Nos últimos tempos, várias têm sido as viagens que tenho feito à China. Umas por convite, outras por trabalho. Lembro-me duma palestra que dei cerca de 15 anos, onde falei que “Um dia, a China vai ter o nosso almoço”. Hoje posso dizer “A China já tem o nosso almoço. Agora, cuidado com o jantar”.
Há cerca de 30 anos atrás, o PIB per capita da China era um pouco a cima de €250, e agora é perto de €9000, ou seja, 36 vezes superior. Nunca na história das economias do mundo algo assim tinha acontecido. E não me refiro apenas aos milhões de pessoas que, em menos de uma geração, saíram de pobreza e entraram na classe média, mas também aos comboios de alta velocidade, à rede gigante de autoestradas, aos inúmeros arranha-céus, à rede de transportes coletivos urbanos, aos portos e ao cada vez maior número de “unicórnios” (start-ups com uma valorização superior a mil milhões de euros).
Quando falamos da dinâmica empresarial Chinesa, há dois paradigmas predominantes sobre o país. Um é das empresas Chinesas como “copy cats”, um centro de produção barato, onde as empresas andam a copiar ideias e produtos (incluindo carros topo de gama). Este paradigma leva-nos automaticamente a pensar nas milhares de “lojas dos chineses” espalhadas pelo nosso país, e nos seus produtos baratos e geralmente considerada de qualidade menos robusta (as “imitações”).
Ultimamente surgiu um novo paradigma, que parece coexistir com o primeiro. A China como um país que ultrapassou os EUA no seu investimento e aplicação de Inteligência Artificial, Número de Patentes, e ainda como uma incubadora de milhares de empresas líderes mundiais nas mais diversas áreas. Algumas destas empresas tiveram o seu início baseado em cópias de produtos ou serviços já existentes, mas as suas políticas e práticas de inovação, os grandes investimentos e enormes mercados, e a captação de talentos, permite que hoje estejam na linha da frente. Um exemplo disso é a Tencent, uma empresa chinesa que desenvolveu o WeChat e o QQ e superou o Facebook em termos de valor de mercado. Outro exemplo é a gigante BYD. Esta empresa, baseia-se hoje numa plataforma automotiva mais avançada do mundo para construir os seus carros, diminuindo assim o risco, os gastos inerentes ao processo inicial, e aumentando a velocidade de produção, tornando-se altamente competitiva. Também a Xiaomi veio roubar o protagonismo e mercado à rivalidade Apple vs Samsung. No caso das empresas que começaram do zero, temos a maior empresa de Drones do mundo, DJI, que também se encontra na China. Este lado da China faz tremer muitos CEOs no mundo inteiro e as preocupações dos líderes das economias mais fortes do mundo.
Contudo, a minha investigação e curiosidade levou-me a encontrar uma outra realidade chinesa. Ocupando os dois paradigmas supramencionados, fica um terceiro que, a meu ver, tem implicações ainda mais profundas e onde está a ocorrer a dinâmica empresarial mais interessante da China. Para compreendermos isso, temos de ir a um mercado, de seu nome Mercado Huaqiangbei, na cidade de Shenzhen, onde em cada canto está um vendedor de peças de smartphones ou de qualquer outro dispositivo eletrónico. Foi neste local que nasceu o shanzhai, que significava “reduto de bandidos”, mas que hoje se refere a empresas baseadas em produtos falsificados ou pirateados. Aqui, se eu quiser, posso construir o meu próprio telemóvel a partir do zero, da forma que pretender. Ou até qualquer outro dispositivo, baseado na “internet of things” ou IOT. E foi este mesmo Mercado que fez de Shenzhen o berço de algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo, como a Tencent, gigante de jogos e internet, a empresa de telecomunicações Huawei e a fabricante de smartphones ZTE, para além da maior fabricante mundial de drones DJI e da fabricante de kits para robots Makeblock.
É difícil imaginar que, há cerca de apenas 35 anos, Shenzhen era pouco mais do que uma vila de pescadores ao lado da costa, que observava com inveja a grande e valiosa cidade de Hong Kong na outra margem. Desde essa altura para cá, a sua população aumentou mais de 5000% e a sua economia mais de 9000%, tornando-se assim num dos principais centros tecnológicos e financeiros da China, alcançando valores superiores a Hong Kong. O crescimento de Shenzhen é apenas um pedaço microscópico do crescimento das indústrias de tecnologia chinesas, neste 3º paradigma, baseado no conceito de uma cultura de design aberto onde o empreendedorismo acontece num ambiente acessível, rápido e baseado na partilha de conhecimento e recursos. Isto tem o lado negro de ignorar grande parte da propriedade intelectual, contudo explica como as empresas chinesas pegaram em ideias de produtos de sucesso no Ocidente e os ajustaram e inovaram, tornando-se muitas das vezes melhores, ou pelo menos mais atraentes para os chineses. Por exemplo, o WeChat copiou o WhatsApp e depois levou-o muito para além de um serviço de mensagens de texto unidimensional. O WeChat permite, para além das funcionalidades do WhatsApp, chamar um táxi, pedir comida, reservar viagens, consultar um médico, entre outras aplicabilidades que faz com que já tenha conquistado mais de 1 bilião de pessoas.
A plataforma de design aberto significa que quase tudo aquilo que gostaria de fazer, pode ser feito no interior deste ecossistema composto por fabricantes de circuitos, fornecedores de componentes, peças plásticas e metálicas, revestimentos, testes de certificação, entre outras ofertas; tudo isto muito próximo e em menos de seis dias, como no Mercado Huaqiangbei. Enquanto isso, nós na Europa levamos seis meses para criar um protótipo functional. É no seio deste ecossistema que estão a nascer mais Tencents e Xiaomis. Shenzhen supera atualmente todas as cidades chinesas em termos de capacidade inovadora e tem um crescimento económico médio de 25,8%, bastante superior aos 9,8% registados pela totalidade chinesa. A pequena vila de pescadores é hoje a gigante metrópole da economia chinesa. Quem não conhece esta China, não conhece o futuro empresarial no mundo.