Desde que acordamos até que nos deitamos, estamos sempre a conversar. Pode surgir de forma espontânea. “Há muito tempo que não via um filme tão bom.” Outras vezes, parece o ‘grilo falante’ ou a ‘fada sininho’ das histórias infantis. “Por agora, é melhor não pensar mais nisso.” Como apresentar esta presença familiar e silenciosa, que dá sinais de si quando estamos sós, mas também se estamos acompanhados?
Há quem lhe chame voz interior ou discurso interno. Assim que se aprende a articular palavras e a dar nome às coisas, essa atividade mental que é feita de pensamentos e crenças, vai ganhando espaço no nosso psiquismo e estabelecemos uma relação com ela para a vida. O tema foi estudado pelo psicólogo suíço Jean Piaget, no século passado. O seu modelo do desenvolvimento da inteligência, com quatro estádios, contemplava a formação do pensamento simbólico na primeira infância.
As crianças falam com os brinquedos, outras vezes encetam diálogos com um amigo imaginário e, aos poucos, vão ampliando a capacidade de pensar por si de formas mais abstratas e complexas. Mais tarde, o psicólogo bielorrusso Lev Vygotsky e os seus estudos sobre pensamento e linguagem, sublinhou a função organizadora da conversa interior no comportamento social.
Com os avanços das técnicas de imagiologia cerebral, até que ponto podemos afirmar com rigor que a voz na nossa cabeça influencia as nossas decisões e comportamentos?
O cérebro falante
Colocar hipóteses, simular cenários, definir estratégias e alcançar metas é algo que conseguimos fazer, em boa parte, devido a esta competência metacognitiva, conhecida pela expressão “falar com os seus botões”. As investigações em neurociência sugerem que falar consigo mesmo contribui para melhorar o desempenho, como atesta um estudo divulgado na revista Sports, que envolveu 117 jovens atletas. Aqueles que receberam formação sobre como usar o diálogo interno na prática desportiva apresentaram menos sintomas ansiosos e uma melhor perceção de eficácia, além de terem um rendimento superior numa tarefa cognitiva, face ao grupo de controlo.
Na revista Scientific American, um estudo mostrou que estas conversas íntimas, longe de serem um processo solitário, envolvem a exploração de várias perspectivas numa dada situação e são concomitantes com a ativação de sistemas neuronais entre os dois hemisférios do cérebro (o direito, responsável pela cognição social, e o esquerdo, onde se processa a linguagem), legitimando os trabalhos de Vigotsky.
Falar sozinho é normal?
Pela vida fora, sobretudo em fases de isolamento social, involuntárias ou intencionais, é comum falar em voz alta consigo mesmo, na primeira, mas também na segunda pessoa e, desse modo, regular emoções, sossegar ânimos e angústias, gizar planos ou convencer-se a fazer determinada coisa que se deseja. Quando o discurso interno sai da cabeça e é expresso oralmente, pode haver nisso uma tentativa de organizar o pensamento, mantendo as interferências, internas e externas, em fundo, mas é igualmente plausível que seja uma maneira de compensar a falta de interação social e dar vazão a estados emocionais, em períodos de maior isolamento ou falta de companhia.
Embora o discurso interno desempenhe um papel relevante nos processos cognitivos que envolvem a memória de trabalho, uma pesquisa divulgada em 2019 sobre as diferenças individuais na frequência do discurso interno permitiu constatar que ele se acentua nos casos em que se experimentam perdas afetivas ou se passa por um período de isolamento e é mais comum em pessoas com traços de introversão.
Sofrer de perturbações psicológicas, como ansiedade social e perturbação obsessivo-compulsiva, também parece refletir-se numa maior tendência para se entregar a este registo. Segundo o autor do estudo, Tom Brinthaupt, da Middle Tennessee State University, isso pode dever-se à tentativa de resolver, compreender ou dar sentido a experiências perturbadoras e contribuir para regular (ou lidar melhor) com emoções potencialmente avassaladoras.
Para que serve, afinal
Na prática, quando nos confrontamos com estados de medo, vergonha e outros, geralmente negativos, adotar o lema “precisamos de falar”, na primeira ou, melhor ainda, na segunda pessoa, pode proporcionar um distanciamento saudável antes de realizar uma tarefa exigente (por exemplo, falar em público, ou fazer um exame). E, se o tempero da conversa for bom (marcado por uma atitude positiva), até se consegue aquela motivação extra para levar uma missão a bom porto.
Porém, há que contar com a relatividade, ou seja, os vieses, as distorções do julgamento. Há dois anos, uma equipa de cientistas liderada por Junhyung Kim, da Faculdade de Medicina da Universidade da Coreia, em Seul, apurou se o discurso interno, negativo e positivo, tinha impacto na conectividade funcional do cérebro e efeitos no desempenho cognitivo. Para o efeito, os participantes leram e gravaram os pensamentos (afirmações iniciadas por “eu”), que ouviram quando foram submetidos a testes de inteligência fluida, tendo o seu funcionamento neuronal sido avaliado através de ressonância magnética funcional.
As conclusões do estudo, divulgado na revista científica Nature, foram, no mínimo, curiosas: a atividade cerebral do grupo com conversa interna positiva (respeito próprio) aumentaram, mas o mesmo não aconteceu ao nível do desempenho, ao passo que o grupo com discurso interno negativo (autocrítica), mostrou um aumento da atenção e motivação para a tarefa, com vantagens no rendimento.
Em suma, a confiança nas capacidades próprias nem sempre está calibrada e, por vezes, não ter a autoconfiança nos píncaros revela-se vantajoso, porque se tende a reforçar a vigilância e o empenho.

Quando o discurso interno não é bom aliado
Nem sempre nos dirigimos a nós de forma flexível, generosa e com respeito. A ‘culpa’ pode residir no modelo de educação autoritário, em traços de personalidade perfecionistas ou num estilo de funcionamento aprendido pautado por exigências excessivas e crenças irrealistas.
Então, sempre que a voz negativa entra em cena, a vida complica-se e os efeitos do crítico interno manifestam-se em desajustes vários nas esferas profissional, social e íntima. Como se silencia este sabotador, que teima em inundar a cabeça com cenários catastróficos, observações pejorativas e perturbadoras? Que o digam os adeptos da atenção plena, que aprendem a observar os pensamentos e sentimentos sem fazer julgamentos nem agarrar-se a eles (o que favorece a manutenção de estados de ruminação e outros, com pendor depressivo ou ansioso).
Lembrando que não somos apenas aquilo que pensamos, o psicólogo clínico, psicoterapeuta e formador Vitor Fragoso sublinha a importância de “cultivar uma relação fluida com a voz própria, não a imprópria, que é aquela que se fecha sobre si e conduz à perda de contacto com a realidade”. A frequência, a intensidade e a generalização do discurso interno vão determinar se o processo é saudável ou patológico.
Com duas décadas de prática clínica, o especialista identifica quatro tipos de diálogo interno que dificultam a vida e que podem ser transformados com acompanhamento profissional.
Ansioso
Perde-se em projeções e fica preso aos incessantes “e se”. “E se ele(a) me deixar?” “E se eu não tiver condições para me sustentar?” Ao inclinar-se demais para o futuro, a mente acaba por desequilibrar-se
Autocrítico
Os ‘mimos’ que muitos de nós já terão experimentado – “Tu não vales nada”, “foi bom mas podia ser melhor”, “é sempre a mesma coisa” – são transferidos da cabeça para os relacionamentos quotidianos, minando-os
Vitimizador
O pensamento funciona como interruptor que induz afetos com consequências negativas. “Se está a correr bem, é de desconfiar”, “o pior está para vir”, “com a sorte que tenho, não vai correr bem” e afins
Perfeccionista
“Tinha tudo para fazer melhor e não fiz”. Não se permite falhar e exige tanto a si e aos outros que acaba por sentir que está sempre a falhar ou que todos falham consigo, nada é suficiente ou satisfatório
Mudar de conversa
“Se a pessoa tiver um funcionamento muito autocentrado, sem estabelecer pontes fora de si, o seu mundo interno fica empobrecido”, observa Vitor Fragoso. E acrescenta: “Somos construtores de histórias; o que contamos a nós mesmos e aos outros precisa de ser atualizado, mas se o diálogo interno fica saturado, compromete o caminho da saúde.”
A saída deste beco passa, com frequência, pela relação terapêutica: “O paciente vai-se escutando a partir do eco que o terapeuta lhe vai dando e começa a questionar se está num ciclo vicioso ou depreciativo, ganhando um chão afetivo para se abrir a novas formas de pensar.”
Assim tem acontecido entre as paredes do consultório, mas também no trabalho que o formador em Educação e Inteligência Emocional desenvolve na Universidade Sénior Contemporânea do Porto e no Instituto Cultural da Maia (Universidade Sénior): “Partilham histórias e narrativas de vida e transformam-se.” Descobrem, de facto, a sua voz interior, livre de teias de aranha ou ferrugem, e ensaiam voos mais amplos, dentro e fora de si.
Agora já sabe: sempre que der por si a fazer cálculos sobre o que aconteceu, não aconteceu ou podia ter acontecido ou, perante um dilema, um desafio ou uma fantasia, se entregar a deambulações nos confins da sua mente, preste atenção ao que diz a sua voz interior. O seu discurso interno pode ser o seu melhor aliado se estiver disposto a aprender com ele enquanto navega a espuma dos dias.