Quando, em 1998, Amartya Sen ganhou o prémio Nobel da Economia pelo trabalho relacionado com a “economia do bem-estar”, estávamos longe de pensar que a questão do desenvolvimento do potencial máximo de cada ser humano estaria tão no centro da discussão económica como está hoje. O economista indiano defende a prevalência da possibilidade de o ser humano cumprir o seu potencial máximo, em detrimento da procura desmesurada do crescimento do PIB, do progresso tecnológico e da industrialização. É aqui, também, defende Joana Clemente, que a educação, de uma forma integral e holística, entra como fator inevitável para esta reflexão sobre os Direitos Humanos.
”A educação é uma ferramenta para a liberdade. No fundo, o desenvolvimento é a liberdade de escolha, e esta liberdade de escolha é dada na medida em que o indivíduo consegue cumprir o seu potencial e agarrar as oportunidades propostas ao longo do caminho. E, pedindo-vos para não nos centralizarmos já na questão da educação [a Helpo é uma ONG que trabalha sobretudo neste campo], eu acho que isto é muito evidente, mas traz-me pensamentos muito complexos – como statement é muito bonito dizer que é preciso que todas as pessoas tenham acesso à educação. Hoje em dia, os números são otimistas – a matrícula é universal, o acesso à escola está facilitado… mas, na verdade, acho que esses números não contam história nenhuma”, lamenta a responsável.
“E atenção que eu sou uma otimista, mas a verdade é que acho que esta questão de nos termos comprometido com uma Declaração de Direitos é muito ambiciosa, mas tem sido também pouco ambiciosa, porque, em termos de medição de progresso, não conta aquilo em que isso se traduz na prática para as pessoas. Sim, há um esforço de oferta de oportunidades no acesso à educação, para que as pessoas possam ingressar no sistema, mas isso não quer dizer, mesmo que elas o façam, que isso tenha uma consequência, o que é muito mais grave.”
Falar de Direitos Humanos tem-se tornado muito desafiante, sobretudo porque às vezes parece que falta uma definição que, de forma simples, puxe o tema para longe do carácter “estratosférico”, lembra Ana Varela. A jurista, que há mais de 20 anos se dedica a estas questões, tendo passado pelo Conselho Português para os Refugiados e integrado vários outros projetos, em Portugal e no estrangeiro, pede que nos concentremos no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e “que diz tudo”. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, e esta parte todos nós conhecemos”, salienta a jurista. “Mas, depois a segunda parte do artigo, de que normalmente não se fala e que para mim é a mais importante, acrescenta o seguinte: “Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” Penso que está aqui o cerne da questão. Nós temos direitos, mas também temos deveres, e estes deveres estão alicerçados nesta consciência, nesta sensibilidade, nesta capacidade de termos empatia para com os outros e de reconhecermos nos outros um par, um igual, um irmão, uma irmã”, continua. Recordando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos surge depois da II Guerra Mundial, Ana Varela pede para darmos especial atenção ao momento que se vive agora na Europa, que vai exigir de todos nós uma maior consciência destes direitos e deveres.
Nós temos direitos, mas também temos deveres, e estes deveres estão alicerçados nesta consciência, nesta sensibilidade, nesta capacidade de termos empatia para com os outros e de reconhecermos nos outros um par, um igual, um irmão, uma irmã
ana varela, jurista
“É este espírito de fraternidade que vai possibilitar que cada um – acreditando verdadeiramente nisto, de que somos todos irmãos e irmãs, de que todos nascemos efetivamente livres e iguais em dignidade e direitos – tenha consciência de que temos de proteger e cuidar uns dos outros, enquanto uma “grande família” humana. E quando falamos em família é precisamente porque há este espírito de fraternidade que nos une. Quando isto falha, então os direitos humanos estão em risco. Ora, muitas vezes eles falham precisamente por isso”, resume.
As duas especialistas recordam que, apesar de haver leis, regras e boas intenções na prossecução da garantia dos direitos, a verdade é que há um papel que cada indivíduo desempenha na sua boa aplicação – e que é de pessoas que se faz esta monitorização do cumprimento dos direitos, salienta Joana Clemente, que frisa que “medir o sucesso e o insucesso” das políticas de Direitos Humanos, “com base em indicadores numéricos, é pobre e tem riscos associados”. Recorrendo ao exemplo da educação: “Temos muito mais pessoas escolarizadas do que há 20 anos, mas, para muitas delas, isso não tem consequências diferentes do que para aquelas que têm menos escolarização. E isso torna-as descrentes do sistema”. Joana explica que este defraudar de expectativas tem riscos para outros Direitos Humanos, como o cumprimento da paz social e a defesa das democracias. Por isso, pede mais atenção à forma como se transformaram as pessoas em números e que estes não falam por si, escondendo muitas histórias que precisam de ser contadas e consideradas.
Sobre empatias e bolhas
Mas, repetem, a Declaração continua a ser de particular importância se quisermos um mundo mais justo e mais fraterno, funcionando como uma espécie de “farol”, sobretudo em alturas conturbadas como a que atualmente se vive, com vários conflitos em países do Médio Oriente, uma guerra na Europa e os discursos a extremarem-se, num movimento para o qual muito têm contribuído as redes sociais e os seus algoritmos.
“Eu acho que há muita indisponibilidade [por parte das pessoas]”, reflete Joana Clemente, quando questionada sobre o que poderá ter levado o mundo a ter de lidar com posições tão extremas como aquelas a que temos assistido – desde a eleição de candidatos, como Trump ou Bolsonaro, passando pelo crescimento da extrema-direita até à bárbara invasão da Ucrânia pela Rússia.
“Se calhar vou dizer uma coisa totalmente absurda: não sei se tem que ver com o acesso escancarado à informação, mas acho que muitas pessoas têm muita certeza daquilo que sabem e partem de um ponto de partida muito estabelecido”, afirma a fundadora da Helpo. “Têm muito pouca disponibilidade para ouvir mais, para se porem em questão. E confesso que também tenho aqui um caminho a cumprir, porque eu própria, confrontada com estas abordagens, tenho cada vez mais aquele sentimento de que, “se calhar, não vale a pena”, porque os pontos de partida são tão distantes que uma pessoa às vezes olha e não sabe como pode acabar uma conversa”, admite, acrescentando com uma gargalhada que leva desta conversa a determinação para fazer diferente. “Como se chegou a este distanciamento? Não sei. Como é que isto se desconstrói? Também não sei. Esta falta de empatia parece que faz de nós menos humanos, mais máquinas. Depois parece que tudo se alimenta…”, conclui recostando-se no sofá do Martinhal Chiado, parceiro da EXAME na Girl Talk e onde a última conversa de 2022 teve lugar.
Como se chegou a este distanciamento? Não sei. Como é que isto se desconstrói? Também não sei. Esta falta de empatia parece que faz de nós menos humanos, mais máquinas. Depois parece que tudo se alimenta…
JOANA CLEMENTE, FUNDADORA DA HELPO
Ana Varela concorda e salienta que há riscos muito visíveis no nosso dia a dia, que contribuem para este distanciamento entre as pessoas e que, no limite, estará mesmo na base da dificuldade que sentimos quando pensamos no que falta cumprir em termos de Direitos Humanos.
“As pessoas estão a perder muito a relação mais pessoal, que nos ajuda a ter empatia com o outro”, aponta a jurista, recordando as horas que os miúdos e graúdos dedicam atualmente às redes sociais e aos ecrãs. A relação pessoal “ajuda-nos a sair da nossa bolha e da nossa zona de conforto, e ir até onde nós normalmente não vamos, ouvir uma realidade que normalmente não conhecemos, ouvir uma história de vida que é distante da nossa, mas que passa a ser próxima a partir do momento em que a partilhamos e nos dispusemos a escutar aquela pessoa”, esclarece. “Estes muros, que às vezes existem, passam muito pela desumanização do outro e pela abstração”, alerta. “E digo isto pensando que não sei se estamos pior ou melhor do que já estivemos antes. Mas sinto que as pessoas estão a adotar ideias muito extremadas, e é o mesmo que a Joana sente: que as pessoas estão cheias de certezas e são muito afirmativas. E quando somos muito afirmativos, já desistimos de ir ao encontro do outro. Já não há espaço para a escuta e para a empatia. E, aí, acho realmente que os Direitos podem estar em risco”, resume.
Numa conversa que aconteceu precisamente na véspera da celebração dos 74 anos da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Ana Varela e Joana Clemente passaram cerca de uma hora a dissecar apenas o primeiro artigo, numa conversa que convidamos o leitor a ouvir na íntegra, em breve, no site da EXAME. Falou-se de legislação, responsabilidade governativa, atuação individual, olhou-se para o passado e refletiu-se sobre o futuro – porque, recordam, os Direitos Humanos são acima de tudo um dever de todos nós, e podemos começar por algo tão simples como recordarmo-nos, mutuamente, de que, enquanto humanos, precisamos uns dos outros para sobreviver. Se não for por mais nada, que seja por instinto de preservação da espécie e não deixemos outros cair.
*Este texto foi originalmente publicado na edição de n.º 465 de janeiro de 2023 da revista EXAME