Com as Jornadas Mundiais da Juventude à porta, Governo, Polícia Judiciária e outros atores públicos apressaram-se a descartar qualquer hipótese de motivação terrorista nos homicídios de duas mulheres no Centro Ismaili, em Lisboa. A acusação do Ministério Público contra Abdul Bashir, 29 anos, a que a VISÃO teve acesso, revela, contudo, que esta hipótese esteve sempre em aberto até ao início do presente mês.
De acordo com o documento, “só com o resultado da pesquisa, seleção, tradução de toda a prova digital”, entre a qual se encontravam computadores e vários telemóveis do arguido e das vítimas, e a análise de uma mensagem de voz recebida por Abdul Bashir na véspera dos homicídios, é que “foi possível concluir a motivação e a natureza dos crimes e afastar, totalmente, a natureza da intenção terrorista do arguido”, considerou a procuradora Cláudia Porto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
Estas análises decorreram no início deste ano. Aliás, só no final do mês de janeiro é que a Polícia Judiciária conseguiu aceder à tal mensagem de voz recebida pelo suspeito a 27 de março de 2023. Só então se concluiu que a “mensagem que lhe foi deixada não tinha qualquer relação” com os factos ocorridos a 28 de março no Centro Ismaili, uma vez que se tratava de uma comunicação de um sobrinho.
Por outro lado, novos relatórios médicos, apenas juntos ao processo no início deste mês, atestaram um quadro psiquiátrico de esquizofrenia e de uma perturbação da personalidade mista, designadamente perturbação de personalidade narcisista e perturbação de personalidade antissocial, como adiantou, em comunicado, o DCIAP. Daí, o Ministério Público considerar Abdul Bashir como inimputável, requerendo o cumprimento da pena em hospital psiquiátrico, onde se encontra, atualmente, em prisão preventiva.
A prova digital recolhida e analisada, por um lado, revelou a “existência de um histórico grande de interações e problemas entre o arguido e as vítimas” e, por outro, “não foi detetado qualquer conteúdo a nível digital que revelasse uma ideologia fanática ou fundamentalista do arguido, religiosa ou política, que permitisse concluir pela pertença ou adesão a uma organização terrorista de matriz jihadista, de extrema direita ou qualquer outra”, finalizou a procuradora, sublinhando que “só neste momento importa concluir que o arguido não praticou nenhum facto típico previsto na Lei de Combate ao Terrorismo”.
A magistrada do Ministério Público realça ainda que toda a “investigação desenvolvida” no processo “corresponde à investigação típica de um crime de terrorismo, uma vez que as diligências que se seguiram não se enquadram, de todo, numa investigação normal no âmbito de um duplo homicídio”.
A acusação do Ministério Público, por isso, imputa a Abdul Bashir 11 crimes: dois homicídios qualificados, seis de tentativa de homicídio, dois de resistência e coação sobre funcionário e um crime de detenção de arma proibida.
O despacho descreve em pormenor os antecedentes na relação entre Abdul Bashir e as duas funcionárias do centro ismaelita assassinadas a 28 de março do ano passado. Aparentemente, fruto do quadro mental atestado pelos peritos, não soube lidar com a rejeição de uma delas, entrando, a 28 de março, no Centro Ismaili com a intenção de matar.
O que viria a acontecer, quando o arguido a localizou no interior de uma das salas do centro. Quando uma amiga desta se levantou para a socorrer, Bashir acabaria por lhe desferir também vários golpes com uma faca de cozinha que transportava dentro de uma mochila.