Se já deu por si, num encontro de familiares ou amigos, a falar de uma personagem da novela ou da série que acompanha semanalmente como se fosse do seu círculo social, não estranhe. Talvez os seus pais ou avós também o tenham feito relativamente aos protagonistas do espetáculo de variedades que passava no único canal televisivo que havia, ou ao animador das manhãs ou noites da rádio. Falavam deles como sendo mais “um lá de casa”.
Hoje, acompanhamos o dia-a-dia do autor daquele podcast imperdível, estamos atentos a tudo o que faz o jogador do nosso clube, acompanhamos as aventuras do nosso ídolo musical e não perdemos pitada das rotinas que os influenciadores partilham nas redes sociais. Na qualidade de ‘seguidores’ ou ‘amigos’, até respondemos a algumas publicações de quem elegemos para fazer parte da nossa bolha virtual, recebendo, por vezes, um ou mais comentários em troca, que proporciona satisfação e bem-estar.
Contrariamente ao que se pensava, somos agentes ativos no consumo de informação e entretenimento e a forma como interagimos com os media, sejam estrelas do showbizz, figuras públicas ou organizações. Acompanhar os seus passos traz sentimentos de gratificação que podem ser mais ou menos duradouros. Mas atente-se num pormenor: essas interações, que requerem investimento, em tempo e energia emocional, são unilaterais. Quem é fã, seguidor ou faz parte da rede de amigos virtuais é praticamente anónimo para quem está do outro lado, que pouco ou nada sabe da sua vida e, mais importante ainda, da sua intimidade. À semelhança de muitos relacionamentos afetivos que “não são, nem deixam de ser”, estamos perante uma pseudo-relação, ou uma assimetria da atenção dispensada na interação, unidirecional e não recíproca.
Relacionamentos “como se”
O tema começou a despertar a atenção dos investigadores na segunda metade do século XX. Corria o ano de 1956 quando os sociólogos americanos Horton Donald e Richard Wohl analisaram a dinâmica de proximidade intensa que as pessoas criam, de modo não consciente, com figuras mediáticas, e lhe deram o nome de Interações Parassociais. O passo seguinte foi tentar descobrir o que motivava esta perceção ilusória de amizade. Estas interações, apuraram, satisfaziam a necessidade de pertença e funcionavam como um meio de compensar as compensar as insuficiências dos relacionamentos reais.
Na primeira década de 2000, com a emergência da Web 2.0, um estudo publicado na revista científica CyberPsychology & Behavior permitiu identificar quatro razões que levavam as pessoas a aderirem a grupos do Facebook: socialização, diversão ou lazer, estatuto pessoal e procura de informação sobre eventos e produtos. Num outro estudo, envolvendo a plataforma Twitter, descobriu-se que os utilizadores eram motivados pela necessidade de conexão: quanto mais tempo lá estavam, maior era o grau de satisfação que experimentavam.
Necessidades que as interações parassociais satisfazem: pertença, socialização, diversão, estatuto pessoal, conexão e procura de informação (eventos e produtos)
No ano em que o SARS-CoV-2 colocou meio mundo em quarentena e imerso no digital – sem esquecer o tempo dedicado ao streaming e ao universo do gaming – uma investigação publicada no Human Arenas, Interdisciplinary Journal of Psychology, Culture, and Meaning mostrou como se tornaram ténues as fronteiras entre personagens reais e fictícios. Pessoas que conquistaram popularidade e deram o seu ok para serem seguidas podem ver republicadas as suas publicações e, até, responder aos comentários de quem as segue como se realmente as conhecessem.
Tal como sucedia com os fandom (subcultura de fãs que nutrem empatia pelos seus ídolos e partilham interesses comuns com outros membros da comunidade), criam-se condições para alimentar um culto e dar asas à fantasia (de Harry Potter a Twilight, passando pelas 50 Sombras de Gray).
Contudo, se o estilo adotado pelos ídolos passa a ser a bitola para a vida corrente – isto é, se eles parecem bem mais sedutores e interessantes do que a pessoa que se tem ao lado – isso pode comprometer os relacionamentos quotidianos, que se afiguram aquém daquele modelo de conduta. Em síntese, a possibilidade de estimular e satisfazer o ego fica ensombrada quando a pessoa cede à tentação (ou dependência?) de fixar-se na fantasia e de estabelecer comparações, cria expetativas irrealistas e, com elas, surgem as inevitáveis desilusões.
A ilusão da intimidade
O desejo de cruzar-se com alguém por quem se nutre empatia e admiração, que está acessível através do ecrã ou num evento ao vivo, e de agir como se conhecesse esse alguém, de facto, faz parte da condição humana. A identificação com um outro é um sentimento positivo mas enganador, na medida em que esse desejo de sentir-se especial – e a crença errónea de que certa mensagem do apresentador de TV, do político, do ‘youtuber’, do vlogger do influenciador é mesmo dirigida a si – pode ser explorado para fins menos óbvios.
Quem está familiarizado com a exposição mediática sabe que olhar nos olhos do interlocutor – ou da câmara – e dirigir-se ao seu público, no registo “tu cá, tu lá”, mexe com a química cerebral: estes detalhes na comunicação verbal e não verbal (postura corporal, tom de voz, vestuário e acessórios) tendem a ser interpretados pela audiência ou os seguidores como sinais de atenção e familiaridade.
Essa experiência pode parecer recíproca, mas na maioria dos casos não é. Mais: o ganho mútuo pode funcionar enquanto nenhuma das partes ultrapassa a linha indefinida entre a intimidade real e a superficial. Isso acontece se uma das partes começa a “abusar”, agindo como se fizesse mesmo parte do clã na vida real da outra, ou esta se sente desconsiderada, traída ou insultada, ao deixar de ter a atenção a que estava habituada se sente no direito de manter.
Um exemplo disso é o relato da escritora e palestrante Otegha Uwagba, divulgado em fevereiro, no jornal britânico The Guardian, que confessou o transtorno que lhe causou uma fã, que só terminou quando a bloqueou nas redes sociais, embora não se orgulhe disso. “Fui vítima das consequências de uma relação parassocial”, referiu ao jornal. E aqui entramos no cerne da questão: quem é que usa de quem e qual o limite para partilhar aspetos da vida pessoal, que fazem parte do negócio?
Envolver as audiências é uma estratégia que caminha de mãos dadas com as interações parassociais, que acabam por ser premiadas pelos algoritmos. Uma história complexa ou, como se diz na gíria, uma pescadinha de rabo na boca: quanto mais se mostra, mais os outros querem ver e se houver um recuo, ou se estabelecer um limite ou barreira à comunicação, a probabilidade de a “relação” com os seguidores – ou alguns deles, pelo menos – azedar é grande, por ser também assim que as coisas se passam no mundo físico.
Mal-me-quer, bem-me-quer
Dora Santos-Silva é doutorada em Digital Media pela NOVA FCSH, da Universidade de Lisboa, e dedica-se a estudar a cultura de cancelamento de estrelas no contexto mediático digital. Sobre as interações parassociais, a docente nota o facto de muitas celebridades serem jovens e terem as suas próprias redes sociais e experiências de vida, apostando numa relação com os cidadãos que antes não existia: “Jogam com a exposição da sua privacidade, mostram os filhos, o que estão a fazer em casa, que os seus seguidores acompanham.”
No atual cenário, os jornalistas apropriam-se dessa exposição e o direito à privacidade torna-se difícil de delimitar. A dada altura, a probabilidade de surgirem polémicas é grande, basta lembrar o caso de Ana Garcia Martins: “Ao dar visibilidade à sua separação no Instagram e no podcast, criou valor social e económico e potenciou o ‘engagement’, sendo esperado que o público exija que essa relação se mantenha.” O paradoxo surge quando pedem para que não lhes façam perguntas ou decidem resguardar-se e reagem mal com os media, “o público, sobretudo o mais jovem, não percebe que esse envolvimento (“engagement”) é, afinal, uma estratégia de comunicação”.
Os influenciadores e celebridades criam empatia com os seguidores de uma forma que os jornalistas nem sempre conseguem. Porém, nas aulas de jornalismo, ao perguntar aos alunos como fazem a cobertura da atualidade, a docente verificou que muitos recorrem às fontes que seguem habitualmente, sem estarem conscientes da responsabilidade que têm enquanto mediadores da realidade. Um exemplo de como “as relações parassociais têm um impacto grande”.
As consequências manifestam-se nas esferas profissional e social: “Quando vão para o terreno entrevistar pessoas que estão fora da sua bolha falta inteligência emocional; no dia-a-dia, relações que parecem mais próximas no digital não se refletem no presencial”, observa Dora Santos-Silva.
Voltando à pseudo-relação, que traz vantagens, ou ganhos mútuos, a sua natureza é volátil, não tendo garantias de longo prazo, até por a atenção estar fragmentada, ser disputada por vários canais de comunicação e existir alguma fadiga em relação aos conteúdos, informativos e outros, que passam no feed. “Os jovens também se cansam dos influenciadores”, adianta, lembrando que estamos longe do tempo em que se criava um hábito constante relativamente a certos programas. Agora temos o scroll, o multitasking, uma atenção flutuante e um ritmo acelerado. “Hoje, veem o que aparece nas redes sociais, a descoberta é uma atividade de entretenimento.”
No limite, uns e outros podem sentir-se envolventes, envolvidos, alternar entre proximidade e afastamento e, de um dia para o outro – por perda de influência ou devido à aceleração dos dias e do fluxo de estímulos – deslocar o foco para novas interações parassociais (simulacros das outras, mas com efeitos reais).