Desde cedo aprendemos que o amor existe em muitos formatos. Existe o amor da mãe, do pai, o amor que sentimos por amigos e por companheiros, o amor romântico, o amor dos avós e até o amor que sentimos por nós mesmos. É um sentimento que existe sem ser ensinado, calculado ou organizado em cláusulas, é inerente a todos nós e, acima de tudo, é livre, ou, pelo menos deveria ser.
Sofia Silva tem 21 anos e cresceu num mundo que criou regras sobre como e quem amar. Hoje, já não vive dentro dos parâmetros que um dia achou serem os “normais”, porque normal é uma palavra muito subjetiva e às vezes usada como arma contra a diversidade.
Identifica-se como assexual e está ainda a descobrir se poderá “ser ou não arromântica”. É uma viagem de autodescoberta que começou por volta dos seus 15 anos quando “no Tumblr e nas redes sociais” viu, pela primeira vez, esses termos. Na época ainda não conhecia o seu significado e foi com a Internet que descobriu aquela que hoje sabe ser a sua orientação sexual: assexualidade.
A comunidade LGBTQIA+, à qual Sofia agora orgulhosamente pertence, era uma realidade distante, “não conhecia ninguém ´gay´, nenhum queer, não tinha amigos dessas comunidades ainda”. Embora se tenha identificado “um bocadinho” com aquele que era, na época, um termo inteiramente novo, tudo parecia ser ainda “muito teórico”, de modo que guardou essas preocupações e suspeitas “na parte de trás do cérebro” para “pensar mais tarde” e deixou o tempo correr.
Sentia alguma dificuldade em distinguir amizades de interesses românticos. Como se sabe qual é qual? “Eu tinha uma amiga muito próxima e o que eu sentia por ela era fundamentalmente platónico, mas não sabia exatamente como é que isso diferia daquilo que eu tinha sentido até aí por rapazes ou quem fosse”. Chegou a considerar que talvez gostasse tanto de raparigas como de rapazes porque o sentimento parecia semelhante, mas o que acontecia era que “na verdade”, não se “sentia atraída por ninguém”.
Foi ao entrar na faculdade que começou a perceber que, de facto, existia uma “diferença” entre a forma como vivia o amor e a forma como os seus amigos o faziam. “Eles definitivamente sentiam coisas que eu não experienciava”, o que levou Sofia a perceber que “a componente de atração física, sobretudo, não estava lá”.
O primeiro namoro provou ser um “período de descoberta” importante que ajudou Sofia a “perceber limites, aquilo que queria fazer e não queria e de que forma estava confortável a aproximar-me do outro”. Aprendeu muito sobre si mesma e foi nessa época que se sentiu capaz de dizer: “eu sou assexual”.
Mas o que é a assexualidade? Segundo um relatório divulgado em 2019, 76% das pessoas não sabe, embora se estime que cerca de 1% da população mundial seja assexual, indicam vários estudos.
De acordo com a Rede de Educação e Visibilidade Assexual, um indivíduo assexual é aquele que não experiencia atração sexual por outras pessoas independentemente do seu género, mas que pode sentir outros tipos de atração como a romântica ou estética. A esta definição Rita Alcaire, antropóloga, investigadora em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra com foco no estudo do género e sexualidades e autora de “A Revolução Sexual: discutindo direitos humanos pela lente da assexualidade em Portugal”, acrescenta “As identidades e experiências assexuais existem num espetro muito alargado. Há quem não sinta atração sexual ou romântica por outras; há quem sinta atração sexual aquando da formação de um laço forte com outra pessoa; há aquelas que incluem o sexo no seu reportório íntimo, há outras que não; há quem goste e deseje toque; há quem tenha desejos de parentalidade”.
O arromantismo, algo com o qual Sofia ainda está a tentar perceber se se identificará, corresponde, por sua vez, à ausência de “atração romântica por outras pessoas”, explica a investigadora, mas ressalva “isso não significa que não desenvolvam sentimentos. As pessoas arromânticas podem formar laços fortes com outras e têm relacionamentos amorosos que nada têm a ver com romance. Podem ter qualquer orientação sexual.”
As definições existem, mas não são regra. A realidade da comunidade assexual e arromântica é ampla e complexa e cada experiência única e particular. A expressão física de afeto, se existir, deve ser definida dentro dos limites de cada pessoa individualmente e “ser assexual não implica a rejeição do toque”. “Depende sempre daquilo que lhes faz sentido no contexto da(s) pessoa(s) com quem estão e dentro de cada relação”, acrescenta. Sofia não deixa também de reforçar que “a experiência varia de pessoa para pessoa”.
“Ninguém sabe que nós existimos”
O desconhecimento geral do termo “assexual” foi algo que Sofia também experienciou. Ao crescer nem sempre sabia explicar como se sentia, não sabia se as suas dúvidas tinham resposta ou se seria a única a tê-las. A sub-representação destas comunidades em Portugal, “e mesmo universalmente”, é uma das principais razões pelas quais, ainda hoje, a discussão da sexualidade é tida como uma rua de sentido único.
Lembra-se, a sorrir, da primeira vez que viu “uma personagem assexual” e como se sentiu “muito vista”. “Na série Sex Education há um episódio sobre uma menina “ace” (termo popular entre a comunidade assexual)”. Antes de 2020 nunca tinha visto a sua comunidade representada no pequeno ecrã.
Rita Alcaire explica que a representação nos media e outras plataformas é essencial, mas deve ser feita com cuidado, de modo a não contribuir para uma versão estereotipada da comunidade. “A assexualidade surge por vezes associada a figuras muito cerebrais e pouco sociais, ou com um recorte de género que remete para a figura da mulher frígida”.
Segundo a investigadora, “o entendimento sobre a assexualidade tem aumentado nos últimos anos, muito graças ao ativismo assexual e à presença de pessoas assexuais nos media, falando sobre a sua experiência vivida e contribuindo de forma muito construtiva para quebrar mitos”. Ainda assim, e “mesmo com estas mudanças”, acredita que “a ideia que é propagada como sendo a narrativa única e experiência válida – pela escola, pela família e pelos media –, é heteronormativa e isso faz com que seja difícil ‘desatar’ o sexo do romance, obrigatórios nesta equação”.
Numa sociedade que ainda promove muito a ideia do amor ligado ao sexo existe alguma “pressão” para explorar a sexualidade nesses termos, “mesmo que não seja intencional”, explica Sofia. “Isso também é reforçado por séries e filmes, especialmente séries de adolescentes que muito mais agora estão a desenvolver esses aspetos da sexualidade”. O problema pode não ser a abertura em relação à sexualidade, mas a abordagem unidirecional e fechada que é feita da mesma. Há falta de representatividade e de discussão sobre a diversidade sexual.
O próprio conhecimento sobre a assexualidade é na maioria das vezes, e se existir, “muito restrito”, explica Sofia. Normalizar o termo é um passo importante para que a comunidade ganhe visibilidade, mas não suficiente. “Também há a necessidade de incluir informação sobre assexualidade nos currículos de profissionais de saúde, criando um espaço seguro para que as pessoas se sintam à vontade para falar da sua intimidade, sem receio de patologização”, acrescenta Rita Alcaire. A área da saúde deve, inclusive, ser uma aliada no esclarecimento de alguns equívocos sobre a assexualidade, promovendo-a por aquilo que é: uma orientação sexual.
Apesar de tudo, a tendência parece ser a de tentar justificar a assexualidade. Há quem diga que possa “ser uma forma de celibato” ou que está associada “a um distúrbio ou medicação que está a alterar os nossos processos hormonais”, que será uma questão de tempo até “voltarmos a sentir atração”, conta Sofia. Não é o tempo, não é uma escolha, não é uma condição ou a consequência de um fator externo. Como qualquer outra pessoa “não escolhe de quem gosta”, “nós também não escolhemos não gostar, simplesmente não sentimos esse tipo de atração”.
A assexualidade ou o arromantismo são identidades ainda “desvalorizadas” e “encaradas como opções pessoais ou falhas no desenvolvimento. Estes retratos unidimensionais infantilizam, ou pior, desumanizam as pessoas e desconsideram as múltiplas formas de intimidade que existem na comunidade”, explica Rita Alcaire.
Quando explicou ao então namorado aquilo que sentia e como se identificava, Sofia foi recebida de braços e mente abertos. A experiência ajudou-a a perceber que, apesar da resistência em reconhecer a assexualidade enquanto orientação sexual, “há pessoas que aceitam e que estão disponíveis a trabalhar nesses aspetos para que estejamos ambos bem na relação e que a vamos construindo em conjunto”. A relação é construída em função das pessoas e não o contrário.
Sofia sabe hoje que o amor não tem de ser equivalente a “fazer tudo pela outra pessoa ou tudo com ela”, o amor tem muitas vias e caminhos e expressa-se de diferentes formas.
“Romance não tem de estar necessariamente ligado à sexualidade”
Como as pessoas, também o amor é diverso e o sexo, embora possa ser uma expressão de sentimento, “não tem de estar necessariamente ligado ao romance”, tal como o contrário é também verdade. “Certos tipos de toque como abraços ou dar as mãos e até de relação não têm de ser inerentemente românticos ou sexuais”, explica. Com os amigos, Sofia sente-se capaz de “explorar vários tipos de relações sempre com consentimento, com confiança, com este carinho que temos um pelos outros e que não implica necessariamente mais”.
O futuro é ainda um lugar longínquo e Sofia não sabe o que até então mudará, não há “certezas” de nada. Casamento, um companheiro “singular” são hipóteses que não põe de lado, mas sentir-se-ia igualmente feliz “a viver com uma amiga ou um amigo e termos os nossos gatinhos, simplesmente ter alguém para chegar a casa e não estar sozinha ao fim do dia, ter uma companhia”. Uma companhia que não tem de ser romântica, não tem “de implicar necessariamente mais”, não tem de envolver “ter relações com essa pessoa ou achá-la a pessoa mais atraente do mundo”. O amor continuaria a existir, apenas num formato diferente, poderia ser uma amizade ou até um amor romântico que se expresse de outras formas.
Seja qual for o futuro, tenha ou não um companheiro, Sofia reforça que ser solteiro “não quer dizer estar solitário”, um preconceito que às vezes perdura. “Pessoas que estão casadas ou numa relação estável até podem ser mais solitárias que alguém solteiro. Não quer dizer que seja verdade, mas o importante é não tentar equacionar a solidão nesses termos”.
Ainda há uma “grande pressão para encontrar e priorizar romance, casamento e monogamia” explica Rita Alcaire. “A isso chama-se amatonormatividade. Isto cria um estigma social em torno de ser solteira/o e pode até pressionar as pessoas a entrar ou permanecer em relacionamentos não saudáveis”, acrescenta.
“O Dia de São Valentim aborda uma narrativa romântica e experiência única”
O dia de S. Valentim promove o amor, mas será todo o amor? “A ideia estereotipada associada a este dia, e que se transforma na visão coletiva da sociedade sobre o que é o amor romântico, ainda se centra no casal heterossexual em que o amor e o sexo são os aspetos mais promovidos. Nesta equação, a parte masculina deve oferecer flores e chocolate e a feminina apresentar-se de uma forma considerada atraente”.
Não existe uma forma certa de amar mas uma representação unilateral do amor pode criar “pressão para aderir a determinadas normas daquilo que é considerado amor e romance, isso pode inibir a expressão de outras identidades, para além de poder condicionar as pessoas a acharem que se devem ter determinado tipo de relações (em casal e heterossexuais) e comportar-se de uma determinada forma dentro dessas relações”, explica a investigadora.
Ainda assim, acredita que “as ideias em torno do Dia de S. Valentim estão a mudar gradualmente, apesar do pendor comercial que se mantém”, o que não anula o muito trabalho que ainda tem de ser feito no sentido de “incluir maior diversidade de identidades sexuais ou experiências românticas, incluindo o amor por nós mesmas”. Afinal, “há uma quantidade infinita de tipos de experiências, possibilidades de relação e de formas de expressar o amor romântico”.
Apesar da “publicidade direcionada”, o dia de S. Valentim não deixa de ser, para Sofia, o dia do amor, um amor que não tem preconceito e que pode ser celebrado com todos e em todos os seus formatos. “Eu lembro-me que estava na pré-primária e as educadoras estavam a explicar-nos que aquele era o dia dos namorados, mas como nós eramos pequeninos disseram-nos que podíamos celebrar outro tipo de amor e que aquele ia ser o dia da amizade. Eu acho que isso é uma coisa muito bonita de dizer a crianças e que podia ser espalhado pela população geral”.
Atualmente solteira e ainda a questionar se será arromântica, Sofia não quer que essa seja uma razão para deixar de celebrar um dia dedicado ao amor, um sentimento que pode ser sentido de várias formas e por muitas pessoas.
“Não te pressiones a adquirir um rótulo muito rápido”
A viagem de descoberta de Sofia ainda continua e os “não sei” fazem parte da jornada. Embora se assuma como assexual, isso não quer dizer que não continue a questionar certos aspetos da sua vivência do amor. “Será que há alguma diferença entre o que eu experiencio com um amigo muito chegado ou o que eu senti quando namorei? Não tenho a certeza, é uma linha bastante cinzenta”.
As incertezas são “naturais”, garante e é “ok acharmos que somos uma coisa um dia e depois acharmos que afinal não é bem aquilo, que é um tom diferente”. O importante é estarmos “abertos a mudar a perspetiva” e foi dessa forma que Sofia chegou ao ponto em que está agora, “que é: eu sou ace e isso é ok e eu tenho amor de muitas formas mesmo assim”.
Na descoberta de quem somos “não há pressa”. “Não há pressa em acompanhar os colegas, quer estejam a entrar numa fase em que as relações sexuais já são uma coisa que parece importante ou por ser algo muito falado”. Hoje Sofia consegue dizer com convicção que é assexual, mas nem sempre foi assim e isso é “ok”. “Não te pressiones a adquirir o rótulo muito rápido, é natural que vamos mudando”, diz e reforça que, além de ser importante “aceitarmos quem somos”, também é importante “aceitar que podemos ir mudando e descobrindo mais profundamente o que somos e o que sentimos”.