É frequente vê-lo em conferências sobre energia a disparar críticas à fiscalidade que incide sobre o sector. Entre deslocações a Madrid para as reuniões da espanhola Endesa, que integra o grupo italiano Enel, e a sua agenda como presidente da Endesa Portugal, Nuno Ribeiro da Silva mantém-se uma voz ativa no debate da política energética do nosso país. Até porque é dela que depende o futuro da empresa que representa.
Enquanto gestor, já teve de lidar com três primeiros–ministros e meia dúzia de governantes com a tutela da energia. A rotatividade política facilita ou dificulta a vida das empresas?
Dificulta. Em particular numa área como a da energia, em que o curto prazo são cinco anos. Num domínio em que todos os investimentos têm uma implementação lenta por natureza, uma não continuidade das políticas e das regras obviamente que prejudica.
No caso português, houve alguma rotação, mas houve políticas na área da energia que até tiveram continuidade. O que é que notou como principais fatores de instabilidade?
Eixos da política energética enquadrados pelas políticas europeias, como é o caso da descarbonização, da eficiência energética ou do contributo das renováveis na produção de eletricidade, nunca foram eixos contestados pelos vários governos que se sucederam. Mas ao longo destes anos os vários responsáveis políticos pelo sector têm interpretações e atuações diferentes, com reflexo expressivo nas regras do jogo que são estabelecidas mesmo para esses eixos de consenso. Poderá haver uma certa aparência de continuidade, que na realidade tem estado sujeita a inflexões. Isso cria uma perturbação.
Um ex-ministro dizia que era prioritário pôr a energia ao serviço da economia. Muitas empresas continuam a queixar-se, ano após ano, que o custo da energia em Portugal é um entrave à sua competitividade. Concorda?
Dizer que a energia deve estar ao serviço da indústria é uma visão anacrónica. Há muitas décadas, na fase pós-Segunda Guerra Mundial, na criação de infraestruturas energéticas para permitir o desenvolvimento económico, o próprio Estado assumiu um papel de promotor. Aí começou essa lógica de que a energia é um input de custo da atividade empresarial que deve ser subsidiado. Esse paradigma mudou, sobretudo a partir dos anos 80 e 90.
Mas há países onde ainda hoje a indústria tem condições especialmente competitivas em relação à energia. É o caso da Alemanha…
Sim, e também de Portugal. Desde logo, com os subsídios que se dão à eficiência energética. Além disso, à indústria não é imputado o sobrecusto das renováveis.
A indústria tem um mecanismo de interruptibilidade [é paga pela disponibilidade para o seu abastecimento ser interrompido em momentos críticos]. E há o facto de o IVA ser recuperável. Existe, apesar de tudo, um conjunto de discriminações positivas.
Acha infundada a ideia de que a indústria portuguesa tem na energia um empecilho?
Hoje não se pode ver o sector energético como um sector que tem de estar a subsidiar outros domínios da atividade económica. É uma visão anacrónica. Essa leitura de um sector escravo de outro ou de outros não cola com uma economia moderna, em que cada um tem de puxar pela sua vida e ser sustentável economicamente. Os preços da energia em Portugal são um ónus à competitividade das próprias empresas? É curioso que se for ver na Internet declarações do tipo “a eletricidade em Portugal é a mais cara da Europa”, abre um jornal espanhol, ou italiano, ou francês e vê as mesmas declarações. Há sempre uma tendência para encontrar um bode expiatório para o sector energético. Aparece muito o argumento de que “mesmo que não seja mais caro em termos absolutos, tem de se ver em paridade de poder de compra”. A questão da paridade de poder de compra não se aplica só à energia, pois tem a ver com a maturidade das economias. Na energia, onde os combustíveis e os equipamentos são importados e os preços são formados no mercado internacional, eu não tenho a possibilidade de chegar a um fornecedor de carvão, ou gás natural ou petróleo e dizer: “Olhe, como o meu país é um país de renda média, faça-me aqui um desconto e associe o preço do barril de petróleo a um país remediado.”
A fiscalidade seria a forma de um país que não tem possibilidade de influenciar o preço internacional dos produtos os tornar mais acessíveis?
Exatamente. Há uma situação um bocadinho maniqueísta, pouco coerente, no mínimo, por parte dos governos, em criticarem as empresas energéticas e lançarem suspeições sobre elas, pelo preço final da energia ser elevado, esquecendo-se que o principal problema são os governos. O sector tornou-se, na Europa, a “vaca leiteira” das finanças públicas. Tem medidas que poderão ser legítimas, mas deviam ser arrumadas na gaveta adequada. A título de exemplo: como cidadão, não tenho nada contra o continente contribuir para que os preços dos produtos energéticos nas Regiões Autónomas sejam idênticos aos do continente.
Mas acha que isso devia ser financiado pelo Estado.
Naturalmente. Não é o sector que tem de cobrir esse custo. Veja o caso das tarifas sociais. É uma medida de caráter social. O que não é compreensível é que esse custo seja varrido para o bolso das empresas. Quando fui secretário de Estado da Energia, tinha as empresas públicas e tentava pôr ordem nos custos. Mas quando discutia com as administrações a otimização de custos imediatamente me diziam: “Olhe, esta barragem saiu mais cara porque entretanto as pessoas do seu partido e o presidente da câmara pediram também para meter nos custos da barragem três estradas, quatro chafarizes, o arranjo da igreja, etc.” Quando entramos nisto, ninguém se entende, é um saco azul, vai tudo para lá, perdemos a noção do que são os custos industriais que as empresas do sector têm.
Sendo difícil mexer no custo da energia e reverter os níveis de fiscalidade, o que é que o país pode fazer para ter uma indústria mais pujante e competitiva?
É um problema de quadratura do círculo. As diferenças de preços entre os Estados Unidos e a Europa incidem fundamentalmente na fiscalidade. Há que enfrentar pelos ‘cornos’ o problema de o sector energético ter vindo a acumular um conjunto de sobrecustos que nada têm a ver com o processo industrial dos produtos energéticos. Não se pode dizer que estamos muito preocupados com os preços da eletricidade, do gás natural, do GPL, do gasóleo e da gasolina e depois carregar esses produtos com a sobrecarga de fiscalidade e custos políticos.
No que respeita à concorrência no sector energético, que aspetos podem ser melhorados?
É um clássico a suspeição sobre as práticas de concorrência no sector energético. O sector talvez ainda hoje seja vítima do pecado original da história das sete irmãs [da indústria petrolífera] e do processo contra a Standard Oil do senhor Rockefeller. A realidade hoje é completamente diferente. É inquestionável que hoje existe concorrência no sector do gás e da eletricidade, ou mesmo no dos combustíveis. Nunca houve tanta concorrência como hoje. E há muitos sinais nesse sentido. A diferença de preços, por exemplo, no caso dos grandes consumidores. A diferença de produtos que se verifica mesmo nos consumidores domésticos.
Porque é que na eletricidade a amplitude de descontos para o consumidor doméstico andará entre 5% e 10% e nos supermercados o consumidor pontualmente consegue encontrar descontos de 50% em determinadas referências de produto?
É uma excelente questão. É que mesmo 10% de diferença de preço na eletricidade, um produto igual para todos os consumidores, é extraordinário. Se eu tiver uma vantagem de 10% sobre o meu competidor nos custos que eu controlo, como na realidade numa fatura de 100 euros há uma caixa negra de impostos e taxas que é mais de 50% do valor final, esses 10% só se refletem em 5% na fatura final. Esta é uma situação extremamente ingrata com que nós, as empresas, temos de lidar.
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Marcos Borga
A Endesa é um dos maiores fornecedores de energia em Portugal no segmento industrial, mas o segmento doméstico permanece dominado pela EDP, mesmo havendo ofertas mais baratas. Porquê?
É verdade, a Endesa está a liderar os consumidores industriais com 29% de quota. O que é que acontece na baixa tensão normal, ou seja, os consumidores domésticos? Em Espanha havia um operador dominante, a Endesa, e houve uma distribuição de zonas por diferentes operadores, de modo a evitar que o rolo compressor do operador dominante se mantivesse.
Teria feito sentido em Portugal repartir os seis milhões de clientes da EDP Serviço Universal (EDP SU) por várias operadoras de forma administrativa?
Exatamente, era uma opção. Em Portugal manteve-se todo o universo de clientes na EDP SU.
É muito mais difícil para qualquer operadors ir ganhando quota com um incumbente que se manteve intocável no seu castelo.
Hoje, quatro milhões de clientes já estão na EDP Comercial, e não na EDP SU. A dificuldade de ir “roubá-los” tem que ver com a posição que a EDP tem em toda a cadeia de valor, ganhando dinheiro na produção e na distribuição e, por isso, podendo perder na comercialização?
Tem a ver com isso, mas também tem a ver com uma coisa muito mais crua. A EDP tem uma óbvia vantagem, que é o facto de os consumidores estarem praticamente ao custo de um clique ao mudar da EDP SU para a EDP Comercial. Para os novos atores, conquistar um novo cliente implica um gasto na ordem de 50 euros por cliente, o que, com os baixos consumos médios dos clientes domésticos em Portugal, obriga a que tenha o cliente fidelizado um ano a 18 meses para recuperar o investimento. Depois, o facto de o operador de rede ser uma empresa que tem o nome do Grupo EDP e é associado à empresa que garante que o serviço se mantém lança dúvidas nos clientes relativamente a mudar para outro comercializador.
Há quem defenda que o sector elétrico em Portugal deve evoluir para um modelo de faturação mais próximo do das telecomunicações, com uma prestação mensal fixa com um plafond de kilowatts/ hora para consumir. Para as elétricas seria positivo?
Tudo o que seja uma faturação mais transparente, simples e fiável é bom para as empresas elétricas, que são alvo de muita desconfiança e suspeição. Há vários modelos. Em Espanha há tarifas que são alteradas de 15 em 15 minutos, e isso pode levar a que passe a ter faturas com mais de uma dezena de páginas e que são absolutamente impenetráveis, além do custo de emissão dessas faturas.
Fora da energia, que futuro vê para o desenvolvimento económico do país? O turismo tem crescido de forma espetacular. Há outras indústrias que possam ser geradoras de emprego de forma sustentada?
Portugal está num momento muito positivo para ser interessante no quadro de atrair investimento e competências. Teríamos de fazer as coisas muito mal para o país perder essa aura que tem vindo a ser reconhecida.
Se há países que se projetam em áreas muito específicas, como é que posicionaria Portugal?
É positivo que tenhamos fortes apostas em serviços. O turismo tem milhentas vantagens para a economia. É o sector onde maior valor acrescentado nacional existe, e gera externalidades em termos de recuperação do património construído e valorização do património cultural. Mas há outras áreas que podem permitir impulsos muito significativos na economia nacional, como a prestação de serviços de educação e de saúde. A construção da escola da Universidade Nova, em Carcavelos, é um caso exemplar de como inteligentemente uma escola que já ganhou o seu prestígio na área da economia e gestão se pode tornar uma fonte de rendimento para o país. Veja a importância que o ensino tem na economia inglesa: há cidades inteiras ancoradas na economia dos polos universitários. Na saúde, é reconhecido que temos profissionais de saúde de valor igual ou superior à média de outros países desenvolvidos. Podemos ter aí um segmento de extraordinária relevância. Na agricultura, não tendo terrenos em grande quantidade, nunca podemos competir com os grandes produtores, portanto aponta-se para produtos transformados de nicho.
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Marcos Borga
O rosto e a voz da Endesa
Nome
Nuno Manuel Franco Ribeiro da Silva
Vida
Tem 62 anos. Formou-se em Economia, Política e Planeamento Energético pela Universidade Técnica de Lisboa. É uma das vozes mais ativas em Portugal em debates sobre energia. Quando jovem praticou equitação.
É adepto do Benfica, mas entusiasma-se mais com râguebi do que com futebol.
Carreira
É professor universitário desde 1983. Foi secretário de Estado da Energia entre 1986 e 1991 e deputado do PSD até 1996. No sector privado, passou pela administração da Somague entre 1998 e 2005. Desde 2005 que lidera a subsidiária portuguesa da espanhola Endesa. É ainda vice-
-presidente da direção da AIP e membro do conselho geral da Associação de Energias Renováveis.
Futuro
Questionado sobre os seus projetos para quando se desvincular da Endesa, dá a entender que não tem ambição nem vocação para se tornar empresário por conta própria. Mas continuará a ser um observador atento da política energética em Portugal.