Diz a sabedoria popular que a curiosidade aguça o apetite. Viajar pelo mundo é uma receita antiga para saciar o fascínio pelo desconhecido, tantas vezes transformada, ao longo da história, em feroz competição entre povos – do controlo das melhores rotas comerciais ao domínio de terras e mares para lá do horizonte. Nas décadas mais recentes, e sobretudo nos últimos anos, tornou-se, também, uma disputa entre simples viajantes, sempre à caça de um novo destino para subirem no ranking mundial. Sim, há hoje uma hierarquia global destes exploradores dos tempos modernos, cada vez mais competitiva, que incita a partir à descoberta.
De tal forma assim é que, segundo a estimativa da plataforma Nomad Mania, já mais de 400 pessoas estiveram em todos os países reconhecidos pela ONU, o barómetro de referência para estes colecionadores de carimbos no passaporte, seis dos quais portugueses. Até ao início da década passada, ficavam-se pela casa das dezenas. No final do século XX, contavam-se pelos dedos das mãos.
O escritor e fotojornalista finlandês Rauli Virtanen, que completou a missão em 1988, com 40 anos, ao chegar ao Butão, é considerado o pioneiro. A grande maioria dos países visitou-os em trabalho, enquanto correspondente de vários meios de comunicação social. Em 2023, 51 viajantes juntaram-se à lista, ainda bastante restrita mas a crescer a uma velocidade nunca antes vista.
Há quem não tenha pressa, como o dinamarquês Torbjorn Pedersen, que encerrou nas Maldivas, em maio do ano passado, o seu périplo pelos 193 países atualmente reconhecidos pela ONU. Demorou nada menos do que uma década, em virtude de ter renunciado às viagens de avião. Mas também há os que tentam percorrer o mundo inteiro no menor tempo possível.
O recorde do Guinness pertence à norte-americana Taylor Demonbreun, que precisou de 544 dias, cerca de ano e meio, para visitar todos os países do mundo. Enquanto se formava em economia, estagiou em Wall Street, mas o mercado financeiro não a seduziu. O que mexeu com ela foi saber que a compatriota Cassandra De Pecol tinha demorado 555 dias a passar por todos os estados soberanos reconhecidos pela ONU.
Ao chegar ao Canadá, no dia 7 de dezembro de 2018, então com 24 anos, Taylor ganhou o seu lugar no livro dos recordes. Na memória ficaram, por exemplo, a noite divertida no Irão a usar o tradutor do Google para se entender com os interlocutores, o ataque cardíaco do pai que a fez voltar a casa quando se encontrava “no meio de África” ou a generosidade que diz ter encontrado em todos os lugares, sem exceção, segundo contou à página oficial do Livro de Recordes do Guinness.
Anderson Dias, um brasileiro que partiu com uma mochila às costas e dormiu na rua em Barcelona, entrou armado no Iémen e foi deportado da República do Congo, reclama ter visitado todos os países em 543 dias, menos um do que Taylor Demonbreun. O final da aventura aconteceu em Cabo Verde, em novembro 2019, mas, até ao momento, o Guinness ainda não oficializou o eventual novo recorde.
Para a comunidade da Nomad Mania, uma organização sem fins lucrativos, escalas em aeroportos ou dar um passo para lá de uma fronteira não podem ser considerados como visita a um país, assim como pisar a zona desmilitarizada que separa as duas Coreias não é sinónimo de se ter estado na Coreia do Norte – isto apesar de a estimativa de que 465 pessoas já terão passado por todos os países do mundo não ter em conta estas nuances, uma vez que elas nem sempre foram tidas em conta por outras organizações, como o prestigiado Travelers’ Century Club, criado em 1954 para juntar viajantes com mais de 100 países no “currículo” e que hoje conta com mais de 1500 membros, ou o próprio Guinness.
Um português no pódio
A par dos “mestres da ONU”, a designação que a Nomad Mania atribui a quem coleciona passagens pelos países reconhecidos pelas Nações Unidas, há outras competições do mesmo género em curso, destinadas aos membros registados na plataforma. A principal diz respeito a uma lista de 1301 regiões do mundo, definidas pela Nomad Mania, e que ainda ninguém completou. Outra refere-se aos locais classificados pela Unesco como Património Mundial da Humanidade, num total de 1199, igualmente à espera da primeira pessoa que a complete.
Há gente de quase todo o mundo a participar nestas “corridas”. O português João Paulo Peixoto segue no terceiro lugar, no primeiro caso (com 1228 regiões visitadas), e em oitavo, no segundo (847 locais). Já no Most Traveled People (MTP), outro clube de viajantes que aspiram a visitar 1500 regiões, ocupa a segunda posição da tabela, já com 1330 dessas regiões visitadas.
Na bio com que se apresenta no MTP, o economista, natural de Braga, conta que, depois de completar a universidade, estabeleceu o objetivo de ultrapassar o primo no número de países onde tinha estado, 70. Mais tarde, subiu a fasquia para os 130, que seria mais ou menos a marca de Mário Soares, acreditava ele. A seguir, a ideia passou por superar os 150 do papa João Paulo II. “Em 2006, não me restou alternativa senão a de viajar a todos os países do mundo”, sublinha, para fechar o raciocínio.
Pai de sete, João revela que tanto viaja acompanhado da família como ao lado de outros viajantes ou com um guia, mas na maior parte das vezes parte sozinho. A sorte, essa, parece estar sempre presente. Relata que escapou a um descarrilamento no Zimbabué, que se livrou por dois dias de um sismo nas Ilhas Salomão, que deixou um hotel em Cabul onde os talibãs dispararam sobre os turistas, que saiu de um autocarro à pinha em Marrocos que depois se despenhou numa ravina. No Iémen, acrescenta, foi confundido com um agente da CIA, tantos eram os carimbos no seu passaporte. “Um polícia oferecia-me cigarros e falava sobre o Cristiano Ronaldo; o outro ameaçava-me”, descreve, sobre o interrogatório a que foi submetido. No dia seguinte, seria autorizado a entrar no país do Médio Oriente e, nessa mesma tarde, foi “convidado a dançar na rua”, durante um casamento.
Passaporte que abre portas
O Iémen continua a ser dos poucos países do mundo onde os portugueses só conseguem entrar com autorização prévia. O passaporte nacional é um dos que abre portas em mais países e territórios, sem necessidade de se obter um visto antes da viagem.
De acordo com o Henley Passport Index, que analisa as condições de acesso de 199 passaportes a 227 destinos, Portugal surge, no início de 2024, no quatro lugar no ranking. A par de Bélgica, Luxemburgo, Noruega e Reino Unido, o passaporte português dispensa qualquer aval anterior à chegada a 191 dos destinos considerados.
Os outros 34 países que obrigam os portugueses a requerer autorização prévia para os visitar são os seguintes: Argélia, Afeganistão, Azerbaijão, Benim, Butão, Camarões, Chade, China, Coreia do Norte, Costa do Marfim, Cuba, Eritreia, Gana, Guiné Conacri, Guiné Equatorial, Índia, Libéria, Líbia, Mali, Nauru, Níger, Nigéria, Paquistão, Papua Nova Guiné, República Centro Africana, República do Congo, República Democrática do Congo, Rússia, Síria, Sudão, Sudão do Sul, Turquemenistão, Uganda e Vietname.