mais fornecedores a cada iniciativa de compra que dá entrada num sistema.
«Nós temos uma opção de aposição do selo temporal que é gratuita, mas também temos uma opção de aposição do selo temporal que tem um valor acrescentado, devido à performance do serviço que é disponibilizado», refere Pedro Vaz Paulo, líder da Gatewit, explicando que a modalidade paga e a modalidade grátis têm velocidades e capacidades de armazenamento diferentes.
Pedro Vaz Paulo diz que, na economia nacional, há vários casos de serviços que cobram consoante a performance. E dá como exemplo as modalidades de acesso à Net comercializadas pelos operadores e que também se distinguem consoante a largura de banda e o tráfego gerado. Sobre a legalidade das modalidades pagas do serviço de aposição do selo diz: «Não lançamos um serviço sem ter por base os necessários pareceres jurídicos. Trabalhamos com quatro gabinetes de advogados».
A lei atual determina que todas as compras de organismos do Estado têm de recorrer a plataformas eletrónicas e apenas os ajustes diretos escapam à regra.
Supervisor em ação
Desde 2008 que o CEGER assume a função de supervisão das plataformas de contratação eletrónica. A missão foi desempenhada com relativa discrição, até que, em agosto, o Centro liderado por Manuel Honorato publicou um despacho que reforça a universalidade de todos os selos temporais. Resultado: todas as plataformas que suportam as compras do Estado, mesmo as que lucravam com esse procedimento, foram obrigadas a aceitar os selos emitidos pela concorrência ou por entidades externas credenciadas.
O despacho não terá produzido efeito imediato: Manuel Honorato confirma ter recebido ao longo de dois meses e meio várias reclamações encaminhadas pela Autoridade da Concorrência (AdC) e do Instituto da Construção e Imobiliário (INCI). Nessas reclamações, muitos fornecedores do Estado queixam-se da “não aceitação” de selos emitidos antes do despacho do CEGER ou da inexistência de informação clara sobre o assunto. Todas as plataformas acabaram por sanar estas irregularidades, mas uma delas terá mantido «práticas que não são aceitáveis». «Essa plataforma continuou a disponibilizar um caminho gratuito (para as compras do Estado), mas que não é fácil de usar. Uma vez que a plataforma não deu resposta às nossas recomendações, decidimos avançar com a auditoria», justifica Manuel Honorato, recusando sempre confirmar ou negar se a Gatewit foi visada no processo.
De acordo com os regulamentos em vigor, o CEGER pode efetuar auditorias sem aviso prévio. Caso as recomendações resultantes dessa primeira auditoria não sejam aplicadas na plataforma eletrónica, poderá ser feita uma segunda auditoria – e se se confirmar que as irregularidades se mantêm, a marca em causa pode deixar de constar na lista de plataformas certificadas e, como consequência, deixa de poder suportar os processos relacionados com as compras do Estado.
A origem das queixas
Há pelo menos duas associações que não aceitam o argumento de que é legal cobrar pelo uso de selos temporais da concorrência: A Associação Portuguesa de Empresas de Construção, Obras Públicas e Serviços (AECOPS) e a Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN). «São inúmeros os problemas que nos continuam a ser reportados pelos nossos associados», revela a AICCOPN num e-mail. Na AECOPS, a resposta apenas varia nos termos usados: «A AECOPS tem conhecimento de diversas práticas das plataformas eletrónicas que contrariam o princípio da gratuitidade, nomeadamente, a cobrança de funcionalidades que, em seu entender, devem ser disponibilizadas a título gratuito».
Ao crescendo de queixas não serão alheios dois factos: 1) o já referido despacho do CEGER que, em agosto, reforça a gratuitidade das ferramentas usadas em concursos públicos e estipula que os selos temporais têm validade em todas as plataformas; e 2) a entrada em cena da DigitalSign e da Multicert, que não são plataformas de contratação eletrónica, mas vendem selos temporais com um custo unitário de dois cêntimos quando nas plataformas eletrónicas são vendidos pacotes de selos que chegam a superar a centena de euros.
Segundo a AICCOPN há uma plataforma que cobra 188 euros (acrescidos de IVA) pela aposição de 40 selos provenientes de uma entidade externa. Apesar de ter um custo, a oferta desta plataforma implica uma espera de nove dias úteis. O Expresso confirmou que a Gatewit tem mantido uma oferta similar, mas os responsáveis da plataforma de contratação garantem, mais uma vez, que estão a respeitar o decreto-lei de 2008, que proíbe a cobrança pelos serviços essenciais e deixa em aberto a cobrança de serviços adicionais.
Passados seis anos sobre a publicação do primeiro decreto-lei sobre a matéria, todo o setor está na expectativa quanto à produção de nova legislação. Na primeira metade de 2014, foi enviada para o governo uma proposta de lei redigida pelo INCI, o Gabinete Nacional de Segurança, o CEGER, a Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública (ESPAP), entre outras entidades públicas e privadas. No documento, uma novidade sobressaía: a atribuição da função de regulador ao INCI (que vai evoluir em breve para IMPIC – Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção).
A proposta de lei terá sido debatida em reunião de Secretários de Estado, mas acabou por não avançar, devido à falta de consenso entre os executivos das Finanças, que alegaram que se trata de matéria relacionada com a despesa do Estado, e os executivos que tutelam a Economia, que defenderam ser uma iniciativa relacionada com a atividade económica.
A falta de consenso entre secretários de estado não deixa de ser sintomática: há organismos do Estado que chegam a suportar os custos relacionados com os selos temporais usados pelos fornecedores, mas nos últimos tempos, registou-se uma tendência para a redução dos custos suportados pelo Estado. Um exemplo: num contrato apresentado pela secretaria-geral do Ministério da Saúde, quatro das plataformas apresentaram propostas acima dos 24.000 euros, mas todas acabaram por reduzir o custo para 400 euros depois de negociação com os responsáveis pela seleção da plataforma que iria suportar as compras do ministério.
Rui Dias Ferreira, líder da Vortal, também considera que é chegada a hora de uma nova lei, que possa criar «um regulador forte, que tenha capacidade de impor caminhos aos intervenientes e tenha também capacidade sancionatória». «As portarias e os despachos não chegam para criar um regime de regulação. Tentou-se criar um regime de autorregulação, mas não resultou», acrescenta o líder da plataforma eletrónica que disputa com a Gatewit a liderança do mercado.
Nos bastidores, há quem garanta que dificilmente a nova proposta de lei estará em vigor antes do próximo ano – e mesmo assim, há dois fatores que poderão deitar por terra esta previsão: 1) a proposta de lei ainda poderá ter de ser trabalhada e aprovada na Assembleia da República antes de entrar em vigor; e 2) no próximo ano, há eleições legislativas, o que poderá alterar o figurino do Governo e do Parlamento e inviabilizar o calendário definido para esta proposta de lei.
Até à aprovação de uma nova lei, terá de ser o CEGER a manter a supervisão de um segmento que está ao rubro e que tem nas compras do Estado cerca de 70% da faturação. Manuel Honorato não esconde o desagrado desde a hora que assumiu a liderança do CEGER, em 2011: «já assumi que não concordo com a função que foi atribuída ao CEGER e disse à tutela que havia uma lacuna no que toca à criação de um regulador com poder para sancionar (as plataformas de contratação eletrónica)».