“Estamos aqui para anunciar uma ação histórica”, começa por dizer Janet Yellen. A secretária do Tesouro norte-americano foi o rosto da maior multa alguma vez aplicada a uma empresa do setor financeiro. Tratava-se de uma pesada sanção à Binance, a maior plataforma de criptomoedas do mundo, no valor de 4,3 mil milhões de dólares (3,96 mil milhões de euros).
Em causa estão vários crimes de lavagem de dinheiro, com a ocultação de mais de 100 mil transações suspeitas. O Tesouro norte-americano acusa a empresa com origem chinesa de “apoiar atividades que vão desde o abuso sexual de menores ao terrorismo”. “Inclui transações ligadas a grupos terroristas como o Hamas, a Jihad Islâmica palestiniana, a Al Qaeda e o ISIS”, refere Janet Yellen. A investigação durava desde 2018.
À EXAME, Pedro Borges, presidente do Mercado Bitcoin, entidade ligada aos ativos virtuais regulada pelo Banco de Portugal, explica que a ação das autoridades norte-americanas “não é uma surpresa para ninguém”. “Aquilo que surpreende aqui é a dimensão da coima. Gostava de saber como é que eles conseguem ter tanto dinheiro para pagar uma multa de mais de 4 mil milhões”, acrescenta, concluindo que “não será fácil manterem a operação nos Estados Unidos, depois disto”.
Para além da coima histórica, a Binance perdeu o seu fundador. Aos 46 anos, Changpeng Zhao, conhecido no meio como “CZ”, deixou o cargo, vai pagar uma multa de 50 milhões de dólares (46 milhões de euros) e arrisca-se a uma pena de prisão de até 18 meses.
Um novo tiro no porta-aviões do setor
Desde o final do ano passado, o setor das criptomoedas tem sido impactado por escândalos sucessivos. Primeiro, o colapso da FTX, com a detenção do seu presidente Sam Bankman-Fried. Agora, a Binance. Nada que afete, para já, o preço da bitcoin, a maior criptomoeda do mercado. Apesar de estar longe dos máximos históricos de quase 60 mil euros (em 2021), desde o início deste anoo seu valor disparou 116% para os 33,5 mil euros. Mas se no mercado os escândalos vão sendo camuflados, a credibilidade do setor não consegue escapar.
“Após incidentes como o caso FTX, a credibilidade das empresas de criptomoedas foi afetada. Estes eventos sublinham a necessidade de se focarem no cumprimento da lei e na transparência das suas ações para reconstruir a confiança entre os investidores e o público”, explica à EXAME Jeff Rose, fundador da Alliance Weatlh Management, gestora de ativos norte-americana.
Após incidentes como o caso FTX, a credibilidade das empresas de criptomoedas foi afetada. Estes eventos sublinham a necessidade de se focarem no cumprimento da lei e na transparência das suas ações para reconstruir a confiança entre os investidores e o público
Jeff Rose, fundador da Alliance Weatlh Management
Para além da Binance, outras empresas do setor têm processos recentes ou ainda a decorrer com as autoridades nos EUA. André Lages, cofundador da Lympid, empresa portuguesa de criptoativos com aprovação do Banco da Lituânia para atuar no espaço europeu, lembra que “também a Kraken foi acusada pelas mesmas autoridades, ainda que por razões distintas. A Coinbase (empresa que inclusivamente foi aprovada pelo mesmo regulador para ser listada no NASDAQ) tem também um processo judicial a decorrer”.
Pedro Borges confessa que não há escapatória possível: “Obviamente que estas coisas têm um efeito de curto prazo sempre negativo. Deixa sempre um rasto de preconceito em todos os ‘players’ e no ecossistema em geral”. E a Binance não é um “player” qualquer. Em 2021, de acordo com a CCData, as transações da Binance superaram os 800 mil milhões de dólares (736 mil milhões de euros). Mais do que todas as suas maiores rivais juntas. Os números impressionam, principalmente para uma empresa que tem apenas seis anos de vida.
O filho rebelde
Mas o maior trampolim para o crescimento exponencial da Binance está a ser agora o seu maior inimigo: a fuga à regulação. A própria empresa assumiu por diversas vezes que sabia que estava a incumprir. Tanto nos EUA, como noutras geografias onde atua. Desde 2021 que vários reguladores em todo o mundo têm fechado as portas à atuação da empresa, como o Reino Unido, Singapura, Japão ou o Canadá. Mas CZ soube sempre como dar a volta.
“É uma questão de identidade. A Binance é sinónimo de um conjunto de irregularidades, umas em cima das outras, desde que foi criada. Na altura não existia regulação para quase nada e foram criados assim. E como a regulação se foi criando, tentaram sempre fugir”, explica Pedro Borges, antevendo que a empresa “vai continuar a operar desta forma, apostando em regiões onde conseguem escapar”.
Também no Brasil, a Binance está sob uma grande investigação das autoridades. Em causa estão outros crimes, como a venda de produtos considerados ilegais pelos reguladores do mercado brasileiro. É o caso dos futuros, uma opção de investimento que implica a compra ou venda de um ativo por um determinado preço e data acordados. Esta modalidade foi proibida no país, mas para os investidores brasileiros conseguirem exercê-la, bastava mudarem o idioma da plataforma para outra língua.
“Apesar do desejo de independência dos sistemas tradicionais, isso não significa que o setor possa ignorar a lei”, conclui Jeff Rose. Em Portugal, existem 11 empresas reguladas pelo Banco de Portugal para o exercício neste setor. Nenhuma delas é a Binance, apesar de ter iniciado contactos para tal, no ano passado. Ainda assim, qualquer pessoa pode aceder à plataforma e investir no que quiser. Mesmo em produtos considerados ilegais pela ESMA, o regulador europeu de mercados. A empresa tem ainda uma parceria com o Futebol Clube do Porto, sendo um dos seus maiores patrocinadores. O seu nome está estampado na manga esquerda das camisolas oficias de jogo, da equipa de futebol masculino.

Numa carta enviada a todos os clientes, a que a EXAME teve acesso, a empresa começa por explicar o caso dizendo: “Temos o prazer de informar que a Binance chegou a um acordo com as autoridades dos EUA”, argumentando que se têm estado a “preparar” para este momento. “Os fundamentos do nosso negócio continuam sólidos como uma rocha”, conclui.