A recente explicação dada pelo vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, ao Parlamento, de que a grande redução do número de beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) se deveu a terem mais de 100 mil euros nas contas bancárias, terá provocado, em muitos deles, uma reação semelhante à do escritor Mark Twain ao ler a notícia da sua morte. Tratava-se, ironizou, de uma notícia “manifestamente exagerada”.
Só que, neste caso, os visados teriam, provavelmente, desejado que fosse verdadeira.
Uma simples consulta ao site da Segurança Social basta para verificar que se perde o direito ao RSI por bastante menos: todo o agregado familiar não pode ter contas bancárias (certificados de aforro incluídos) superiores a 25 mil euros. O mesmo sucederá se tiver “veículos automóveis, embarcações ou motociclos” que somem verba idêntica.
Aliás, nem parece haver exceção para os veículos usados na profissão que o candidato exercia.
Outra simples consulta, esta às Estatísticas da Segurança Social, mostra que as alterações legislativas, cada vez mais restritivas, introduzidas desde 2010, fizeram com que o número de beneficiários tenha baixado até agora quase para metade (ver infografia). Só entre janeiro de 2013 e o mesmo mês de 2014 desapareceram da lista de pagamentos mais de 50 mil. E o alto nível de desemprego que subsiste leva a crer que não desapareceram das estatísticas por boas razões, como seria o regresso ao mercado de trabalho.
Outros têm perdido o direito não à totalidade do RSI, mas a parte dele, devido a alterações no rendimento do agregado familiar.
Como sucedeu a Conceição Maia. Tinha 42 anos, quando, há quatro anos, perdeu o trabalho que exercia no refeitório de uma escola.
Começou, então, a receber 400 euros de RSI, para ela mais os três filhos menores. Entretanto, a sua situação alterou-se, sem melhorar: “O pai dos meus filhos passou a darme 50 euros por cada um deles.” Somados estes novos 150 euros aos seus rendimentos, mais o abono de família, diz que o RSI lhe foi, há um ano, cortado para os 200 euros que ainda recebe. Está inscrita no Centro de Emprego, afirma que se mostrou disponível para qualquer tarefa, mas até agora nunca a chamaram. Assim tornou-se uma das frequentadoras da distribuição de alimentos e roupas que a AMI efetua, mensalmente, no seu centro das Olaias, em Lisboa.
Foto: José Carlos Carvalho
O padre Constantino Alves criou um restaurante social onde se juntam pessoas que perderam o RSI ou idosos com pensões muito reduzidas
O braço da lei
O RSI teve como antecessor direto o Rendimento Mínimo Garantido, criado no Governo de Guterres, pelo então ministro da Solidariedade, Ferro Rodrigues. Entrou em vigor em 1997, após uma experiência-piloto em 40 concelhos, durante o ano anterior.
Em 2003, seria Bagão Felix, então ministro do Emprego e Solidariedade, indicado pelo CDS para a coligação liderada por Durão Barroso, a empenhar-se em mudar as regras e, aliás, o nome. Conseguiu reduzir o número de beneficiários, mas não atingir aquele que parecia ser o seu maior cavalo de batalha tirar o acesso ao RSI a menores de 25 anos. O Tribunal Constitucional viria a chumbar a medida, alegando que a discriminação de um escalão etário violava o princípio da equidade.
Já durante a crise, as regras voltaram a sofrer restrições, ainda durante o Governo de Sócrates. Em 2010, já em plena aplicação dos PECS, o RSI deixou de ser indexado à pensão social. Mas novas restrições estavam para chegar em 2012, com o regresso do CDS à pasta da Segurança Social, agora através de Pedro Mota Soares. Aliás, Paulo Portas, já nos tempos de deputado, nunca escondera a sua pouca simpatia pelo RSI.
O valor médio da prestação não desceu significativamente em dezembro de 2013, foi de €87,11 e atingira o máximo de €92,59, em 2009, antes da legislação de Sócrates. Mas o rendimento familiar baixou bastante, no seu conjunto: uma das principais alterações da lei de Mota Soares foi baixar de 70% para 50% a percentagem do RSI recebida pelo segundo adulto do agregado familiar do beneficiário, enquanto o de cada menor baixou de 50% para 30 por cento.
O Instituto da Segurança Social alega que a nova lei se destinou, entre outros fins, a combater a fraude e a “acentuar o caráter transitório do RSI”. Na prática, muitos dos candidatos desistem, atendendo à longa “via-sacra” que têm de percorrer e pagar para arranjar todos os comprovativos requeridos.
Além disso, a lei só lhes dará dez dias para apresentar qualquer documento, em substituição de outro que tenha sido rejeitado.
Muitos dos que perderam o RSI são agora frequentadores do restaurante social, como o padre Constantino Alves, da Paróquia de N.ª Sra. da Conceição, em Setúbal, faz questão de chamar ao espaço onde 40 voluntários distribuem diariamente jantares. Não só renega o nome de cantina ou refeitório, como aceita pessoas além das assistidas, por uma questão de inclusão social.
Atualmente, distribui 142 jantares por dia, que a maioria leva para casa, para comer com a família. Ali se misturam pessoas com pensões muito baixas, com jovens e casais que perderam o emprego: a média etária fica agora abaixo dos 40 anos. E ali aparece, também, claro, muita gente que perdeu o RSI: “Alguns são imigrantes com qualquer problema nos vistos de residência.
E há muitas famílias desestruturadas, que deixaram passar prazos quando tiveram de entregar um dos muitos papéis exigidos.” Nestas circunstâncias, o padre Constantino Alves, que quisera manter o estatuto do seu restaurante social, cobrando um preço simbólico, que ia de 20 cêntimos a um euro, viu esse seu esforço de dignidade chocar com a realidade: só 10% dos clientes habituais estão em condições de pagar a conta.