Liderou a reforma do IRS em 2014. O polémico quociente familiar foi uma das medidas propostas pelo grupo de trabalho presidido por Rui Morais, depois adotado pelo Governo de Passos Coelho e, entretanto, eliminado por António Costa. Encarou sem surpresa este volte-face, garante. Pragmático, o professor catedrático acha que “a democracia é um sistema ineficiente, os pesos e os contrapesos são gigantescos, mas é o melhor que existe. E quando se é democrata, tem que se assumir que fazer uma reforma fiscal está sujeito a isso”.
Que balanço faz da reforma do IRS?
Basicamente, o que voltou para trás foi o quociente familiar e pouco mais. No fundo, era uma medida emblemática, muito discutível, portanto até era esperado que fosse revogada. Mas como os contrapesos não foram eliminados, o imposto tornou-se mais gravoso para quem tem rendimentos médios/altos. Houve um aumento da progressividade. Quando as medidas técnicas se transformam em debates políticos, é claro que a perspetiva fica diferente. Isso é legítimo e democrático, mas é uma perspetiva diferente, e pura e simplesmente eliminou-se esta medida [quociente familiar]. Porém, não se teve em conta as repercussões noutras normas, nomeadamente ao nível de limitações, das deduções, etc., e o imposto tornou-se mais progressivo. Aliás, a progressividade do imposto é um problema muito complicado. Já temos taxas efetivas na ordem de 50%.
A carga fiscal está alta de mais?
Nas finanças públicas decide-se primeiro a despesa e depois decidem-se, dentro do possível (há sempre a questão do défice), os impostos para cobrir essa despesa. O problema está na despesa e os portugueses não querem abdicar do atual nível de despesa. A maioria de nós tem uma visão de um Estado paternalista; é uma mentalidade de desresponsabilização. Há alguém que tem de tomar as opções por nós. As pessoas preferem transferir para o Estado determinadas responsabilidades. Nem é partilhá-las, é transferi-las.
E há um preço a pagar.
Não há ninguém, não existe um político ou um partido que não gostasse de descer os impostos, até porque também os pagam. Mas nós temos um Estado de providência e não queremos fazer alterações. Estamos sempre a exigir despesa e depois esquecemo-nos que temos de pagar a conta. Eu até percebo, porque somos um país muito pobre dentro dos países mais pobres que pertencem ao clube dos ricos. Estamos mesmo naquele limiar dos remediados e temos medo de perder a proteção do Estado.
A carga fiscal não é, então, um problema técnico. É um problema democrático.
Sim. Um partido que se candidatasse com um programa de redução substancial de prestações sociais, associado a uma igual redução de impostos, provavelmente não teria adesão nenhuma.
As estatísticas do IRS dizem que há poucos ricos em Portugal. É mesmo assim?
Essa é uma ideia completamente errada. Não sabemos quantos existem na realidade. As estatísticas estão corretas, mas têm que ser corretamente interpretadas; quando se trata a informação de uma forma ligeira, as coisas não são bem interpretadas. Vamos usar palavras de antigamente: um rico era aquilo a que se chamava um capitalista, ou seja, alguém que vive de rendimentos de capitais. Sobre esse rendimento paga-se uma taxa de 28% e, na maioria dos casos, esse rendimento não tem que ser levado ao IRS, ou seja, há uma cobrança do imposto pela entidade pagadora, como no caso dos juros que se recebem de uma conta bancária. Assim, os ricos não aparecem nas estatísticas. Lá estão apenas alguns “riquinhos”. E quando há um aumento do IRS são esses que são afetados. E quem são esses? São médicos, generais, juízes, professores universitários, engenheiros, alto funcionalismo público, alguns quadros de empresas. São essencialmente pessoas que ganham à volta de 10 mil euros brutos por mês e são considerados os ricos deste país, mas os verdadeiros ricos não são tributados nem cá nem em parte nenhuma por uma razão muito simples: o capital não tem fronteiras, desloca-se à velocidade da luz com um clique no computador. Ao verdadeiro investidor tanto lhe faz comprar ações de uma sociedade portuguesa ou de uma sociedade inglesa ou de outra na China. O que lhe interessa é a rentabilidade do investimento depois do imposto.
E nós temos que ser concorrenciais. Aliás, em termos comparativos, o nosso imposto sobre os rendimentos de capitais até é relativamente elevado (não que esteja a propor uma descida).
Quem paga, então, o IRS em Portugal?
O problema do IRS é que é um imposto que diz muito a cerca de 45% dos portugueses (já que à volta de 55% não pagam), porque quem paga IRS são os ‘pobretes’ e os ‘riquinhos’. Não são nem os pobres, porque esses nem chegam lá [não têm rendimentos suficientes para liquidar imposto], nem os verdadeiramente ricos, porque não pagam, legalmente. Não estou a falar daqueles que não pagam de forma ilegal. Dentro da mais estrita legalidade, para quem seja capitalista (no sentido tradicional do termo de quem investe) o IRS é um imposto que não lhe toca. O IRS é essencialmente um imposto sobre os rendimentos do trabalho por conta de outrem, por conta própria e os pensionistas. O investidor, o empresário não está nestas estatísticas e nem tem que estar. Se for dono de uma empresa, por exemplo, essa pessoa, se quiser, nem tem salário, recebe dividendos.
É demagogia quando o Governo diz que os ricos vão pagar mais impostos porque mexe nas taxas mais altas do IRS?
Completamente. Aliás, quem paga a fatura é a classe média/baixa, mais do que a classe média/alta, porque a primeira soma mais pessoas. Dizer que uma pessoa que ganha 10 ou 15 mil euros brutos por mês é uma pessoa rica… Estamos a brincar. É evidente que para a maioria da população que ganha o salário mínimo, ou pouco mais, para não falar de quem ganha menos (e nem aparece nas estatísticas do IRS), as pessoas neste patamar ganham efetivamente muito bem. Uma coisa é comparar trabalhadores e salários, e há desequilíbrios no país, mas isso não tem significado nenhum.
O IRS é injusto?
O IRS é um imposto que está condenado na sua justiça. O sonho deste imposto remonta à década de 50, como imposto único e pessoal, tendo sido consagrado na Constituição em 1966 e depois concretizado na década de 80. Era um tempo em que não havia globalização, em que não havia circulação de capitais, era uma dificuldade para importar dinheiro para investimento. Cada país era uma coutada fiscal, e o Estado podia tributar os seus contribuintes como entendesse, porque nem eles nem o capital podiam ir embora. E, por outro lado, a sua atividade económica resumia-se ao território do país.
É um imposto condenado em termos de existência?
Não faço futurologia. Mas as pessoas acham de facto (porque essa ideia lhes é transmitida) que os ricos são aqueles que atingem as taxas marginais máximas. Uma coisa são as análises teóricas, outra coisa é a realidade prática e política, no bom sentido, porque numa sociedade democrática as pessoas continuam a ver o IRS com um instrumento de justiça. É um imposto que dá uma receita significativa, mas em parte “falsa”.
Pode concretizar?
Basta ver o número de funcionários públicos que temos. As estatísticas não estão falseadas, atenção, é uma questão do ângulo de análise. E não é só o IRS. O que é que interessa se a Caixa Geral de Depósitos ou o Banco de Portugal pagam IRC se o único acionista é o Estado…? O Estado recebe sempre ou pela via do imposto e ou pela via dos dividendos. A CGD, do ponto de vista do IRC, será ainda dos maiores contribuintes, mas é uma coisa completamente falsa.
Globalização, circulação de capitais, paraísos fiscais, há inúmeras soluções para escapar aos impostos e os Estados estão cada vez mais pressionados em termos de receitas…
Esse é um dilema insolúvel. Até porque não concebemos um sistema fiscal único, europeu. A globalização permitiu que o capital, as empresas e muitas pessoas sejam rápidos e flexíveis a protegerem-se dos impostos. E há Estados a aproveitarem-se disso. O que é que é o nosso Regime dos Residentes não Habituais senão uma forma de as pessoas que vêm para cá pagarem menos impostos? O sistema já está completamente erodido e com cada Estado a tentar alargar a sua base, nomeadamente atraindo pessoas, há um efeito multiplicador.
Como vê a competição dos Estados pela receita fiscal?
Num mundo que é cada vez mais complexo, obviamente que a administração do imposto é também cada vez mais complexa. O problema é sempre o mesmo. Quando se pede informação a alguém, temos que ter consciência de que quem responde é quem cumpre, quem está dentro do sistema. No fundo, quem está no sistema é que sente esta pressão e maior controlo. Os acordos de troca de informações e os maiores mecanismos de controlo não resolvem o problema da economia paralela. É curioso como nos últimos tempos aparecem estudos a defender a economia paralela, porque esta tem sido o motor da recuperação económica de muitos países. Isto é perversão total, mas não deixa de ser verdade.
Concorda com os incentivos dados pelos Estados para captarem contribuintes?
Não é uma questão de concordar ou não. É evidente que ninguém pode concordar que uma pessoa que recebe milhões pague apenas 28% (e só pagará uma vez) e que quem ganhe 600 ou 1000 euros por conta de outrem tenha que reter na fonte 75% do imposto, nem chega a tocar neste dinheiro. Se soubesse a solução, ganharia uma coisa que nem sequer existe, que é o Prémio Nobel da Fiscalidade. Mas acredito que irá haver, cada vez mais, uma deslocação da tributação para o consumo.
E o património?
Voltamos ao mesmo, porque o património tem o mesmo problema do IRS, em que os ricos são os tais dois mil e tal das estatísticas. Já não há o Tio Patinhas com a sua caixa forte, as ações são registos em computador, estão desmaterializadas. Como é que se identifica uma riqueza virtual que é intrinsecamente anónima, quer dinheiro, quer as próprias ações (e outros títulos), e que circula à velocidade da luz de computador em computador? Caímos no ridículo de termos uma sociedade do século XXI em que o rico é latifundiário.
Está a falar do adicional ao IMI?
Estou a falar de uma regra, que hoje é perfeitamente consensual, de que à medida em que há dificuldades de encontrar bases tributárias, a tributação concentra-se nos fatores mais estáticos, que são os salários e os imóveis.
Têm surgido formas criativas de cobrar impostos, como a taxa sobre o açúcar…
O sistema fiscal é o remédio para todos os males sociais. Independentemente da eficácia ou da não eficácia das mudanças práticas no sistema fiscal, os chamados impostos sobre o vício, tabaco, jogo, bebidas e agora sobre o sal, o açúcar, a gordura, e por aí fora, têm uma análise custo/benefício claramente desproporcionada. É um problema, mas faz parte do sistema democrático. No Parlamento (animado das melhores intenções, e isto é transversal a todos os partidos) ninguém analisa o custo deste tipo de medidas e até o próprio desequilíbrio que isto causa. Lembro-me de haver propostas, de âmbito ecológico, que pressupunham deduções que eram superiores às da saúde ou da educação…
E há os custos de administrar uma máquina fiscal cada vez mais multifacetada.
A Administração Fiscal é das entidades mais complexas e caras que nós temos. E é um preço que não se resume ao custo da própria Administração, essa é apenas uma parte, pois as empresas e os particulares têm que suportar custos diretos também. As empresas têm uma carga de funcionários que são pagos para cumprir obrigações fiscais. Criou-se um mito de que, como não há papéis, é um processo automático; acho uma piada a esta ideia… Isto para não falar no sector bancário, que não só tem departamentos para tratar dos seus impostos como trata dos impostos e produz informação fiscal relativa a milhares de clientes. São uma espécie de polícia fiscal e estão a suportar esses encargos, que depois fazem repercutir sobre os clientes. Nós, contribuintes, pagamos os custos da Administração e das entidades que cooperam com o fisco e ainda suportamos os nossos encargos diretos. Esta soma é gigantescamente superior ao montante da receita. Isso no IRC é flagrante, em que a maioria das empresas não gera receita fiscal.
As alterações constantes à lei são outro custo.
Se alguém fizer o levantamento do que uma alteração numa lei fiscal (por vezes é apenas um pormenor) custa às empresas e à própria Administração, como a introdução de novos programas de computador, chega à conclusão de que a perda para o país é superior ao benefício/aumento da receita.
Foram feitas essas contas com o quociente familiar?
O quociente não era, em termos de processamento informático, uma coisa custosa na sua origem, só que depois, com os contrapesos criados (para não haver uma grande perda de receita e, principalmente, para responder às críticas), fez-se ali muita coisa.
Vivemos um big brother fiscal?
Incomoda-me muito mais a exposição da vida das pessoas nas redes sociais do que, por exemplo, as declarações de impostos serem públicas. Estes fenómenos de acesso a informação sempre aconteceram. A informação é poder e também contribui para a justiça fiscal. A esse respeito progrediu-se muito nos últimos 10/15 anos. Mas a informação só é útil se for utilizada e se, à partida, servir para alguma coisa. Temos normas que são objetivamente impossíveis de cumprir e muitas acabam por cair no esquecimento.
A “culpa” é de quem legisla?
A Assembleia da República não é um conjunto de especialistas nem de fiscalistas. E o que o eleitorado quer são medidas que ficam bem, não olha nem ao preço nem à eficiência. Nem consigo imaginar a dificuldade de transformar as opções legislativas de uma reforma fiscal em programas informáticos…
Um dos grandes objetivos da reforma do IRS era a simplificação do imposto, que isso não se conseguiu…
Pouco… Sempre tive consciência de que seriam opções democráticas. A grande maioria das medidas de simplificação implicavam alterar a lei, o que faria com que se olhasse menos aos casos concretos, tendo menos exceções. E as pessoas não querem isso. E o Parlamento tem grande dificuldade em resistir a satisfazer o eleitorado. A democracia é um sistema ineficiente, os pesos e os contrapesos são gigantescos, mas é o melhor que existe. E quando se é democrata tem que se assumir que fazer uma reforma fiscal está sujeito a isso.
E a hipótese de deixarmos de entregar declaração?
Essa era uma das propostas da comissão. Para termos um sistema mais simples, este tem que ser menos rendilhado.
E menos justo…
Também, se bem que acho que depois acaba por ser mais justo, porque a diferenciação, por vezes, é que conduz à injustiça, porque há contribuintes que a conseguem explorar melhor do que outros. Por exemplo, a comissão propôs acabar com as deduções variáveis. Só que as pessoas não querem. Não querem ir a um restaurante e só terem à escolha um prato de peixe e outro de carne. Mas depois queremos pagar muito pouco… O problema é este: quanto mais, na lei, se alarga o menu, mais cara sai a refeição. E há mais evasão. Mas também mais votos se podem ganhar.
Como vê o e-Fatura?
Essa máquina gigantesca não está a produzir os efeitos desejados. As pessoas já perceberam que pedir fatura com o número de contribuinte não tem grande impacto no seu IRS. É de questionar que num país em que se vendem tantas Raspadinhas a adesão aos sorteios do fisco, em que não se paga nada, seja tão baixa. Os concursos não são uma forma correta de estimular o cumprimento fiscal, mas são uma forma eficiente. Foi uma coisa que funcionava bem ao princípio e que piorou quando os carros foram substituídos por certificados do Tesouro.
BI
Nome, idade e família
Rui Manuel Corucho Duarte Morais, 61 anos, casado, uma filha.
Formação
Licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutoramento em Ciências Jurídico-Económicas na Escola de Direito do Porto, Universidade Católica Portuguesa.
Carreira
Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, é também advogado especialista em direito fiscal, sendo sócio de Yolanda Busse&Oehen Mendes, Sociedade de Advogados. É árbitro em processos de arbitragem tributária (no CAAD) e é presidente da secção do Porto da Associação Fiscal Portuguesa. Participou em várias comissões para preparar projetos legislativos, tendo sido presidente da Comissão de Reforma do IRS, em 2014.
Lazer
As leituras preferidas são os livros de História, “essenciais para a compreensão da realidade em que vivemos”. Gosta de trabalhos manuais (bricolage, jardinagem) e do campo. O principal hóbi são as expedições de todo-o-terreno ( 4×4 ).
Lema
“Não tenho propriamente um ideal de vida: contento-me em ter esperança de que a minha efémera passagem por este mundo possa, de algum modo, contribuir para o bem comum e para maior felicidade de alguns”.
Esta entrevista é parte integrante da Exame de março de 2017