Para quem não está a acompanhar, todas as segundas-feiras, a série The Last of Us, um fenómeno de popularidade no streaming da HBO Max (a adaptação do videojogo homónimo), faremos uma breve explicação, sem qualquer spoiler para o fiéis espectadores, sobre os fungos, as infeções e a pandemia global de que trata o argumento.
A ação recua a 1968 e, logo nas cenas iniciais, o personagem de um epidemiologista é questionado sobre se os micro-organismos são uma ameaça mundial. “Os fungos não procuram matar, mas controlar. Os vírus podem deixar-nos doentes, mas os fungos podem alterar as nossas mentes”, alerta.
E exemplifica: “Um fungo que infeta insetos. Entra numa formiga, por exemplo, viaja pelo sistema circulatório até ao cérebro e inunda-o de alucinogénios, manipulando a mente da formiga. O fungo começa a controlar o comportamento da formiga e como precisa de comida para viver começa a devorar o hospedeiro de dentro para fora, trocando a carne da formiga pela sua.”
O último esclarecimento em forma de questão, deixa uma dúvida: “O fungo não sobrevive à temperatura interna do hospedeiro acima dos 34 graus centígrados. Mas, e se o mundo ficasse mais quente?”.
Na ficção esta pergunta é feita 55 anos antes de a vida real decorrer em 2023 e esse aumento de temperatura ser já uma verdade, mesmo que o cenário pós-apocalíptico ainda seja só fruto da imaginação e zombies, por enquanto, nem vê-los.
O aumento das temperaturas representa um risco verdadeiro de agravamento das infeções fúngicas. A temperatura corporal dos humanos, à volta dos 36,6ºC, funciona como uma proteção, pois a maioria das espécies de fungos para disseminar uma infeção prefere a temperatura entre 25 e 30 graus centígrados.
“Sabe-se que cerca de 35 desses fungos ophiocordyceps transformam insetos em zombies, mas podem existir até 600”, disse João Araújo, especialista em fungos parasitas do Jardim Botânico de Nova Iorque, à revista National Geographic.
O fungo Cordyceps – o principal vilão da série The Last of Us que faz com que cada pessoa infetada grite, mova-se muito rápido e a sua cabeça assemelha-se a cogumelos (devorar o hospedeiro de dentro para fora), transformando-se num zombie –, é um fungo parasita que faz parte das cinco milhões de espécies de fungos existentes no mundo, incluindo algumas centenas perigosas para os humanos.
“Quando o ser humano passou do paleolítico para o neolítico, e se sedentarizou, surgiram muitas das nossas atuais doenças quando domesticámos animais e passámos a conviver com eles. Muitas das doenças saltaram do hospedeiro animal para o humano”, sublinha Pedro Bingre do Amaral, professor de Engenharia Florestal, Ordenamento do Território e Ambiente na Escola Superior Agrária, em Coimbra.
“Existe um enorme conjunto de parasitas e parasitoides, não necessariamente fungos, podem ser vírus, bactérias e outros animais, que infetam hospedeiros e mudam o seu comportamento”, avisa Pedro Bingre do Amaral.
E dá alguns exemplos: O agente patogénico da raiva modifica o comportamento dos cães de forma a que ao morderem completem o ciclo de vida e contagiem outros mamíferos. Há agentes patogénicos que modificam a neurologia das formigas que começam a tentar subir para pontos altos expostos à luz, espigas do campo, de forma a serem comidas pelas ovelhas que passam a ser hospedeiras e transmitem o vírus pelos seus excrementos. A formiga come-os e são de novo infetadas, num ciclo infernal.
Há parasitas que têm um ciclo de vida entre gaivotas e bivalves: quando contagiam uma amêijoa, essa abre a concha, ficando voltada para cima para ser comida pela gaivota, a gaivota come e os seus excrementos vão circular. Quando os ratos são contaminados com a toxoplasmose começam a correr freneticamente para serem capturados pelos gatos que depois também ficam contaminados fazendo com que o parasita circule entre ratos e gatos. A toxoplasmose modifica a neurologia do hospedeiro para facilitar a sua propagação.
Caso mais recente é a descoberta do fungo Candida auris, uma levedura resistente a muitos medicamentos antifúngicos, que pode causar infeções crónicas graves e até a morte. Até 2007 não era conhecido pela ciência, mas em 2011 e 2012 foi subitamente encontrado em três continentes. “Aconteceu do nada. A ideia é que esse fungo estava por aí e, com o passar dos anos, foi-se adaptando a temperaturas mais altas até conseguir romper”, analisou Arturo Casadevall, especialista em doenças infecciosas da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg à revista National Geographic.
Afinal o que são os Cordyceps? Segundo o site Real Mushrooms, os cogumelos Cordyceps são fungos parasitas que incluem mais de 400 espécies diferentes. Crescem em todo o mundo, em países como China, Japão, Índia, Estados Unidos da América, Austrália, Peru, Bolívia, entre outros. Normalmente infetam insetos e artrópodes, com cada espécie de Cordyceps capaz de infetar um inseto em particular.
O ciclo de vida começa com os esporos de Cordyceps a pousarem no inseto. O esporo germina e pequenos filamentos, semelhantes a fios, começam a crescer dentro do inseto, transformando-o em micélio. Essa estrutura em forma de raiz do fungo que se desenvolverá num cogumelo vai continuar a consumir o inseto por dentro. Quando o micélio fúngico consome-o totalmente e as condições ambientais são as ideais, um cogumelo em forma de lâmina (corpo de frutificação) é produzido a partir da cabeça do inseto. O cogumelo então liberta esporos e o ciclo de vida recomeça.
Estará a origem do nome relacionada com a sua forma?
Pedro Bingre do Amaral, professor de Engenharia Florestal explica: Cordyceps é um neologismo científico criado para designar um género de fungos no qual se incluem mais de 400 espécies conhecidas pela ciência, das quais mais de 30 são utilizadas na medicina tradicional no extremo Oriente. O termo baseia-se nos étimos grego κορδύ (clava) e latino ceps (cabeça). Significa portanto “cabeça aclavada”. Pode-se fazer preceder por “Ophio” (do grego ὄφις, serpente), significando o conjunto “cabeça aclavada de cobra”. É de supor que o cientista que cunhou este neologismo (micologista sueco E.M. Fries, em 1818) tenha querido descrever numa palavra a morfologia externa no fungo.
Segundo o dicionário de inglês Oxford, isso pode ser devido à “aparência dos corpos frutíferos desses fungos, que têm pontas arredondadas e podem ser pensados para se assemelhar a tacos”.
Quais são as condições ideais para este fungo se desenvolver?
“As condições ecológicas variam grandemente consoante a espécie. A maioria encontra-se em regiões de clima temperado húmido do Hemisfério Norte, ocorrendo algumas com elevado valor comercial nas cordilheiras montanhosas da Ásia central e oriental. Também são conhecidas espécies nas florestas tropicais chuvosas”, descreve Pedro Bingre do Amaral.
Quais os animais que o fungo Cordyceps prefere infetar?
Os hospedeiros conhecidos de fungos deste género são em geral artrópodes, na maioria insetos e aracnídeos. Neil Druckmann e Bruce Straley, criadores do videojogo, em 2013, inspiraram-se no documentário sobre natureza, Planet Earth, da BBC, em que falava da capacidade deste fungo contaminar os insetos.
Mas, o ciclo de vida mais famoso, no qual Druckmann e Straley incidiram o foco, pertence a um “primo” do Cordyceps: Ophiocordyceps. Uma formiga infetada com esporos de Ophiocordyceps unilateralis, explica um artigo da National Geographic, “deixará o ninho para um microclima mais húmido, favorável ao crescimento do fungo. A formiga é compelida a descer até um ponto privilegiado a cerca de 25 centímetros do solo, afundar as suas mandíbulas numa veia no lado norte de uma planta e esperar pela morte.
O fungo continua a crescer, comendo tudo o que está no interior, até que o inseto finalmente morra – momento em que o fruto do fungo vai explodir da cabeça da formiga, enviando novos esporos para o ar em busca de novas formigas para infetar.
É capaz de infetar humanos?
“Não são conhecidas evidências científicas de o ser humano poder constituir um hospedeiro deste género de fungos”, garante Pedro Bingre do Amaral.
O que o Cordyceps faz com os humanos em The Last of Us é algo que reúne o consenso dos cientistas em como levaria milhões de anos para evoluir, como aconteceu com a relação entre o fungo e os insetos.
“Tudo no corpo humano é tão diferente do dos insetos que esses fungos normalmente infetam, incluindo a nossa fisiologia, o nosso tecido nervoso e a nossa temperatura corporal. Mesmo que os fungos fossem capazes de causar uma pequena infeção, a estrutura necessária para fazer uma manipulação tão precisa, simplesmente não existe. Não vemos os fungos a saltarem de uma espécie de formiga para outra, muito menos de uma espécie de formiga para outra de inseto. Passar de formiga para humano seria um grande salto”, assegurou Charissa de Bekker, micologista e professora da Universidade de Utrecht, à Vox.
“Se o fungo realmente quisesse infetar mamíferos, seriam necessários milhões de anos de mudanças genéticas”, prevê João Araújo, especialista em fungos parasitas do Jardim Botânico de Nova Iorque, à revista National Geographic.
Pode-se comprar Cordyceps?
Existem dois tipos de cogumelos Cordyceps à venda: sinensis e militaris.
Agora apelidada oficialmente como Ophiocordyceps sinensis é a espécie mais conhecida destes cogumelos, capaz de infetar a lagarta da borboleta Hepialus. Esta cresce sobretudo em altitude, como no Tibete, nas províncias chinesas de Sichuan, Yunnan, Qinghai e Gansu, mas também, embora menos abundante, em países como Índia, Nepal e Butão. O Cordyceps sinensis selvagem (incluindo a lagarta) custa mais de 20 mil dólares por quilo (18 mil euros), tornando-o o cogumelo mais caro do mundo e difícil de obter.
O Cordyceps militaris é a espécie que pode ser cultivada em larga escala (visto crescer numa maior variedade de insetos) e para comercializar.
Algumas espécies de Cordyceps estão a ser investigadas pelas suas propriedades medicinais?
“A literatura científica publicada em revistas com revisão por pares inclui mais de quatro mil artigos recentes dedicados a aplicações medicinais do género Cordyceps, com os resultados ainda sujeitos a debate e contraditório”, nota Pedro Bingre do Amaral.
Mas, a verdade é que os cogumelos Cordyceps estão na moda, ao estarem presentes nos suplementos alimentares adaptógenios e de pré-treino – são um dos principais superalimentos.
A possibilidade de poder ter benefícios na saúde humana, desde controlar a diabetes tipo 2, reduzir o stress, atrasar o crescimento de tumores e células cancerígenas, aliviar a inflamação e melhorar o desempenho físico, ainda carece de mais investigação.