Há muito, muito tempo, há cerca de 2,5 milhões de anos, viver em pequenas comunidades nómadas, obrigava as pessoas a caçarem e a serem coletores para assegurar a sobrevivência.
Mas, tal não significa que o homem fosse o predador, o único que saía para caçar. No verão, uma nova investigação coordenada por Cara Wall-Scheffler, da Universidade de Washington, em Seattle, e publicada na revista PLOS ONE, já questionava uma das principais provas em que os cientistas se têm baseado para aferir como era a vida há cerca de 200 mil anos, quando o Homo sapiens surgiu como espécie.
A equipa descobriu que, de acordo com uma análise feita a registos etnográficos de todo o mundo e do século passado, as mulheres das sociedades caçadoras, tanto jovens, como idosas, caçavam animais de pequeno e grande porte.
Em grupo ou sozinhas, com os seus filhos e cães de caça, empunhavam armas e caçavam. Nas Filipinas, por exemplo, as mulheres Agta caçavam com facas, arcos e flechas, ou uma combinação das duas armas, consoante a preferência pessoal. A caça aparentava ser intencional, em vez de um abate oportunista de animais encontrados enquanto se realizava outra tarefa.
A ideia de que as mulheres não eram fisicamente capazes de caçar porque a sua anatomia era diferente da dos homens, classificado como o impulsionador da evolução humana, volta agora a ser deitada por terra.
Mas, onde surgiu o estereótipo de que o homem caçava e a mulher recolhia? Após os antropólogos Richard B. Lee e Irven DeVore publicarem Man the Hunter (Homem, O Caçador), uma coleção de artigos académicos apresentados num simpósio em 1966. Os autores argumentaram que a caça impulsionou a evolução humana ao adicionar carne às dietas alimentares pré-históricas, contribuindo para o crescimento de cérebros maiores, em comparação com os dos primatas – daí a presumirem que todos os caçadores eram do sexo masculino foi um ápice, espalhando-se na cultura popular, em desenhos animados, filmes, exposições e livros.
O poder do estrogénio
Sarah Lacy, professora de antropologia da Universidade de Delaware, nos EUA, estudiosa da saúde dos primeiros humanos, e Cara Ocobock, da Universidade de Notre Dame, também nos EUA, fisiologista especialista em analogias entre os dias modernos e o registo fóssil, analisaram a divisão do trabalho de acordo com o sexo durante o Paleolítico há, aproximadamente, 2,5 milhões a 12 mil anos. Através de uma revisão das evidências arqueológicas e da literatura atuais, encontraram poucas evidências que apoiassem a ideia de que os papéis eram atribuídos especificamente a cada sexo. A equipa também examinou a fisiologia feminina e descobriu que as mulheres não eram apenas fisicamente capazes de serem caçadoras, mas que há poucas evidências que sustentem que não caçavam.
O seu estudo publicado recentemente na Scientific American e em dois artigos na revista American Anthropologist é a tentativa de resposta de que na pré-história não é possível dividir as tarefas consoante o género masculino ou feminino. As investigadoras encontraram exemplos de igualdade para ambos os sexos em ferramentas antigas, dieta, arte, enterros e anatomia.
“As pessoas encontraram coisas no passado e automaticamente classificaram-nas como masculinas e não reconheceram o facto de que todas as pessoas que encontramos no passado têm esses marcadores, seja nos seus ossos ou em ferramentas de pedra que foram colocadas nas suas sepulturas. Não podemos dizer: ‘Só os homens fazem pederneira’, porque não há nenhuma assinatura na ferramenta de pedra que nos diga quem a fez. Mas, pelas evidências que temos, parece não haver quase nenhuma diferença entre os sexos nos papéis”, sublinha Sarah Lacy.
Também foi esmiuçado se as diferenças anatómicas e fisiológicas entre homens e mulheres impediam-nas de caçar. Descobriram que eles têm vantagem em atividades que exigem velocidade e potência, como sprint e arremesso, mas que elas ganhavam em atividades que requerem resistência, como correr. Ambos os conjuntos de atividades eram essenciais para a caça nos tempos antigos.
A vantagem feminina deve-se ao papel do estrogénio, hormona responsável pelas características sexuais secundárias femininas, capaz de aumentar o metabolismo da gordura, fornecendo aos músculos uma fonte de energia mais duradoura, o que regula a degradação muscular.
“Quando olhamos mais a fundo para a anatomia e a fisiologia moderna e depois para os restos ósseos de pessoas antigas, não há diferença nos padrões de trauma entre homens e mulheres, porque ambos faziam as mesmas atividades”, explica a antropóloga.
Sabendo que durante a era paleolítica, a maioria das pessoas vivia em pequenos grupos, para a investigadora não faz sentido que apenas parte do grupo fosse caçar.
Sarah Lacy defende que os atuais padrões de igualdade de género não se coadunam com os dos nossos antepassados: “Fomos uma espécie muito igualitária durante milhões de anos em muitos aspetos.”