Na segunda sessão do julgamento de Mamadou Ba, foi a vez de se ouvir o queixoso: Mário Machado. Numa posição que lhe é estranha em tribunal, o militante neonazi falou ao tribunal na qualidade de assistente, numa audiência em que, com frequência, se regressou ao passado criminal de Mário Machado e se viveram momentos de alguma tensão, depois de uma acesa troca de argumentos com Isabel Duarte, advogada de Mamadou Ba.
“As afirmações falsas [de Mamadou Ba] foram penosas para mim e para a minha família”, disse Mário Machado, que ainda falou de como “os filhos sofrem quando ouvem que o pai é um assassino”. “Decidi apresentar queixa por um acumular de situações. Ele [Mamadou Ba] já tinha afirmado isto antes, mas, é como se costuma dizer, foi a última gota que fez transbordar o copo. Cometi os meus crimes e fui condenado, e bem. Hoje, estou inserido na sociedade, não represento nenhum perigo… Não matei Alcindo Monteiro. Não há injúria mais gravosa do que chamar assassino a quem nunca matou ninguém… e não tenho relação com as pessoas que estiveram presentes [no momento do crime]”, afirmou.
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Recorde-se que na origem deste processo está um texto publicado, no Facebook, por Mamadou Ba, no dia 14 de junho de 2020, em que este voltou a considerar Mário Machado “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro” – assassinado, na Rua Garret, em Lisboa, no dia 10 de junho de 1995, por militantes da extrema-direita.
O texto de Mamadou Ba surgiu na sequência de críticas a acontecimentos ocorridos quatro dias antes (no feriado de dia 10), depois de um grupo de neonazis ter decidido organizar uma ação nacionalista, no largo do Chiado, precisamente ao mesmo tempo em que decorria uma homenagem a Alcindo Monteiro, por ocasião dos 25 anos da sua morte, a somente 200 metros de distância – Alcindo Monteiro, cidadão português, de origem cabo-verdiana, foi assassinado na Rua Garret, em 1995, por militantes da extrema-direita.
A ação nacionalista contou com a presença, entre outros, de João Martins, condenado a 17 anos pelo homicídio de Alcindo. Naquela rede social, Mamadou Ba denunciou a provocação e lamentou o facto de João Martins ter passado, todos estes anos, “pelos pingos da chuva do escrutínio público”, longe dos olhares mediáticos, ao contrário de outro parceiro ideológico, Mário Machado, que o autor do texto descreveu como “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo”.
Mário Machado fazia, de facto, parte do grupo de extrema-direita que, na noite do dia 10 de junho de 1995, decidiu espalhar o terror pelas ruas de Lisboa, agredindo e matando indivíduos de raça negra. O conhecido neonazi acabaria condenado, sim, mas “apenas” pelos crimes de ofensas corporais com dolo de perigo, pelos foi condenado a quatro anos e três meses de prisão, pena depois reduzida para dois anos e meio. O seu nome não seria relacionado com os factos que resultaram na morte de Alcindo.
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Tensão no tribunal
A temperatura subiu na sala de audiências, na sequência de um diálogo mais aceso entre Mário Machado e Isabel Duarte, advogada de Mamadou Ba. Em causa, publicações atribuídas a Mário Machado, na rede social Telegram, com conotações racistas – no dia 2 de março, nessa conta, foi publicada a imagem de dois cães, lado a lado, um preto, com uma corda ao pescoço, e outro branco, usando um capuz idêntico ao do grupo supremacista branco norte-americano Ku Klux Klan.
Confrontado com a imagem, o neonazi confessou achar a mesma “muito engraçada”, mas negou que a referida conta do Telegram lhe pertença. “Esta conta não é sua?”, redarguiu Isabel Duarte, que, perante o que pareceu ser uma provocação, insistiu em tom acusatório: “É você quem publica nesta conta!”.
“Você não pode dizer isso!”, respondeu Mário Machado, que voltou a afirmar que “a imagem está muito engraçada”, mas que “não usa o Telegram”. “Não se excite”, chegou mesmo a dizer Machado, no meio da troca de palavras, antes de a juíza Joana Ferreira Antunes pedir silêncio aos intervenientes e acalmar os ânimos.
Já no exterior da sala de audiência, porém, Mário Machado mudaria esta versão, recusando dizer aos jornalistas se, afinal, a conta de Telegram é ou não sua, mas apenas referindo que “enquanto achar que não vivo num país e num regime livres prefiro não responder a essa pergunta”. Ficaram dúvidas no ar…
A fechar esta segunda audiência, a mãe e a ex-mulher de Mário Machado também falaram ao tribunal, corroborando “as consequências negativas” na vida de Mário Machado e da família na sequência do texto de Mamadou Ba. “O Mário ficou muito afetado e teve que se justificar junto de pessoas que lhe são próximas. A vida dele tem sido um inferno por ser acusado de um crime que não cometeu. Acho que é muito injusto e só peço que o deixem seguir a vida dele…”, disse, ao tribunal, Raquel M., ex-companheira de Machado.
À saída do tribunal, Isabel Duarte voltou a afirmar que “este é um julgamento político, como admitiu, hoje, em tribunal, embora com alguma relutância, Mário Machado”. Questionada se considera que a queixa apresentada por Machado contra Mamadou Ba tem objetivos políticos, a advogada de defesa voltou a afirmar “que Mário Machado é um homem político, de extrema-direita” e que, por isso, “tudo o que faz é com objetivos políticos, aliás, tal como o meu cliente [Mamadou Ba]”.
Já José Manuel Castro voltou a criticar “o facto de o julgamento estar a ser desviado do seu objeto”. “Recordo que Mamadou Ba está a ser julgado por aquelas palavras [publicadas no Facebook], isto o normal funcionamento do Estado de Direito. A questão é que, talvez, houvesse pessoas que se julgavam intocáveis e não imaginavam que, um dia, se sentariam no banco dos réus”, disse o advogado de Mário Machado
“Se soubesse o que sei hoje…”
Aos jornalistas, Mário Machado confessou que está “arrependido” de ter participado dos ataques do dia 10 de junho de 1995, em que Alcindo Monteiro foi assassinado. “Lamento imenso a morte de Alcindo Monteiro e, também, o facto de aqueles jovens terem sido agredidos. Já o disse, aliás, várias vezes: se soubesse o que sei hoje, naquela noite, nem sequer teria saído de casa”, garantiu.
Durante a audiência, sob olhar atentou de Mamadou Ba (que, como prometeu, voltou a marcar presença no tribunal; acompanhado de cerca de duas dezenas de apoiantes), Machado voltou a identificar-se como “ativista nacionalista, com muito orgulho”. Embora se distancie do homicídio de Alcindo Monteiro – e dos autores do crime –, o neonazi recordou “as centenas de homicídios” que diz serem “cometidos, todos os dias, por negros e ciganos, contra brancos, polícias e outras pessoas, sem que ninguém generalize”. “Eu não generalizo”, assegurou, antes de pedir que “não façam o mesmo” consigo.