É como tentar perseguir um carro de corrida montado numa carroça. O sistema fiscal atual já não é capaz de acompanhar os desenvolvimentos na economia. A digitalização e a viragem para os serviços estão a tornar cada vez mais difícil tributar as multinacionais onde elas ganham dinheiro, ao mesmo tempo que assistimos a uma corrida para o fundo, com os países a concorrem uns com os outros para ver quem consegue oferecer os impostos mais baixos às empresas. A OCDE – organização que junta os países mais desenvolvidos do mundo – reconhece as limitações do modelo que está instalado e está a preparar um conjunto de mudanças que tentarão resolver parte dos problemas.
Estas propostas estão divididas em dois pilares. Um destinado a lidar com as dificuldades em tributar esta nova economia digital, enquanto outro tem como objetivo criar um imposto mínimo internacional para empresas de maior dimensão. Johan Langerock, especialista em política fiscal da Oxfam, uma confederação de 19 ONG que tem defendido muitas destas reformas, ajuda-nos a explicar o que está em causa.
“Caso uma multinacional portuguesa tenha atividades em Espanha, deverá pagar impostos lá. Mas isso só acontece, segundo as regras atuais, se estiver lá registada ou se tiver uma presença física. O problema é que na economia digital, essa presença física já não é necessária para vender. A Google pode organizar todo o seu sistema de publicidade através da Irlanda. Vende por toda a União Europeia e paga impostos muito baixos na Irlanda. Essa situação não pode continuar”, sublinha. A partir do momento em que fique definido que o país tem o direito a tributar a empresa, apesar da ausência de presença física, a OCDE tenta também criar uma fórmula para decidir que fatia dos lucros serão tributados em cada jurisdição, dependendo do peso que eles tenham para as vendas das empresas.
Esse é o pilar 1 da reforma. O pilar 2 concentra-se em travar a competição fiscal agressiva e a evasão. Na prática, significa ter um imposto mínimo (França fala em 12,5%) para todas as multinacionais que faturem mais do que X milhões por ano. “Economicamente, será muito mais saudável, porque as multinacionais serão incentivadas a registar os lucros onde estão as suas atividades. Se os países forem ambiciosos, pode ser uma revolução fiscal para o bem-estar de todos os países e para o contrato social entre o Estado e o cidadão”, nota Langerock. “Toda a gente fala do pilar 1, porque está mais perto da ambição original, mas o que teria mais impacto seria o pilar 2. Se for bem feito, os efeitos podem ser enormes.”
Essa conclusão foi sublinhada recentemente num relatório de impacto realizado pelo French Council of Economic Analysis, que conclui que países como França, Alemanha, Estados Unidos e China praticamente não teriam receitas adicionais com a aplicação do pilar 1. A grande diferença viria do pilar 2, que poderia tornar inútil a “fuga” de multinacionais para países com impostos muito baixos. Porém, não é preciso ser um especialista em políticas internacional para perceber que será muito mais difícil chegar a um acordo em relação a esse ponto.
É perfeitamente possível que cheguemos ao final deste debate com um resultado frustrante. O pilar 2 ficar por aplicar e o pilar 1 servir apenas para complexificar o sistema, sem trazer verdadeiras novidades aquilo que Langerock chama “lasanha fiscal”. “Dentro do pilar 1, a OCDE está a complicar o sistema. Hoje, ele já é complicado, o que beneficia as multinacionais. Agora, a OCDE quer manter o sistema anterior e criar outro apenas para uma pequena fatia dos lucros”, critica. “A lasanha fiscal está a ganhar mais uma camada, em vez de ser reduzida.”
A complicação extra vem da intenção da OCDE de dividir os lucros das multinacionais em dois: normais e residuais, com os primeiros a manterem o sistema atual e os segundos a serem tributados no país onde é feita a venda e não onde os lucros estão alocados. Ou seja, uma (pequena) parte daquilo que a Google ganha com publicidade em Portugal passaria a ser tributado cá dentro.
As simulações do organismo francês referidas anteriormente apontaram para o elefante na sala: a reforma com mais probabilidades de chegar ao terreno é a que menos mossa fará no sistema. Isto não significa que o Conselho seja contra as reformas – pelo contrário, eles recomendam que elas sejam mais agressivas -, mas é um alerta importante sobre o risco que este tipo de reformas enfrentam: a procura do consenso vai-lhes retirando dentes e coerência até se transformarem em medidas simbólicas.
O Financial Times escreve que a OCDE questiona esses resultados específicos, mas que aceita a tendência geral que eles revelam. Numa entrevista dada há poucos meses à VISÃO, Pascal Saint-Amans, o homem que tem nas mãos o destino destas propostas, explicava os desafios que a política fiscal enfrenta atualmente e defendia a necessidade de colocar empresas como a Netflix a pagar impostos em Portugal.
Difícil parar um carro em andamento
Ainda assim, quem acompanha de perto esta área não podia estar mais entusiasmado. Depois de décadas de aplicação da mesma receita – “quanto menos impostos, melhor” -, a academia e as organizações internacionais têm hoje um olhar diferente sobre o mundo. “Este é um momento histórico. O que vimos nos últimos 5 anos são coisas que nunca se viram antes no mundo fiscal. E nunca teria acontecido sem maior pressão pública, seja de organizações como a Oxfam ou académicos como [Thomas] Piketty e [Joseph] Stiglitz. Até organizações como o FMI e a OCDE, que estão longe de ser de esquerda, dizem que não é sustentável”, aponta Johan Langerock. “Mesmo há dois anos, não acreditaria que a OCDE publicasse uma proposta acerca de um imposto mínimo.”
Mesmo que a reforma da OCDE acabe por desiludir, este comboio já ganhou demasiado vapor. A desigualdade crescente, o fraco crescimento, os focos de insatisfação, a ascensão do populismo, o envelhecimento e o aquecimento global deixaram os governos com fome de mais receita, seja por motivos morais ou práticos. Se os esforços de uma coordenação mundial falharem, a União Europeia tentará avançar sozinha e, caso essa via também acabe frustrada – o que é provável -, vários países já ameaçaram legislar unilateralmente e alguns já o começaram a fazer. Um cenário em que cada país comece a disparar medidas próprias para tributar às multinacionais – provavelmente agravando mais o ambiente de guerra comercial – é precisamente aquilo que G20 queria evitar, ao atribuir à OCDE o desenho de um novo sistema.
Uma mudança tão profunda no sistema fiscal envolvendo mais de uma centena países já é uma revolução na forma do debate, mesmo que no conteúdo acabe por desiludir. “É a primeira vez em 100 anos que as regras fundamentais do imposto são discutidas de forma aberta”, conclui Johan. “Será um primeiro passo para, no futuro, chegarmos a essa revolução fundamental.”