Depois da Operação Marquês, o juiz Ivo Rosa voltou a invocar um acórdão do Tribunal Constitucional para declarar a prescrição dos crimes de corrupção em causa no processo conhecido como a “Máfia do Sangue”. No final da fase de instrução, os arguidos Paulo Lalanda de Castro, antigo responsável pela Octapharma em Portugal, Luís Cunha Ribeiro, antigo presidente do INEM e da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) , e a médica Manuela Carvalho acabaram apenas pronunciados pelos crimes de falsificação de documentos e recebimento indevido de vantagem.
E o que é que os responsáveis públicos – Cunha Ribeiro e Manuela Carvalho – receberam de Paulo Lalanda de Castro? Quatro cabazes de Natal – em 2013 e 2014 – com um valor de 500 euros cada. Luís Cunha Ribeiro e Manuela Carvalho, antiga presidente da Comissão Nacional de Hemofilia e médica no Hospital de São João, no Porto, alegaram que as ofertas de Paulo Alanda de Castro era “socialmente adequadas”, não indiciando, por isso, qualquer proximidade com a Octapharma, que venceu concursos de fornecimento de plasma ao Estado, investigados neste processo.
“Ao contrário do alegado pelos arguidos em causa, mesmo que se admita que a entrega de cabazes de Natal por parte da industria farmacêutica a médicos era uma prática corrente e habitual à data dos factos, a mesma, por violar, de forma manifesta, a lei, jamais poderá ser considerada como uma prática socialmente aceite “, referiu o juiz Ivo Rosa, na decisão instrutória a que a VISÃO teve acesso.
Destino diferente tiveram os crimes de corrupção imputados a Lalanda de Castro, Luís Cunha Ribeiro e Manuela Carvalho. Sobre o antigo presidente da ARSLVT existiam suspeitas de ter recebido dois apartamentos (um em Lisboa e outro no Porto), um carro de luxo, viagens e dinheiro. Já a médica era suspeita de ter beneficiado de várias viagens para o estrangeiro, de forma a favorecer a Octapharma nos concursos de compra de plasma.
De uma assentada, tal como aconteceu na Operação Marquês, o juiz Ivo Rosa invocou o acórdão 90/2019 do Tribunal Constitucional para declarar a prescrição dos crimes imputados aos arguidos. É inconstitucional, sublinhou o magistrado, interpretar as normas relativas à corrupção “no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção activa e passiva é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem”. Para o juiz, alguns dos crimes em causa “já se encontravam prescritos aquando da dedução da acusação”, em 2019, e mesmo “aquando da abertura do próprio inquérito”, em 2015.
O que o Tribunal Constitucional veio dizer, em fevereiro de 2019, contrariando uma posição do Supremo Tribunal de Justiça, é que o prazo para se iniciar a conta da prescrição inicia-se quando, por exemplo, um titular de cargo público faz um acordo com um privado para um ato ilegal. Mesmo que o titular comece a receber dinheiro um ano depois, é a partir da data do acordo que o prazo deve contar e não do primeiro recebimento.
Esta decisão do Constitucional – que mereceu fortes críticas num voto de vencido da juíza Fátima Mata-Mouros, antiga juíza de instrução criminal – alterou por completo a interpretação da lei que que, até à data, vinha a ser feita, até pelo Supremo Tribunal de Justiça. Este tribunal, analisando um recurso de um arguido que vincava precisamente a tese que venceu no Constitucional, referiu que, a ser assim,”permitir-se-ia que os arguidos continuassem a praticar atos de execução do crime, continuando a pagar e a receber subornos em perfeita impunidade. Correr-se-ia o risco, no limite, de o crime já estar prescrito ainda antes da sua consumação material ou terminação, o que, obviamente, precludiria toda e qualquer possibilidade de perseguição e punição do criminoso, conduzindo não só à impunidade, como ao total descrédito do Estado de direito, em particular dos tribunais e da administração da justiça”.
Caso aguarda posição do MP sobre suspensão do processo
Durante a fase de instrução, a defesa de Paulo Lalanda e Castro, segundo a Lusa, tinha proposto entregar até 500 mil euros para obter a suspensão provisória do processo, embora considerasse à partida estar inocente dos factos que o MP lhe imputou: dois crimes de corrupção ativa para ato lícito, três crimes de recebimento indevido de vantagem e dois crimes de falsificação (um na forma consumada e outro na forma tentada).
Relativamente a Cunha Ribeiro, a sua defesa tinha argumentado pela não pronúncia para julgamento, devido a nulidades, inconstitucionalidades e outros vícios e falhas da acusação, mas, à cautela e em alternativa a uma eventual pronúncia, manifestou a concordância em pagar uma injunção de 24.300 euros caso fosse aplicada a suspensão provisória do processo.
A defesa da arguida Manuela Carvalho, que rejeitara anteriormente os factos que eram imputados na acusação, havia proposto, em alternativa a uma eventual pronúncia, pagar 4.000 euros mediante a suspensão provisória do processo.
Como o crime de corrupção caiu para os três, os respetivos advogados insistiram na aplicação da suspensão provisória do processo, mas agora só para os crimes de recebimento indevido de vantagem e falsificação, muito provavelmente com valores mais baixos.O juiz Ivo Rosa deu 10 dias ao Ministério Público para responder à pretensão das defesas.
A aplicação da suspensão provisória do processo permite que o arguido não seja julgado pelos crimes de que está indiciado mediante o pagamento de uma injunção, mas este instituto só pode ser aplicado a crimes cuja moldura penal não seja superior a cinco anos de prisão.
Os restantes arguidos do processo – Paulo Farinha Alves (advogado), Helena Lalanda e Castro, Elsa Morgado (farmacêutica) e a empresa Convida – foram todos despronunciados.