Nem imprescindível a uma alimentação saudável nem inimigo da ciência de bem comer. A riqueza nutricional do leite de vaca – e seus mais ilustres derivados, iogurte e queijo – não o eleva a um pedestal sobranceiro, mas parece igualmente exagerado receá-lo como fonte nociva ao organismo. Esta ideia ganhou lastro nos últimos anos, o que poderá ter afetado a reputação dos laticínios. Por outro lado, se os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que o consumo de leite em Portugal caiu para níveis nunca vistos desde que há registos (1983), a gula dos portugueses por queijo anda nos píncaros.
Sem esquecer que a intolerância à lactose é sempre um fator a ter em atenção nestas contas, assim como a alergia à proteína do leite, embora esta com muito menor expressão na população (ver caixas), são de considerar outras possíveis causas para a queda acentuada da popularidade do leite: crescimento das dietas vegetariana e vegana, preocupações ambientais associadas à pecuária, simplesmente não se apreciar o sabor…
Dispensemos as especulações sobre a tendência do mercado, para nos determos nas virtudes e nos defeitos deste alimento e nas consequências do seu consumo na saúde humana, à luz da ciência da nutrição. Segundo Liliana Sousa, bastonária da Ordem dos Nutricionistas, trata-se de um “alimento completo”, desde logo “rico em proteína de alto valor biológico”, por ter na sua composição “aminoácidos essenciais, aqueles que o organismo não consegue produzir”, mas dos quais precisa para funcionar em pleno, obtendo-os através da alimentação. Também fornece hidratos de carbono (sobretudo, lactose), gordura (a maioria saturada), vitaminas A, D e B12 e ainda “micronutrientes em quantidades importantes”, como o cálcio e o fósforo, dois minerais relevantes na pujança de ossos e dentes.
Apesar de o cálcio se encontrar noutros alimentos, como os produtos hortícolas de folha escura (couves e espinafres, por exemplo), Maria João Gregório destaca a particularidade de este mineral surgir “mais biodisponível” no leite, no iogurte e no queijo. Significa isto, esclarece a diretora do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da Direção-Geral da Saúde, que “é mais facilmente absorvido pelo organismo” quando ingerido através de produtos lácteos, “os grandes fornecedores de cálcio” do corpo humano. Para uma ideia mais aproximada, a Associação Portuguesa de Nutrição equipara o cálcio absorvido numa porção de leite (um copo de 250 ml) ao de duas chávenas e meia de brócolos, ao de sete chávenas de feijão-vermelho ou ao de 170 g de amêndoas torradas. Só este último exemplo representa mais de metade da dose diária recomendada de calorias, mas isso é outra conversa.
Os substitutos
Em linha com as orientações que vigoram nos países ocidentais, a Roda dos Alimentos, guia alimentar português, recomenda duas porções de laticínios por dia para a generalidade da população e três porções diárias para crianças e adolescentes, pelo facto de enfrentarem “fases de maior crescimento e desenvolvimento”, nota Maria João Gregório. Também em consonância com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), deve apostar-se em produtos com o menor teor de gordura, considerando ainda o “sério problema da obesidade enquanto doença crónica em Portugal, que atinge mais de 20% da população adulta”.
Além da já referida dose de leite, uma porção pode traduzir-se num iogurte líquido ou num e meio sólido (200 g), em duas fatias de queijo fino (40 g), em 50 g de queijo fresco ou em 100 g de requeijão. “A regra básica da alimentação saudável é variar entre os diferentes alimentos de cada grupo alimentar, diariamente e semanalmente”, acrescenta a responsável.
Alergia que pode assustar
Reação descontrolada do sistema imunitário contra proteínas do leite de vaca é rara, mas ataca mais bebés e crianças
Tosse, rinite, erupção cutânea, comichão nos olhos, dor abdominal, náuseas, diarreia e vómitos são sinais de alerta, no caso de surgirem pouco tempo depois de ingestão ou contacto com leite de vaca. Refluxo, obstipação, anemia, inflamação nos pulmões ou nos intestinos são outras reações a vigiar, se aparecerem horas ou dias mais tarde. Estes são os principais sintomas a ter em conta quando estamos perante uma alergia à proteína do leite de vaca.
Ocorre, sobretudo, durante a infância e, como em qualquer outra alergia, é sempre imprevisível a resposta descontrolada do sistema imunitário a uma presença estranha no organismo. Nos casos mais graves, a falta de ar ou a zona do rosto inchada pode ser o prenúncio do chamado choque anafilático. É importante recorrer a uma urgência para iniciar tratamento o mais depressa possível.
Trata-se de uma alergia a uma ou várias proteínas do leite da vaca e em nada se relaciona com a intolerância à lactose. Muitas vezes, é por temerem uma situação deste género que os médicos pediatras, ao menor sinal suspeito, mandam parar o consumo de leite.
“É uma reação exagerada que envolve o sistema imunológico, semelhante a outras reações alérgicas e muitíssimo mais rara do que a intolerância à lactose”, explica o nutricionista Nuno Borges.
Por norma, o problema resolve-se com a introdução de fórmulas especiais infantis na dieta do bebé ou da criança.
Não é imperioso incluir os laticínios. Pesam 18% na Roda dos Alimentos, mas existem alternativas e é assim mesmo, no plural, que precisam de ser conjugadas. A nível proteico, Liliana Sousa destaca o ovo como equivalente (nomeadamente, a clara), a gordura e os hidratos de carbono abundam, e para suprir as vitaminas e os minerais recorre-se à fruta e aos vegetais. Só não vale apelidar as bebidas vegetais – que chegaram a ser designadas de leite mas já não o são – como substitutas do dito cujo, no seu todo. “Algumas são tão ricas em açúcares que se equiparam a um refrigerante, além de serem muito pobres em proteína”, sentencia a bastonária dos nutricionistas. Há de amêndoa, de aveia, de arroz, e a de soja fortificada com cálcio talvez seja a mais semelhante ao leite em valor nutricional.
“Não é por acaso que o leite se mantém em todos os guias alimentares, pelo menos nos ocidentais”, alvitra Nuno Borges, professor na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, da Universidade do Porto. A tirada, a propósito de comparações com as bebidas vegetais, lança-o na problemática dos eventuais riscos dos laticínios para a saúde, já associados a doença cardiovascular e a certos cancros.
“A única exceção, que demonstrou um ligeiro aumento de risco, é no cancro da próstata, relacionado com consumos lácteos acima das porções recomendadas. Em geral, as pessoas que respeitam as quantidades indicadas melhoram o seu perfil de saúde cardiovascular, da diabetes e de alguns tumores, sobretudo o cancro do colorretal”, salienta o nutricionista.
Estimativas da International Farm Comparison Network, organização sediada na cidade alemã de Kiel que estuda o mercado global dos laticínios, avançam que este mercado conta atualmente com sete mil milhões de consumidores. O mesmo é dizer que apenas mil milhões dos habitantes do planeta não fazem parte da equação. No relatório anual de 2023, referente ao ano anterior, a empresa voltou a registar um crescimento global, ainda que ligeiro (abaixo de 1%) na produção e no consumo de leite, tendência que se mantém há mais de duas décadas – muito à custa da Índia, principal produtor mundial.
Os adeptos do queijo
Um entusiasmo que não contagia a população neste extremo da Europa. Os 82,7 quilos de leite per capita consumidos em Portugal em 2012 passaram a 64,5 quilos per capita em 2022, o último ano com dados consolidados. Nunca a fasquia tinha descido tão baixo desde que há estes registos (o pico, em 1999, chegou aos 91,2 quilos per capita). Por contraste absoluto, 2022 foi o ano em que o consumo de queijo atingiu novos valores máximos: 14,6 quilos per capita. Faz sentido duvidar se a preocupação com a saúde terá alguma coisa a ver com tamanha quebra na ingestão de leite.
Em anos recentes, estudos longitudinais (os que acompanham os participantes ao longo de vários anos) têm sugerido a hipótese de a gordura saturada do leite de vaca não ser tão prejudicial como o mesmo tipo de gordura encontrada noutras fontes alimentares. Investigadores norte-americanos estão a proceder a uma meta-análise, que agrega as conclusões de vários estudos, para recolherem novas pistas. Por enquanto, não existem evidências capazes de gerar consenso na comunidade científica. Especialistas da Universidade de Harvard, por exemplo, contestam esta corrente de pensamento.
Nuno Borges acredita que há indicadores a apontarem para uma espécie de versão mais benevolente da gordura do leite. “As grandes revisões de estudos não confirmam aqueles receios de que o queijo, por ser um alimento gordo, aumente o tal risco cardiovascular, portanto, no que toca aos níveis de colesterol, à aterosclerose e aos enfartes, o que não deixa de ser estranho e, ao mesmo tempo, curioso”, reflete.
Diz mais: “Se é verdade indiscutível que as carnes vermelhas, os chouriços e as carnes processadas em geral, e até alguns óleos alimentares ricos em gorduras saturadas, como os de palma e os de coco, parecem estar associados a maior doença cardiovascular, sendo o mesmo válido para algumas formas de comer a gordura do leite, nomeadamente a manteiga e muito provavelmente as natas, já não está demonstrado que o consumo de leite gordo esteja associado a essa doença. É como o queijo. Quer isto dizer que o alimento onde está a gordura não é irrelevante, por isso entendo que a generalização dos efeitos da gordura saturada de outros alimentos para a do leite, que já vem desde os anos 1950, não é correta nos dias de hoje.”
As oscilações da Ciência
Colega de Nuno Borges na Faculdade de Ciência da Nutrição e Alimentação, Maria João Gregório reconhece que “a evidência científica sugere que a associação entre o consumo de ácidos gordos saturados e o risco cardiovascular depende essencialmente da sua fonte alimentar”, o que a induz a distinguir as consequências da gordura da manteiga da do leite de vaca, do iogurte e do queijo. Porém, em virtude de ser responsável por orientações a transmitir à população, quando pesa na balança “a revisão sistemática com meta-análise mais recente”, assume que o consumo de leite com teor de gordura mais elevado indica “um aumento do risco de mortalidade por todas as causas, por doença cardiovascular e por cancro”. Daí o guia alimentar nacional continuar a dar primazia às versões magras dos laticínios, tal como a OMS.
A chave do equilíbrio, perante o que hoje se conhece, passa por aconselhar o consumo de produtos lácteos de forma moderada, sem deixar de avaliar o melhor plano caso a caso. É o que Nuno Borges preconiza na sua prática clínica, na qual admite sugerir uma ou outra porção de leite de vaca gordo, se o utente precisar de mais energia, por exemplo, com o intuito de aumentar a massa muscular, e se apresentar “dificuldade em atingir o número de calorias necessário para esse efeito”. Da mesma forma, optará pelo leite magro se o objetivo do utente for perder peso.
Apesar do referido anteriormente sobre os cuidados a ter com o teor de gordura dos laticínios, Maria João Gregório alega que qualquer novo estudo em matéria de alimentação deve ser enquadrado “no contexto de toda a evidência já produzida sobre o tema”, o que a leva a garantir que “o consumo de laticínios, nas quantidades recomendadas, apresenta benefícios para a prevenção de alguns tipos de cancro, da diabetes tipo 2, de doença cardiovascular e ainda de hipertensão, síndrome metabólica, obesidade e osteoporose”.
Liliana Sousa, por sua vez, sublinha que entre os consumidores e os não consumidores “deve imperar a razoabilidade”. A bastonária acredita que o tempo dos fundamentalismos ficou para trás e que o leite gordo poderá mesmo voltar a desempenhar um papel importante, assim como “já foi um superalimento em períodos de fome mais difíceis da História”, por exemplo, na recuperação de certas doenças ou na resposta a carências nutricionais em franjas mais idosas da população. Porque se é incontestável que grande parte dos portugueses ingere quantidades de proteína a mais, não é menos verdade que o último Inquérito Alimentar Nacional, realizado em 2015-2016, identificou um consumo proteico abaixo do ideal em cidadãos mais velhos.
A grande intolerância
Dois terços da população no mundo e um terço em Portugal vivem com incapacidade
Estima-se que dois terços da população mundial sofram de intolerância à lactose, o que, na prática, se traduz por uma incapacidade total ou parcial do organismo para processar este que é o principal açúcar do leite e dos seus derivados.
Os sintomas mais comuns da condição estão diretamente relacionados com o mau funcionamento do aparelho digestivo e refletem-se em dores abdominais, gases, náusea e diarreia (não confundir com a alergia à proteína do leite). A gravidade dos mesmos depende da quantidade de lactose ingerida e do respetivo grau de intolerância de cada pessoa.
Em Portugal, cálculos da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia indicam que um terço da população não tolera a lactose, não beneficiando de uma alteração genética que os nossos antepassados foram adquirindo e transmitindo de geração em geração, e que permite ao organismo produzir a enzima lactase na idade adulta, o “antídoto” para digerir sem complicações a lactose.
Este pode ser um motivo para se deixar de consumir laticínios, mas hoje existem no mercado vários leites sem lactose que resolvem facilmente o problema, sem perda de qualquer nutriente além da própria lactose.
Na China, praticamente toda a população tem intolerância à lactose, enquanto nos países do Norte da Europa quase toda a gente ganhou a mutação genética que viabiliza a produção da enzima lactase.