Hoje, seria necessário entrar num filme de recriação histórica para entender a importância de uma lei publicada há precisamente 50 ano. As palavras são poucas para fazer sentir aos mais novos como era Portugal nos anos 70. Nada era como hoje. O futuro do País vivia-se na rua, os partidos ensaiavam estratégias e procuravam a sua identidade, os políticos tentavam aprender como governar um país. Uma lei ajudou a mudar tudo. E mostrou como o essencial ainda não estava salvaguardado na legislação.
O País estava a sair de um regime de 48 anos que se sustentava na repressão e que mantinha intensa barragem de fogo sobre a informação, impedindo que a realidade, de dentro e de fora de Portugal, fosse conhecida. Era proibido contar, era proibido saber, era proibido discutir. Até a Coca-Cola estava proscrita.
Daí a importância de recordarmos e celebrarmos a legislação modestamente designada por Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de fevereiro de 1975. Viria, porém, a ficar conhecida pela mais digna designação de Lei de Imprensa. Passados 50 anos e um dia, vivemos uma época em que a informação e o jornalismo voltam a ter imperiosa necessidade de se repensar. Já lá iremos.
Defendidos pelos capitães de Abril e consagrados no programa do MFA, o fim da censura e a consagração das liberdade de expressão e de informação mudaram por completo os cenários que se acreditava serem reais no 25 de Abril.

Logo no Dia da Liberdade, a comunicação social libertou-se do espartilho, mas foi o tal decreto 85-C/75 que viria a consagrar os direitos repostos pelo movimento militar e pelas reações que desencadeou.
O Verão Quente de 1975 ainda estava por chegar quando foi publicado o diploma que, logo no artigo primeiro, estipulava a liberdade de acesso às fontes de informação, garantia o sigilo profissional e assegurava a liberdade de publicação e difusão. Mais: defendia as liberdades de empresa, a de concorrência e garantia a “independência do jornalista profissional e da sua participação na orientação da publicação jornalística.” Quem não viveu nos tempos do Estado Novo dificilmente entenderá porque era tão importante fixar na lei conceitos que já eram seguidos em quase todo o mundo moderno. Mas foi.
A Lei de Imprensa não se ficou pela garantia dos direitos básicos. Criou o Estatuto de Jornalista e deu-lhes garantias de independência, ao ponto de estipular o direito a despedirem-se e serem indemnizados se houvesse “uma alteração profunda na linha de orientação de um periódico”.
O que ajuizaria esta “alteração” era o Conselho de Imprensa. Este órgão, um parente muito, muito, muito afastado da atual Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), viria a ter primordial importância no âmbito da regulação da Comunicação Social. Presidido por um magistrado, tinha representantes do MFA, jornalistas, nomes escolhidos pelas empresas, pelos diretores das publicações, do governo e mais quatro cooptados pelos restantes membros. Como qualquer entidade que tem por dever pronunciar-se sobre questões que envolvem o jornalismo, houve decisões que desagradaram aos diferentes setores, mas até por isto se vê como foi independente. Nenhum dos organismos que herdaram as suas competências viria a alcançar o prestígio que o Conselho de Imprensa granjeou.
Papel fundamental tiveram também os conselhos de redação, igualmente nascidos a 26 de fevereiro de 1975. Eram – ainda são, embora com raras provas de pública vitalidade – órgãos presididos pelo diretor do jornal e compostos por jornalistas “da casa”. Acompanhavam a direção do periódico, zelavam pelos rigor e ética – a lei de Imprensa deixou aos jornalistas a criação de um Código Deontológico – e concedia-lhes um poder inesperado, uma “bomba atómica”: recusar o nome indicado para a direção do jornal. Grandes combates travaram, durante anos, os Conselhos de Redação. Diga-se que esta “bomba atómica” teve menos uso do que a atribuída ao Presidente da República para dissolver o Parlamento.
Vem também da Lei de Imprensa a regulação da publicidade e a obrigação de a apresentar bem distinta da informação, impunha que os órgãos de informação fossem detidos e dirigidos por portugueses, criou o direito de resposta, definiu os crimes de injúria e difamação e definiu as multas a pagar por quem “violar qualquer dos direitos, liberdades ou garantias da imprensa consagrados na presente lei”. Impunha, também, a existência de um estatuto editorial.
Para quem puder pensar que a Lei de Imprensa surgiu de um grupo mais ou menos revolucionário, é bom recordar que a comissão que a redigiu foi nomeada pelo então major Sanches Osório, era presidida por Sousa Franco, e tinha entre os seus elementos Francisco Pinto Balsemão (que tinha tentado apresentar um projeto em 1973, juntamente com Sá Carneiro) e Marcelo Rebelo de Sousa.
Curiosamente, o poder não demorou muito a tentar torpedear a legislação, pois durante o governo de Vasco Gonçalves nasceu o chamado “Projecto Jesuíno”, largamente contestado, que admitia transformar “um ou mais jornais diários (…) em órgãos oficiosos”. O “controlo” da rádio e televisão era abertamente defendido. Mais: admitia que viesse a ser criada “legislação revolucionária” e, para “garantir a legitimidade revolucionária” , preconizava “instrumentos revolucionários” que permitissem “uma resposta aos atentados à liberdade e às atitudes contra-revolucionárias”.
Os órgãos de comunicação subordinados às regras do jornalismo perderam força e a mentira e a calúnia andam à solta. A liberdade individual já não termina quando afeta a liberdade dos outros
O diploma de 1975 tinha servido de base para as posteriores lei da rádio e da televisão e foi sofrendo alterações até 1999, quando Jorge Sampaio e António Guterres publicaram a Lei 2/99. Daí para cá, o diploma sofreu pequenas alterações. De 1975, a legislação manteve como desígnio a defesa da liberdade de informação, embora retirando força à participação dos jornalistas e da sociedade civil e aumentando os das administrações e do poder político. Multiplicaram-se os diplomas e contratos que impõem aos funcionários do Estado e de empresas o dever de sigilo, assim restringindo o livre acesso à informação. Uma norma criada por um governo de Cavaco Silva, naquilo que ficou conhecido por Lei da Rolha, e a tentativa de impedir os jornalistas de circularem na Assembleia da República foram os episódios mais mediáticos desta tentativa de controlo às fontes de informação.
Volvidos 50 anos, havendo lei de imprensa, da rádio e da televisão, fica de fora o que é hoje o principal canal de informação: a internet. Num mundo em que o disparate é livre, faltam soluções para regular o que se vai escrevendo no mundo virtual. Tudo é possível, embora nem tudo seja lícito.
Os órgãos de comunicação subordinados às regras do jornalismo perderam força e a mentira e a calúnia andam à solta. A liberdade individual já não termina quando afeta a liberdade dos outros.
Vive-se uma época em que ainda não aprendemos a viver com os avanços. Repare-se como J.D. Vance, vice-presidente dos EUA, veio exigir o direito à difusão de mentiras e de campanhas contrárias a valores civilizacionais adquiridos. Repare-se como a principal agência de notícias norte-americana, a Associated Press, foi banida da Casa Branca apenas porque se recusa a chamar golfo da América ao do México. Tudo isto num país que se dizia ter a imprensa mais livre e era apontado como exemplo.
Não haverá lei capaz de separar o trigo do joio em matéria de informação, sem que se entre no odioso domínio da censura? Daniel Innerarity recorda que “a primeira regra para compreender uma sociedade recomenda que se examine se a retórica coincide com a realidade”. Será isso possível com o ruído das redes virtuais?
O certo é que tem de haver formas de criar defesas, ou a democracia torna-se impraticável. Socorro-me de Yuval Noah Harari e cito: “Pretendo apenas sublinhar que as democracias podem regulamentar o mercado da informação e que a sua sobrevivência depende disso.” A receita: aprender e ensinar a viver com as novas tecnologias. “A maneira mais segura de se evitar uma catástrofe durante o século XXI será por via da manutenção de mecanismos autocorretivos democráticos capazes de identificar e corrigir erros.”
Que diabo, a Inteligência Artificial não há de servir apenas para o mal.