Há menos de um ano, o meu Pai foi chamado à escola. A minha professora recomendou que tivesse “cuidado com as conversas lá em casa”. Do programa curricular da 4.ª classe, constava que o senhor Presidente da República, Américo de Deus Rodrigues Thomaz, era “o Pai da Nação”. E eu fui com postas de pescada, para as aulas: “O meu Pai diz que eu só tenho um pai e que é ele!”.
Mas, agora, já sou um homem. Fui para o ciclo preparatório ainda com dez anos e já tenho onze. Há raparigas nas aulas da Escola Preparatória D. Carlos I, no Lourel (Sintra). Uma novidade. Na primária só havia turmas de rapazes e turmas de raparigas, separados. Turmas, não: “classes”, como se dizia. Turmas é no “liceu”.
Na 3.ª e na 4.ª classe, a D. Odete dividia-nos por três alas. Do ponto de vista dela, do estrado, a ala da esquerda era a dos “maus”. A do meio era a dos “suficientes”. E a da direita era a dos “bons”. Quando fazíamos os testes (ou antes, as “provas”, como então se chamavam), em folhas brancas de 35 linhas, podia haver mudanças. Uma classificação de “medíocre” podia mandar um dos alunos da fila dos “bons” para a dos “suficientes”. E um “muito bom” alcandorava um aluno da fila dos “maus” também para a dos “suficientes”. Foi o que acontecera, naquele ano, ao burro do David, o gordo da classe. Teve um “Bom” e passou da primeira carteira da fila da esquerda para a última do meio. Uma promoção. Fez uma festa, até chorou de alegria. E eu, que estava na primeira carteira da fila dos “bons”, muito bem colocado, portanto, pensei para comigo: “Desgraçado… se eu fosse para aquela fila, chorava, mas era de desgosto…”. Foi ali que percebi como a vida é relativa. Mas apanhei um susto, quase no fim do ano: um “mau” numa prova atirou-me para a última carteira da fila boa. Foi por um triz. Mas há males que vêm por bem. Antes, tinha por companheiro de carteira o José Alexandre, filho da professora das raparigas, que era um chato. E agora calhava-me o Fernando, filho do senhor do talho, que era um compincha.
A professora deu-nos, injustamente, seis reguadas a cada um. Depois, caiu em si e pediu desculpa. Ficávamos em crédito, para a próxima…
Uma vez, o Capote (Paulo, se leres isto, comunica!), que era da fila dos bons, chamado ao quadro, respondeu que, nos anos bissextos, o fevereiro tinha 29 dias. Tinha razão, claro, mas a professora teve uma branca e confundiu com os anos comuns. E corrigiu-o. E ele teimou. Ela passou-se. E ele levou três reguadas em cada mão. E eu, sem me conter, gritei: “Mas tem mesmo 29 dias!” E também levei três palmatoadas em cada mão. E só depois a D. Odete caiu em si. E quase chorou a pedir desculpa. Mas, cheia de presença de espírito, acrescentou que ficávamos em crédito. O que não nos servia de nada, porque ela nunca nos batia.
Isso, agora, estava longe. No ciclo, as provas já não se chamavam assim: agora, eram os “pontos”. (Esta coisa dos “testes” é recentíssima). E já não havia reguadas. Nem as pancadas da cana da Índia no toutiço. Naquela quinta-feira, 25 de Abril de 1974, na nossa casa do Algueirão, o telefone tocou às 7h da manhã. Eu até pensei que era o despertador, um novíssimo aparelho da marca Reguladora que o meu pai tinha comprado e que deixava à porta do quarto, para que o histérico DRIIIIIIING ficasse um bocadinho mais longe do ouvido – e também para ser obrigado a levantar-se para o desligar e não adormecer outra vez. Mas era o telefone. Era o sr. Santana, chefe e amigo do meu Pai: “Ó Delgado Luís, ligue a telefonia, que há uma revolução na rua. Hoje não se trabalha!” Se não se trabalhava, também não havia aulas. Bingo! (Bingo? Também não havia o bingo. Nem a Coca-Cola).
A emoção foi grande. Os sentimentos divididos também. O meu Pai sempre foi o “rebelde” da sua conservadora família. Pelos padrões familiares, a “ovelha ronhosa” esquerdista, irreverente, embora, na realidade, sempre moderado. Naquela época, um tipo sixty (ma non troppo). E o meu Tio, seu irmão mais velho, que eu adorava, que o meu Pai também adorava, mas com quem mantivera algumas discussões políticas “quentinhas” (embora preferissem falar de outras coisas…), iria ser preso pelos revolucionários. No meio da feliz excitação, adivinhava-se o drama, uma nuvem perturbadora no nosso círculo íntimo.
Estivemos colados à rádio, a ouvir os comunicados do Movimento das Forças Armadas, lidos pela voz quente do Luís Filipe Costa, no Rádio Clube Português. Às tantas, lembro-me como se fosse hoje, a emissão passou uma conversa telefónica, entre dois ministros do Marcello Caetano, intercetada pelo MFA, em que eles discutiam como seria possível resistir, mas onde metiam os pés pelas mãos, em pânico. E foi aí que o meu Pai disse: “Estes filhos da mãe estão perdidos! Acabou!”
À tarde, o tempo chuvoso melhorou um bocadinho. Eu e o meu Pai fomos para casa do sr. Santana, para acompanhar, entre amigos, a emissão da RTP. Como se fosse o Benfica a jogar. O Fialho Gouveia apareceu no écrã, com um ar resplandecente de felicidade. Lembro-me da covinha no queixo, ainda mais cavada, e da gravata escura. Quem sabe se era encarnada… a TV era a preto e branco. Talvez estivesse a fumar. Fumava-se em estúdio.
Entre o grupo de amigos dos adultos, ali reunidos, um homónimo do locutor (o sr. Fialho) preocupava-se: era investidor da Bolsa e temia perder tudo. Mas alguém comentou, o meu Pai ou o sr. Santana: “Ó Fialho, deixe lá isso, homem! Piorar é que isto não pode!”
O meu Pai já me tinha dito que eu não iria parar à Guiné. Quando chegasse à idade da tropa, ele punha-me em França
O meu Pai olhava para mim. Nos últimos meses, ele tinha-me dito que eu nunca iria bater com os costados em África. “Quando chegares à idade da tropa, meto-te em França”, dizia. Pouco tempo antes, a 16 de março, eu e a minha mãe fomos despedir-nos dele, ao aeroporto de Lisboa. Embarcava para Londres, numa missão comercial. Lembro-me que me trouxe, de presente, o meu primeiro LP, um “Top of the Pops” de 1972. Uma coletânea, como se diria hoje. Um ano antes, o nosso já conhecido sr. Santana trouxera-lhe a ele, de Paris, o álbum “Cantigas do Maio”, do José Afonso. E que estava sempre a girar no gira-discos que viera no pacote de um curso de Francês à distância, em gravações vinil, do Reader’s Digest. Portanto, eu já trauteava o “Grândola Vila Morena” muito antes dos “revolucionários do 26 de abril”. Ambos os discos estão em excelentes condições, devo dizer que ainda esta semana verifiquei isso.
Mas voltemos ao 16 de março. De Londres, o meu Pai telefonou à minha Mãe, para lhe contar todos os pormenores, ouvidos nas rádios inglesas, sobre o “levantamento das Caldas”. Graças à censura, nós, cá, não sabíamos nada. Ligámos a televisão, à hora da abertura da emissão, tipo 18h30 ou 19h30, e nada. Finalmente, um comunicado dizia que “reina a calma em todo o País”. E eu, que já era muito politizado, deixei cair um palavrão. O Thomaz continuava a ser o “Pai da Nação”.
E o Marcello Caetano, que eu via na televisão, nas suas Conversas em Família (eu seguia tudo muito atento, pobre criança, mas gostava de ver aquilo, o que é que se há de fazer…) aparecera, em cartazes, numa campanha eleitoral de 1973, com um “sorriso Pepsodent”, como nós dizíamos. Foi uma novidade de marketing e modernidade, pelo menos. Nessa altura, lá em casa, havia uns folhetos e um caderninho com o programa da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), propaganda que eu sabia que era do “contra”. Depois do 25 de Abril, quando aquilo se transformou no MDP/CDE, o meu Pai comentou: “Porra, não me lixem! Se eu quisesse ser comunista, ia para o PCP!”
É claro que o sr. Fialho perdeu tudo o que jogara na Bolsa. No dia 27 de abril, um sábado, fomos a Lisboa, de carro. Não íamos festejar: íamos visitar a minha Tia e a minha Prima e tentar saber o que acontecera ao Tio. E colocar-nos à disposição para tudo o que fosse preciso. No caminho, a descer a Av. Fontes Pereira de Melo, mesmo a chegar ao Marquês de Pombal, ainda havia patrulhas de soldados. No último semáforo – já havia semáforos… – um deles ofereceu-me, pela janela do NSU, um cravo vermelho, que tirou da espingarda. Tenho-o, até hoje, as pétalas secas, guardadas numa caixinha de alfinete de gravata.
Na escola do Lourel, o temido chefe dos contínuos, o Rocha, desapareceu. Diziam que fora preso, por, alegadamente, ser informador da PIDE. Sei lá se era verdade. Nós queríamos que fosse, porque ninguém gostava dele. Se calhar, só cumpria o seu dever, a disciplinar aqueles pequenos corrécios suburbanos. Dois meses depois, os alunos do 2.º ano desfilavam, a manifestar-se, com cartazes de cartão, espetados em paus, onde escreveram: “Não queremos ezames!” Assim mesmo: com z. Era óbvio que o PREC tinha começado.