Um homem tem que viver com um pé na primavera, escreveu o poeta. É nisso que pensamos quando Ali Alkhamis desdobra o papel que traz no bolso das calças e lemos “Connosco está tudo bem”, em maiúsculas.
O papel, já muito gasto, traz a lista de palavras em árabe e a tradução fonética para português que lhe tem servido de cábula. “Connosco está tudo bem!”, lê o sírio em voz alta, um dedo por cima da frase, a cinza do cigarro quase a cair nas outras duas palavras escritas em português: “Puta”, “putos”.
Rimo-nos com ele quando Luís Santos, um dos voluntários que apoiam Ali e a família desde que chegaram a Ovar, em meados de novembro, explica: o sírio viu a primeira num comentário no Facebook e desconfiou que devia ser igual a puttana, em italiano; por isso estranhou a segunda no fado de Carlos do Carmo, ouvido pouco depois, numa festa.
Neste cantinho do País podíamos traduzir-lhe “os putos” por “a canalha”, mas deixemos os regionalismos para outras núpcias. Por momentos, o sol conseguiu furar as nuvens, aliviando um pouco a humidade típica da zona de Aveiro, e queremos aproveitar o que sobra da hora e meia de almoço de Ali para retomar a nossa última conversa.
Há um mês e pouco, a pretexto de um artigo para a VISÃO História, éramos nós a despedirmo-nos e a professora de português a entrar-lhe em casa. Agora, Ali já não tem aulas e a cábula sai cada vez menos do bolso das suas calças. Faz-lhe mais falta o bloco de notas que guarda na gaveta da mesa de trabalho para pronunciar corretamente palavras que usa no dia a dia. “Metro”, “carcela” e “azul-claro” ganham sons novos na sua boca.
A mesa de trabalho de Ali está rodeada de mais vinte e cinco mesas, no horário de expediente todas ocupadas por máquinas de costura industriais e mulheres.
Nas Confeções Quórum, um pavilhão quase à entrada da Vila de Cucujães, a 14 quilómetros de Ovar, pega-se às 8 da manhã e larga-se pelas 6 da tarde. Depois de alguns anos a produzirem por conta própria, Rosa Moreira e o marido, António Castro, já só trabalham a feitio. Pela mesma porta entram tecidos cortados e saem camisas prontas a ser vendidas nas lojas. Por hora, cada empregado despacha a sua parte em trinta delas. Ali não levanta os olhos nem para a fotografia. Faz como as colegas que só hão de descomprimir no “refeitoriozito” montado por D. Rosa ali mesmo ao lado.
Quando não chove, costuma almoçar sozinho, no pátio da fábrica. Engole uma sanduíche com queijo ou húmus, telefona à mulher, Nada, e fuma. Mas hoje quis “fazer como os portugueses” e sentar-se à mesa. Quis mostrar que faz parte. “Patrão muito bom e empregadas igual a irmãs”, diz entre duas passas.
O sr. António não ouve o cumprimento porque a esta hora já almoça em casa.
Mas se ouvisse responderia com o que nos disse: Ali “está a agradar” desde o primeiro dia. E que primeiro dia. Num final de tarde de dezembro, o sírio esteve em Cucujães com um eletricista que faz habitualmente serviços na empresa.
Queria ver se havia alguma máquina em segunda mão pois gostaria de retomar a sua profissão de alfaiate. Não havia, mas acabara de vagar um posto de trabalho; a mulher que apontava e cosia colarinhos decidira estabelecer-se por conta própria, sem aviso prévio. Na manhã seguinte, Ali sentou-se, então, frente a uma máquina de costura, recusou delicadamente ajudas (“Não precisa”) e coseu logo um colarinho sem hesitações nem enganos.
Sabia o que estava a fazer, comenta D. Rosa, a mostrar uma camisa saída das suas mãos. “Já vê tão perfeitinho?” Um mês depois, por ele trabalharia também à noite, mas as encomendas só hão de justificar horas extraordinárias em abril ou maio. Depois, torna a brecar, já lhe explicou a patroa, que ficou capaz de ir a pé a Fátima quando viu o alfaiate sírio resolver-lhe a falta de uma empregada.
Ali trabalha tão bem que tem permissão para fazer os intervalos que quer. Quando as colegas o veem levantar-se e dirigir-se para um determinado cantinho do pavilhão, já sabem: vai descalçar-se, pôr-se de joelhos e rezar. Da primeira vez, usou uma aplicação do telemóvel que indica Meca; agora põe a toalha sempre no mesmo sítio.
Quatro meses depois de ter chegado a Portugal, trazido pelo grupo Famílias Como as Nossas, Ali está como efetivo nesta empresa e essa é só a primeira boa notícia. Nem nos seus melhores sonhos contava com este desfecho ao aceitar o convite feito por Nuno Félix e os restantes “pais” portugueses do grupo.
Naquele final de setembro, quando o encontraram junto à bilheteira da estação central de comboios de Viena, na Áustria, hesitava no destino. Tinha pensado ir com a mulher e as três filhas, Dima, 10 anos, Inas, 8, e Rima, 5, até à Alemanha, pisando os passos dados por parte da família. O Líbano e a Turquia, para onde também foram irmãos, cunhados e sobrinhos, a fugir da guerra na Síria, pareciam-lhe demasiado próximos e inseguros.
Mas que cidade alemã haveria de escolher? Berlim? Munique? Hamburgo? Por aqueles dias, as autoridades tinham decidido cancelar os comboios por causa do Oktoberfest. O convite aparecia-lhe no momento certo, e ele arriscou apanhar boleia até Portugal.
RESPIRAR FUNDO E TROCAR ABRAÇOS
A boleia incluía um rol de promessas: casa, trabalho, educação e saúde, em São Martinho do Porto, onde Nuno mora com a mulher, Vera, e os quatro filhos.
E ainda uma explicação: os portugueses estavam a oferecer-lhe tudo isto porque não aguentavam continuar a assistir à crise dos refugiados de braços cruzados.
Para deitar por terra uma eventual acusação de tráfico de pessoas, a família assinou uma declaração, escrita em árabe e traduzida em inglês, em como viajavam de livre vontade.
A viagem fez-se com alguns sobressaltos, o maior logo à saída da Áustria, com a polícia alfandegária a descobrir que a família síria não tinha autorização de permanência no país. “No more Portugal?”, perguntava Ali, em surdina, enquanto Nada entretinha como podia as miúdas. Parecia triste mas resignado.
Após a terrível travessia de barco entre a Turquia e a Grécia, na semana anterior, já nada lhe metia medo. Aquela era só mais uma fronteira, e em todas as que ultrapassara rumo ao Norte da Europa, ele esperara ser barrado. Uns quilómetros depois de o polícia passar uma multa por falta de documentos e de virar as costas para não ver o carro entrar em Itália, a caravana parava numa área de descanso. Era urgente respirar fundo e trocar abraços. Caíra a noite, não havia mais ninguém por perto e Ali pediu a Nada e às filhas para posarem à frente de um enorme cartaz a promover o meraviglioso paese. Na manhã seguinte, em França, era ele quem pedia para ser fotografado no meio dos portugueses.
“Tiago, João, Teresa, Nuno, Vera, Pedro, Rosa!” Já estamos há umas horas na casa que a União das Freguesias de Ovar arrendou para a família síria, uma pequena vivenda geminada, na chamada zona escolar da cidade, quando Inas percorre a galeria do telemóvel da mãe e toca na fotografia tirada em França. De todos só ainda não tornou a ver Tiago e Teresa.
“Estão bons? Onde estão? Em Lisboa?” A mãe ri-se da enfiada de perguntas e pede-lhe o telefone de volta. Aproxima-se a hora de jantar, ela ainda tem de fazer pão e quer aproveitar para nos mostrar a família que deixou na Síria, em julho.
AJUDAR REFUGIADOS E PORTUGUESES
Entre Nada e Ali junta-se uma dezena de irmãos e ainda maridos, mulheres e filhos.
As imagens são todas de interiores.
Veem-se tapetes no chão, grandes almofadas e alguns sofás. Nada vai desfiando os nomes: “Mostafa. Abdulrhman. Aamer…” E nós reparamos como as crianças sorriem e os adultos posam sérios.
Logo a seguir vêm os outros, também muitos, que procuraram refúgio no Líbano, na Turquia e na Alemanha; e aí já os vemos em centros comerciais e em parques, a brincar na neve. Sentada ao colo da mãe, Inas dá beijinhos no telemóvel.
São quase 7 horas. Daqui a pouco, Ali chegará de Cucujães, depois de apanhar um autocarro que o deixou na estação de comboios de Ovar e de fazer o percurso até casa de bicicleta. Dima, Inas e Rimas passaram o dia na Escola Básica da Ponte Nova, a cinco minutos de carro. Adoram ir à escola; nos últimos quatro meses na Síria não saíam de casa. De manhã foram de boleia com Luís Santos e à tarde regressaram na carrinha do ATL. Nada vai buscá-las à estrada junto à cooperativa onde moram, e elas vêm a falar todas ao mesmo tempo, a contar as brincadeiras que tiveram com esta ou aquela amiga.
A cooperativa parece um condomínio, com um larguinho entre as casas e um jardim nas traseiras, bom para brincar.
Foi lá que Inas e Rimas gastaram o resto da luz do dia, enquanto Dima fazia os deveres.
Entrou para o 2º ano e tem, como as irmãs, uma professora de apoio que assegura a aprendizagem sem espinhas do português, mas todos os dias está escalado um voluntário para a ajudar.
As quartas-feiras são de Petra, a filha mais velha de Luís, de 15 anos. As duas despacharam a obrigação em três tempos, e Dima foi buscar a corda para saltar ao ritmo de lengalengas. Cada pulo vale uma letra do alfabeto ou uma frase de uma história cómica, sem sotaque.
Quando Salomé Costa bate à porta, Nada acabou de rezar, lá em cima, as duas filhas mais novas já largaram a bicicleta e o triciclo para verem um pouco de televisão, e a mais velha cose atiladamente uma carteirinha de feltro. Dima corre a abrir a porta e Inas, é inevitável, acaba no seu colo, a mexer-lhe no cabelo curto.
Casada com Luís e mãe de Petra e Gonçalo, de 13 anos, Salomé conheceu a família Alkhamis há quase três meses.
Contabilista de profissão e tesoureira da União das Freguesias de Ovar, convencera os colegas a celebrar um protocolo com a Plataforma de Apoio aos Refugiados e desesperava face ao atraso da União Europeia a enviar refugiados. Tinham uma casa apalavrada e emprego para um homem, numa fábrica de cablagens.
Convidou, então, Nuno Félix a trazer Ali, Nada e as meninas no dia em que ela e um grupo de amigos organizaram uma gala para angariar fundos para os refugiados. “Foi tudo muito espontâneo”, conta. Chamaram-lhes Associação Estratégias de Esperança, mas querem em breve registar a marca Ovar Vamos Ajudar. “E decidimos também ajudar os nossos carenciados locais.” Nos últimos meses, a par do apoio à família síria, arranjaram emprego para um casal de sem-abrigo e uma scooter para ele poder ir trabalhar.
Entretanto, estenderam o trabalho de voluntariado à ilha grega de Lesbos, onde arrendaram um apartamento que subalugam a voluntários (The Volunteers Flat) e distribuem roupa interior e mochilas com um kit básico de inverno. Sara Sofia Almeida e o namorado, o inglês Jack, que entrevistámos na VISÃO Solidária, chegaram lá a 12 de janeiro e ficam pelo menos até março. Neva em Lesbos e os barcos não param de chegar; só em janeiro entraram 62 mil refugiados na Grécia (ver texto nas páginas seguintes).
Em Ovar, é este grupo de voluntários informalmente encabeçado por Salomé que apoia Ali e Nada desde o primeiro dia.
A junta encarrega-se da renda da casa, a eles cabe-lhes pagar o passe de Ali, vacinas que estejam fora do Plano Nacional de Vacinação, o que for preciso. Salomé e Adriana, assistente social, ofereceram-se para encarregadas de educação das meninas, Luís faz de motorista particular sempre com um sorriso, todos são visitas constantes lá de casa. É raro o fim de semana sem um piquenique ou uma festa.
No Natal, a ceia foi com a família de Salomé e assou-se um cabrito. Nas vésperas, a dona da casa perguntou a Ali se queria rezar antes da morte do bicho; ele respondeu que não fazia questão, mas acabaria por ajudar a matar o cabrito segundo os preceitos da lei islâmica.
NÃO DEVER NADA A NINGUÉM
Em São Martinho, onde chegaram a 3 de outubro, os Alkhamis também têm um grupo de amigos. Além de Vera e Nuno Félix, e dos vizinhos Richard Paul e Francisco Amaral, entendiam-se em árabe com o jordano Zeidan, casado com uma portuguesa e a morar na Nazaré.
No mês e meio que lá passaram, descansaram e baixaram os níveis de alerta.
“Andavam há muito tempo em viagem, sob um grande stresse”, lembra Nuno.
“Connosco perceberam que tinham chegado a um país que recebe bem quem vem de fora e criaram novos laços.” Pelo meio, trataram de questões burocráticas.
Todas as semanas iam até Lisboa, fosse para uma entrevista no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, uma reunião no Conselho Português para os Refugiados ou um encontro com a Comunidade Islâmica. E fizeram as pazes com a água.
Nos primeiros tempos, nem se chegavam perto da rebentação. “No fim”, conta Nuno, “as miúdas até molhavam os pés”.
Agora, em Ovar, Ali sente que está a caminho de não dever nada a ninguém.
E de aqui ficar para sempre. “Se não arranjar trabalho depressa, vou viver para a praia”, ameaçava, meio a brincar, em São Martinho. Quando o vemos chegar de noite a casa, dá para perceber que está estafado mas o sorriso com que ajuda a mulher na cozinha dá vontade de sorrir de volta.
É então que Nada se inclina para colocar a taça de salada na mesa e reparamos no colar que traz ao pescoço, os nomes “Ali” e “Nada” ligados por um coração.
A amada também ajuda o homem a pôr um pé na primavera.