É uma espécie de estado da arte da desigualdade nos países mais ricos. O que aconteceu nas últimas décadas, as tendências mais importantes, as causas, as consequências, aquilo que sabemos e que ainda é preciso investigar. Lucas Chancel, professor da Paris chool of Economics e co-diretor do World Inequality Lab, foi o responsável por fazer um ponto de situação na abertura da conferência “Combating Inequality: Rethinking Policies to Reduce Inequality in Advanced Economies”, organizado pelo Peterson Institute for International Economics e coordenado por Olivier Blanchard e Dani Rodrik. Estiveram presentes algumas das maiores autoridades mundiais no tema.
As conclusões de Chancel são densas e difíceis de resumir, mas esta é uma tentativa honesta de lhe dizer em que ponto está a desigualdade no mundo desenvolvido.
1 – Sabemos pouco acerca de desigualdade
Mesmo quando existem dados e as fontes nacionais são fiáveis, é frequente que haja problemas de comparação entre países. Além disso, como dependemos de inquéritos para tirar conclusões, ficamos à mercê daquilo que as pessoas escolhem dizer. Isso significa que, muito provavelmente, tendemos a subestimar o problema. Por exemplo, os 1% mais ricos inquiridos na Europa dizem que ganham apenas 60% daquilo que aparece nos dados fiscais. Nos EUA, enquanto os inquéritos sugerem que o rendimento dos 5% mais ricos aumentou 33% entre 1980 e 2014, os impostos pagos e os dados de contas nacionais sugerem que o crescimento foi superior a 50%.
Mas até os dados fiscais são limitados, seja por problemas administrativos, seja pelo efeito da evasão fiscal. Na Rússia, o topo 0,01% tem 5% da riqueza, mas quando é tida em conta a evasão fiscal, essa fatia dispara para 12%.
Para ser justo, Chancel não o refere, mas há também apresente o argumento contrário. Precisamente devido à fragilidade dos dados, alguns académicos sugerem que a desigualdade é um problema menos grave do que tendemos a achar. Foi essa a capa da Economist há algumas semanas.
As boas notícias é que há cada vez mais investigadores e mais recursos dedicados ao tema. Inevitavelmente, o nosso conhecimento do tema vai melhorar.
2 – A desigualdade aumentou em quase todos os países, mas a ritmos diferentes
O século XX foi marcado por uma diminuição histórica da desigualdade. Os 1% mais ricos na Europa e nos EUA viram o seu peso na riqueza total a cair de 17%/20% n arranque do século para 8% nos anos 70/80. A partir desse momento, a tendência inverteu-se e voltámos a aproximar-nos dos valores anteriores.
O que provocou aquele alívio da concentração de riqueza? Uma mistura de fatores, que afetaram essencialmente os rendimentos de capital. Duas guerras mundiais, uma crise financeira histórica e o processo de descolonização tiveram motivaram essa transformação. Mas também houve políticas: muito maior progressividade fiscal, nacionalizações e mecanismos de controlo de capital. Ao mesmo tempo, o investimento em educação começou a dar frutos, conjugado com o reforço dos apoios sociais. Entre o impacto de curto e o longo prazo, a sociedade tornou-se menos desigual.
A regressão a que se assistiu nos últimos 40 anos não foi uniforme em todo o mundo desenvolvido. O peso do rendimento dos 50% americanos mais pobres colapsou de 20% para 12,5% desde os anos 80, enquanto os 1% mais ricos saltaram de 10% para 20%. Na Europa, a transformação foi mais suave, com o top 1% a crescer mais lentamente e os 50% mais pobres a perderem relevância mais devagar e conservando uma fatia substancial do rendimento.
Entre os mega-ricos também há diferenças: enquanto os 0,001% americanos mais ricos viram as suas fortunas disparar 650%, entre os europeus o crescimento foi 200%.
Estas diferenças de trajetória entre países sugerem que o crescimento da desigualdade não é inevitável, pelo menos nesta dimensão. O contexto e as decisões políticas podem levar a desfechos diferentes.
3 – A riqueza pública não tem aumentado
Os países mais desenvolvidos têm enriquecido, mas isso não foi acompanhado por um reforço da riqueza detida pelo Estado. Porque é que isso é importante? Chancel explica que uma sociedade mais desigual pode ser equilibrada com mais recursos do lado do Estado, que permitam fazer essa correção. Em teoria, também significa que será possível apostar mais na educação, o que, no longo prazo, potencia a mobilidade social e alivia a concentração excessiva de riqueza.
Hoje, países como Reino Unido e EUA já têm riqueza líquida negativa (quando se somam os ativos e se subtrai a dívida), um fenómeno provocado pelo crescimento do endividamento público e pela vaga de privatizações das últimas décadas.
4 – O reforço do capital privado não chega a toda a gente.
Nos Estados Unidos, os mais ricos têm beneficiado muito com as políticas e contexto económico desde os anos 80. O engordar dos 1% mais ricos está a colocá-los num território próximo da “Gilded Age”, quando as fortunas dispararam, mas conviviam com enorme desigualdade e pobreza extrema. Uma realidade dramática mascarada. Parece ouro, mas é talha dourada.
A Europa teve um percurso curioso. Apesar da Revolução Francesa, a concentração de riqueza no país manteve-se elevada até meados do século XX. No arranque do século, em França e Reino Unido, os 1% mais abastados chegaram a deter entre 55% e 70% da riqueza, muito acima do valor dos EUA. Contudo, quando chegou, a queda foi mais substancial e o agravamento pós-anos 80 mais leve. Foi criada uma classe média que, entretanto, não desapareceu.
A desigualdade nas taxas de poupança entre os mais ricos e mais pobres é um dos fatores por trás da maior concentração de riqueza, tanto nos EUA como na Europa. Pequenas diferenças no perfil de poupança têm efeito relevantes no longo prazo. A taxa de poupança para os 90% na base da pirâmide afundou nas últimas décadas. Caso se tivesse mantido estável, a riqueza dessa população poderia não ter pedido peso, ao contrário do que aconteceu.
5 – A crise não aliviou a desigualdade
Ao contrário do que aconteceu no passado, a Grande Recessão que se seguiu à crise 2008, não contribuiu para reduzir os níveis de desigualdade na maior parte dos países ricos. Embora tenha havido uma quebra da riqueza privada, ela recuperou relativamente rápido e, quanto à desigualdade, o perfil não se alterou. “O que parece particularmente impressionante é a capacidade dos grupos mais ricos de recuperar rapidamente e continuarem a acumular riqueza a um ritmo mais rápido do que o resto da população”, escreve Chancel.
Isso foi o que aconteceu com a riqueza. No campo do rendimento, esta conclusão não é tão clara, mas também não se observa uma mudança de perfil.
6 – É classe e não nacionalidade, estúpido!
Há duas correntes a desenvolverem-se ao mesmo tempo. Enquanto os níveis de desigualdade entre os cidadãos de diferentes países se tem aliviado, a desigualdade dentro de cada país (rico ou em desenvolvimento) tem aumentado. Confuso? Significa simplesmente que os americanos ricos e pobres têm o fosso cada vez maior a separá-los, ao mesmo tempo que o fosso entre chineses e americanos diminuiu.
A base da pirâmide mundial cresceu bastante e o topo avançou ainda mais rápido. Todos os que estão no meio – os 90% mais pobres dos países ricos – beneficiaram muito menos das últimas décadas.
Isto significa que, nalguns casos, os pobres dos países desenvolvidos deixaram de ser privilegiados a nível mundial. Por exemplo, os 20% americanos mais pobres estavam no percentil mundial 60-80 e, agora, caíram para 30-50. “Por outras palavras, nos países ricos, existem agora pobres à escala global”, escreve Chancel.
7 – Mais desigualdade significa menos mobilidade
Países com desigualdade menor (pense nos escandinavos) têm níveis de mobilidade mais elevados. Desigualdade moderada (França e Alemanha) convive com mobilidade moderada e desigualdade elevada (EUA) com menor mobilidade e maior influência do rendimento dos pais no rendimento futuro dos seus filhos. Isto é, se os seus pais forem ricos tem a vida feita, enquanto quem tenha pais pobres terá bastantes dificuldades em apanhar o elevador social.
Nos EUA, “a probabilidade de uma criança nascida nos 20% mais abaixo na distribuição de rendimento chegarem aos 20% de topo é de apenas 10%, enquanto a probabilidade de uma criança que nasceu no top 20% manter-se no top 20% é três vezes mais elevada”, pode ler-se no paper.
Por outro lado, um desenvolvimento positivo é o facto de a mobilidade intergeracional – que compara o progresso de uma geração para a outra – parecer ter ficado mais ou menos na mesma na Europa desde os anos 80, depois de ter aumentado no pós-II Guerra Mundial.
8 – Desigualdade racial e de género caiu, mas continua muito elevada.
As décadas mais recentes trouxeram um aumento da percentagem de mulheres na população empregada, o que se tem traduzido numa diminuição da desigualdade entre homens e mulheres. Contudo, esse progresso foi muito mais rápido entre os anos 60 e 80, abrandando significativamente a partir daí. É como se tivesse batido numa parede. A dificuldade em manter a tendência de aproximação sugere que o problema não tem apenas a ver com o tipo de profissões ocupadas por cada género, como sugeriam alguns. Caso fosse apenas essa a causa, assistiríamos à continuação da tendência de melhoria. A discriminação salarial é uma realidade. Nos EUA, calcula-se que cada um dos dois fatores expliquem 50% das diferenças salariais entre homens e mulheres.
O sexo feminino também está praticamente ausente do clube dos super-ricos. Apenas 1/4 dos 10% mais ricos são mulheres e, se olharmos para o top 0,1%, ainda é mais difícil encontra-las: só apenas 1 em cada 10.
No caso da desigualdade racial, o padrão é semelhante. Houve progresso a seguir à II Guerra Mundial – ajudado pela extensão do salário mínimo para vários setores de atividade -, mas o alívio da desigualdade de rendimento abrandou a partir da década de 80. Quanto à riqueza, nos EUA, os caucasianos têm aumentado a sua vantagem em relação aos negros (ronda os 700%!). Isso acontece porque o topo da pirâmide está cheio de homens brancos, mas também porque há diferenças cada vez maiores na classe média. Noutros países, como França, Alemanha, Itália e Portugal, não temos dados oficiais para fazer essa avaliação, porque as regulações não permitem essa recolha. Lembra-se da polémica recente com o INE? Ainda assim, o que sabemos é que, pelo menos no acesso a empregos, as evidências sugerem que a discriminação é um fator importante, por exemplo no acesso de muçulmanos ao mercado de trabalho.
9 – Acesso a educação, saúde e empregos de topo são essenciais
O que está a provocar o agravamento das desigualdades? Chancel reconhece que os avanços tecnológicos e a abertura económica ao exterior podem ter tido um papel, mas avisa que não devemos ficar descansados com essas explicações. Mesmo que lhes acrescentemos diferentes políticas fiscais, esses fatores não chegam para explicar as tendências do pós-anos 80.
Chancel destaca a importância das escolhas políticas em relação aos sistemas de educação, saúde e mercado de trabalho.
O acesso ao ensino superior parece ser especialmente importante e, nos EUA, tornou-se altamente desigual. Uma criança que nasça numa família entre os 10% mais pobres tem apenas 30% de hipóteses de entrar na universidade. Para quem nasça nos 10% mais ricos? Essa probabilidade dispara para 90%. Na Europa, estas diferenças são menos significativas, mas também existe uma correlação entre esse indicador e o nível de desigualdade social. Segundo Chancel, os estudos sugerem que o Estado deve ter um papel mais presente. “Investigação recente aponta para impactos positivos de um sistema de ensino superior altamente subsidiado na mobilidade intergeracional e frequência universitária nos EUA.”
Aquilo que se faz com o salário mínimo também parece ser importante e, também neste caso, há diferença clara entre Estados Unidos e Europa. No primeiro, o SMN foi representando uma percentagem cada vez mais baixa do salário médio. Na Europa ele resistiu melhor. Veja-se o caso de Portugal, onde, com os recentes aumentos, o salário mínimo já representa mais de 60% do salário mediano.
Outras características de uma desigualdade mais baixa citadas por Chancel: existência de sindicatos fortes, contratação coletiva, e a presença de representantes dos trabalhadores nos conselhos de administração (como acontece na Alemanha, por exemplo).
10 – Progressividade fiscal (ou ausência dela) é decisiva
Será que a ascensão do top 1% tem a ver com as suas qualificações mais elevadas e maior produtividade? Os dados respondem “não”. Por exemplo, os CEO alemães ganham, em média, 50% menos do que os americanos e nada sugere que haja diferenças muito grandes de produtividade entre as empresas dos dois países.
Outro fator que terá algum peso, mas tem um poder de explicação limitado é o efeito “superstar”. Isto é, embora estes homens do topo da pirâmide não sejam mais talentosos ou mais produtivos do que eram no passado aqueles que estavam nos seus lugares, eles beneficiam de um mercado muito maior nascido da globalização. Todo o mundo os pode contratar.
Para Chancel, uma explicação mais relevante está na progressividade do sistema fiscal. “As taxas de impostos foram reduzidas significativamente nos países ricos depois dos anos 70 e as variações têm estado relacionadas com mudanças com na fatia de riqueza detida pelo topo”, diz Chancel. Ou seja, países onde as taxas marginais de impostos não caíram ou recuaram menos tiveram agravamentos mais pequenos da concentração de riqueza. O oposto aconteceu em países como EUA, Reino Unido e Canadá.
As taxas marginais de impostos recuaram nos EUA e Reino Unido nos últimos 40 anos. Como mostra o recente livro de Gabriel Zucman e Emmanuel Saez, este ano, pela primeira vez, os 400 americanos mais ricos pagarão menos impostos do que os 50% mais pobres em % do seu rendimento. A EXAME entrevistou recentemente Zucman.
Por último, o período de maior progressividade fiscal – isto é, quando a diferença de impostos pagos era maior entre ricos e pobres – correspondeu também a um período de crescimento mais forte do que nos últimos anos.