Os ponteiros do relógio rondavam as cinco e meia da madrugada daquele dia 25 de Abril de 1974. A coluna militar comandada pelo capitão Salgueiro Maia estava já a cerca de um quilómetro das portagens à entrada de Lisboa. Tinham passado perto de duas horas desde que os dez blindados, as 12 viaturas de transporte apinhadas de centenas de soldados, as duas ambulâncias e, à frente, o jipe onde Maia seguia haviam saído da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Para assegurar o fator surpresa da missão (ocupação do Terreiro do Paço, fulcral para o êxito do golpe de derrube do regime ditatorial), a coluna tinha percorrido 80 km a uma velocidade média de 60 km/hora. Foi demasiado esforço para uma velha autometralhadora Fox, com currículo de serviço que recuava à Índia Portuguesa, nos anos 1950 – mas que Salgueiro Maia, à última da hora, colocou no dispositivo da ordem de operações que elaborara, porque lhe faltava um blindado.
Ali, a mil metros da entrada em Lisboa, um dos pneus traseiros da Fox, o do lado esquerdo, rebentou, talvez devido a um furo, e ficou esfacelado. A coluna continuou a marcha e nem sequer parou nas portagens: uma das cancelas seria levantada por alguém, abrindo uma via para a célere passagem dos veículos militares. Para trás ficava a autometralhadora, encostada à berma da autoestrada. “Ficámos ali isolados”, recorda Júlio de Matos, à época o furriel miliciano, de 22 anos, que comandava a Fox e que, além dele, tinha como tripulantes o cabo apontador José Pereira e um soldado condutor, cujo nome caiu no esquecimento geral, levado pela voragem dos 47 anos que desde então passaram. “Fui ver se havia na Fox uma chave para mudar o pneu e pôr o sobressalente”, conta Júlio de Matos. “Havia uma, mas era muito pequena – como as porcas da roda estavam calcinadas, não deu”, lembra.
A 1 km das portagens à entrada de Lisboa, um pneu traseiro da Fox rebentou. Sem ferramentas nem comunicações, a tripulação fechou-se no blindado, ignorando que sorte a esperava
Sem rádio para comunicar a sua situação, a tripulação fechou-se dentro da Fox, ignorando que sorte a esperava. Quando raiou o dia, porém, Júlio de Matos teve de sair da autometralhadora. O tráfego aumentava e os automobilistas entravam em marcha lenta, a escrutinar aquela estranha cena de um blindado parado na berma da autoestrada. Ainda estava bem fresca na memória coletiva uma tentativa de golpe contra o regime ditatorial, poucas semanas antes, a 16 de março, arriscada e falhada pelo Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha. “Tive de saltar fora e começar a dispersar aquela malta, dizendo o menos possível, porque naquela altura ainda não sabíamos como estava a situação das nossas forças”, relata o então furriel. Mas Júlio de Matos seria surpreendido por um carro de reportagem do vespertino Diário Popular, e apercebeu-se de que alguém o fotografava. “Pus-me de costas para esse indivíduo, de braços abertos, a querer tapar a nossa viatura”, diz sobre a reação instintiva que teve.
Conversa manhosa
A abrir caminho à coluna de Salgueiro Maia seguiram, num Ford Escort branco, emprestado por um capitão miliciano, os aspirantes Calado de Oliveira e Mota de Oliveira e o alferes Laranjeira. À civil, mas com a bagageira do automóvel bem recheada de armamento (três G3 e outras tantas pistolas), aquele trio de batedores ia comunicando a Maia que o “terreno” estava “livre”, através de um velho e roufenho rádio Racal. Seriam aqueles sapadores, logo após a chegada da coluna militar ao Terreiro do Paço, pelas seis e meia da manhã, a receber de Salgueiro Maia a ordem de irem ao encontro da Fox, para saber em que circunstâncias a autometralhadora estava. “Estou enrascado, não consigo mudar o pneu com a chave que está aqui”, explicou Júlio de Matos, quando o trio do Ford Escort finalmente apareceu.
Pôs-se então o problema sobre qual a unidade militar a que iriam recorrer para pedir a ferramenta. Além do mais, as porcas calcinadas e o tamanho do pneu, quase da altura do blindado, exigiam uma chave de grande porte.
Enquanto os três tripulantes da Fox se voltavam a fechar dentro da autometralhadora, os três batedores à civil do Ford Escort ponderavam hipóteses. “Nas proximidades, apenas havia o Aeroporto Militar de Figo Maduro e o Regimento de Artilharia 1, e desconhecíamos da sua adesão, ou não, ao movimento”, conta agora um daqueles sapadores, Calado de Oliveira. Seria Mota de Oliveira a colocar a melhor possibilidade: antes de ir para a tropa, tinha trabalhado na Junta de Energia Nuclear, perto das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), em Alverca. “Talvez fosse mais fácil conseguirmos apoio nas OGMA”, lembra-se Calado de Oliveira de terem os três pensado e decidido.
No Largo do Carmo, Salgueiro Maia deu ordem de fogo sobre o quartel-general da GNR. “Premimos o gatilho da metralhadora, mas só ouvimos um ‘trec’”, recorda Júlio de Matos, o furriel que comandava a Fox
Foi tudo menos fácil, como era expectável. “Fomos recebidos ao portão pelo sargento da guarda, que não se mostrou muito disponível para chamar o oficial de dia”, recorda Calado de Oliveira. “Também não lhe avançámos muitos pormenores, pois não sabíamos se estávamos num ambiente hostil”, acrescenta. Mas, perante a insistência, o sargento lá chamou o oficial de serviço, um tenente.
Iniciou-se então, no portão gradeado das OGMA, um estranho diálogo, digamos assim. “Do nosso lado, apenas nos identificámos como militares da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, dissemos que íamos a caminho de Lisboa para gozar um dia de licença e que encontrámos, na autoestrada, uma viatura da nossa unidade avariada, sem ferramentas para proceder à reparação, e que nos tínhamos disponibilizado para ir àquelas oficinas pedir ajuda”, lembra Calado de Oliveira. O tenente, esse, “argumentava que tudo aquilo lhe parecia muito estranho, uma vez que nos apresentávamos à civil, numa viatura sem características militares, e que seria mais lógico termos recorrido a uma das unidades de cavalaria de Lisboa”.
Como o impasse parecia não ter saída, “arriscámos avançar com a senha do movimento e, nessa altura, tudo mudou: o tenente percebeu a razão da nossa presença e disponibilizou, de imediato, o material de que precisávamos”, diz Calado de Oliveira. Seria entregue ao trio de batedores uma enorme chave de cruzeta, usada na mudança de rodas de aviões. No Ford Escort, onde a ferramenta mal cabia, arrancaram outra vez ao encontro da Fox. Já não viram Júlio de Matos e os dois companheiros de tripulação a suarem na mudança do pneu rebentado e “ressequido”, utilizando aquela bisarma de chave. No Terreiro do Paço, Salgueiro Maia precisava dos três sapadores para cumprirem mais “ordens de missão”.
Nesga de sorte
Com a Fox, por fim, pronta a andar, pôs-se outro problema ao furriel Júlio de Matos, que vivia desde pequeno em Coimbra (tem hoje 69 anos e reformou-se como vendedor). “Só tinha ido a Lisboa uma ou duas vezes na minha vida, e nem sequer era eu quem conduzia o carro em que fui”, recorda. Ou seja, não sabia como chegar ao Terreiro do Paço. Mas o aqui anónimo soldado condutor resolveu-lhe a questão. “Perguntei-lhe se conhecia o caminho. E ele respondeu-me que sim: apanhávamos a Marginal e daí seguíamos diretos para o Terreiro do Paço.” O furriel ordenou-lhe: “Toma o caminho e se algum gajo te mandar parar não páras. A gente só pára quando chegarmos à beira dos nossos.”
De escotilha fechada, a Fox arrancou e, como tinha acontecido horas antes com a coluna de que se perdeu com o rebentamento da roda, uma cancela foi levantada para deixar passar a autometralhadora. Já muito perto do Terreiro do Paço, aconteceu-lhes outro percalço. Um pelotão de Cavalaria 7, unidade que o Governo de Marcelo Caetano chamara para defender a cidade e o poder, acabava também de chegar e atravessou-se-lhes no caminho.
Júlio de Matos vislumbrou naquele pelotão o tenente Cadete e outros militares com quem tinha estado na escola prática de Santarém. Dirigiu-se-lhes e o tenente saudou-o, efusivo: “Eh, pá! Ainda bem que chegaram. Vêm aí uns gajos para ocupar Lisboa!” E Júlio: “Ó pá, somos a gente. Viemos acabar com a guerra colonial.” Mais dois dedos de conversa e, atrás da Fox, igualmente entraram no Terreiro do Paço aqueles militares de Cavalaria 7, para engrossar a coluna de Santarém, pelas nove horas da manhã.
À noite, quando abordava uma curva, em Benfica, o blindado ficou sem travões e foi contra um muro. E ali seria deixado
Com um justificadíssimo atraso de duas horas e meia na chegada ao teatro de operações, Júlio de Matos recebeu de Salgueiro Maia uma ordem para posicionar a Fox apontada à fragata Gago Coutinho, que ameaçadoramente fundeara no Tejo, frente às forças que tinham vindo de Santarém e ocupavam o Terreiro do Paço. “Às tantas, na fragata, levantaram as peças de artilharia, e ficámos aliviados”, recorda o então furriel. “Ou estão por nós ou pelo menos não estão contra nós, neste momento”, lembra-se de ter dito à sua tripulação.
Pelas 10 e 45 da manhã, a Cavalaria 7, que tinha aparecido com blindados M47, donos de um poder de fogo demolidor, rendeu-se a Salgueiro Maia. Seguiu-se o cerco ao Comando-Geral da GNR, no Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano se refugiara. Para pressionar a rendição do chefe do regime ditatorial, Salgueiro Maia ordenaria o disparo de rajadas sobre as janelas mais altas do quartel e a frontaria. Aquela ordem de fazer fogo também chegou à Fox. “Premimos o gatilho da metralhadora, mas só ouvimos um ‘trec’. Encravou. Não disparou”, diz Júlio de Matos.
A velha autometralhadora, porém, serviria de excelente ponto de observação do episódio mais simbólico da queda do regime: a saída do quartel do Carmo, sob detenção, pelas 18 horas, de Marcelo Caetano, na chaimite “Bula”. Uma imagem mostra a tripulação da Fox de pé no alto da autometralhadora, e o blindado completamente tapado por populares que subiram para cima da viatura.
Mas ainda faltava um último azar à tripulação da Fox. À noite, quando se dirigiam para os Pupilos do Exército, em Benfica, a fim de ali jantarem, o blindado, no momento em que abordava uma curva, ficou sem travões e foi contra um muro. E ali a Fox seria deixada. Valeu ao furriel Júlio de Matos, ao cabo atirador José Pereira e ao anónimo soldado condutor a proximidade em que estavam dos Pupilos. Ao menos isso – o caminho a pé foi curto.
Depois de tantos azares, teriam a sorte de apanhar uma boleia de um Unimog, da logística da coluna, que já na madrugada de 26 de abril regressou a Santarém. Viajaram na parte de trás do camião, a céu aberto, e finalmente puderam dormitar. E não se diga, porque seria uma injustiça, que a aventura da tripulação da Fox é apenas uma nota de rodapé na história do “Dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”, como descreve o poema de Sophia de Mello Breyner.