Estamos na zona oeste, a meia hora de Lisboa, mas parece que fizemos uma viagem de centenas de quilómetros. Para trás ficou a cidade confinada, as máscaras, o distanciamento. Está frio e vento, e até caem uns pingos de chuva, mas nesta quinta onde encontramos quase cem animais, o coração põe-se à frente de qualquer contrariedade. E isso faz com que nos esqueçamos do resto, até da água que molha o bloco de notas.
Ricardo Oliveira, 33 anos, o mentor da associação AmorEmpatia, nascida no papel em 2018, nem precisa de verbalizar que houve um momento na sua vida, muito antes dessa data oficial, em que decidiu dedicar-se quase em exclusivo aos animais – com apenas o ordenado que tinha no bolso. Se eles falassem, seriam os primeiros a agradecer-lhe a paixão com que os trata e que o obriga a abdicar dos dias de férias que a maioria dos mortais gosta de ter.
Assim que Ricardo entra na quinta, com um carrinho de mão cheio de cenouras que arranja no MARL a baixo custo, os animais sentem-no e aproximam-se, tranquilos, para comer. A conversa há de continuar com eles sempre por perto, porcos, ovelhas, cabras, burros, vacas, lamas, cavalos, sem que isso se transforme num problema. “Quis repor alguma natureza a estas espécies para que elas se comportem como é suposto”, explica, resumindo, muito resumidinho, porque chama a este espaço de santuário. As portas da quinta não se abrem ao público, porque não se trata de uma exposição nem de um centro de adoção. Poucos sabem a morada desta associação, para que não haja fila à porta para deixar bichos que já não se querem em casa.
Isso não quer dizer que faltem planos para receber crianças, para lhes dar a experiência de abraçarem uma vaca, por exemplo, ou porem um porco literalmente derretido com umas festinhas na barriga. “Trata-se de um processo empático, capaz de torná-las sensíveis”, explica. Aqui também se ajudam famílias que tenham problemas com animais domésticos (como o caso de uma senhora que herdou a cadela do filho que morreu) e faz-se consultoria de bem-estar direcionada essencialmente para cães. O processo de sensibilização de meninos pouco habituados aos animais, enquanto houver pandemia, decorre nas redes sociais, como o Facebook ou Instagram, com milhares de seguidores, através de vídeos, fotos e textos inspiradores.
Se as crianças pudessem ter entrado connosco hoje, teriam visto como Ricardo recorre à condescendência enquanto uma vaca foge do spray de antibiótico que carrega na mão, para sarar uma ferida na pata. Sabe que o tratamento vai causar-lhe ardor e, além disso, conhece-lhe bem as manhas: “É arisca, porque nasceu de um touro bravo.”
Não é de espantar que todos – 50 animais de quinta, 35 cães e quatro gatos – tenham nome próprio, uma história triste e até rocambolesca na sua biografia. Caso contrário, não estariam aqui. A AmorEmpatia resgata-os da rua, de associações, de quintas, de explorações agrícolas, no fundo em qualquer lugar em que haja uma espécie em perigo real.
Foi o caso de Bruninho, o burro que o apresentador João Manzarra acabou por levar para a sua casa e depois apresentar num dos diretos do Bruno Nogueira, no Instagram, Como é que o Bicho Mexe?. O animal, encontrado amarrado a um poste e em muito mau estado, tal como a sua mãe, passou a ser famoso entre os cerca de 70 mil fiéis seguidores desse programa nascido no primeiro confinamento para alegrar as noites de quem não podia sair de casa. A associação também beneficiou dessa divulgação, claro, e viu o número de voluntários e amigos virtuais aumentar exponencialmente.
Ainda bem, pois tratando-se de uma ONG sem fins lucrativos, sofre dos mesmos males de qualquer associação – falta de meios. Para poder alimentar e bem tratar tantos animais, há que recorrer a uma rede de padrinhos (a partir de 30 euros por mês), a ajudas de veterinários, a doações mensais que podem ser apenas de um euro, a reabilitações solidárias ou angariação de fundos, como a que estão agora a fazer para a mudança de instalações.
Serena, a bezerra de quatro meses que só havemos de conhecer mais tarde por estar resguardada num moinho, por causa de uma pneumonia, nem sabe a sorte que tem. Só ainda está viva porque Ricardo ligou várias vezes para o dono da exploração agrícola aonde ela estava para servir a indústria alimentar e convenceu-o a doar um animal para ser embaixador da sua espécie neste santuário. “Tenho percebido que as pessoas não são más, aprenderam uma profissão, como o meu avô, e gostam muito dos animais que exploram. Até lhes custa o dia do abate, embora o tenham normalizado.” Serena ainda terá de crescer quase o dobro para se poder juntar aos outros numa vida à solta. Como foi tirada à mãe mal nasceu, nem ao colostro teve direito e por isso precisa de melhorar o seu sistema imunitário, antes de gozar de plena liberdade até morrer de causas naturais.
Ricardo reconhece que sem diálogo não se consegue nada, muito menos sensibilizar. “Não queremos apenas salvar um animal, desejamos o não perpetuar da situação. Preferimos ter menos sucesso nos resgates, mas ser mais consequentes.” É por isso que se mostra muito crítico de outras associações com nome firmado na praça e que, em sua opinião, são geridas como empresas.
Neste centro promete-se que os animais com dificuldades físicas, emocionais e psicológicas são reabilitados, com o objetivo de serem adotados e integrados em novas casas. Podíamos estar céticos em relação a este serviço, mas quando Ricardo solta 12 cães (que também estão no moinho) e nos conta que todos eles vieram com cadastro por terem agredido pessoas ou animais, ficamos absolutamente crentes de que este especialista em comportamento animal sabe do que fala. Todos correm, aproveitando o momento ao ar livre de forma sossegada, por entre festinhas e palavras carinhosas, e nem sequer ladram.
“O Max é o culpado por eu estar aqui hoje”, conta Ricardo, apontando para um bem nutrido cão de pelo preto. “Há 9 anos soube que ele tinha mordido uma pessoa e que iam dá-lo para adoção. Fui buscá-lo para minha casa e ele atacou-me logo a seguir. A partir daí, comecei a querer saber mais sobre comportamento. Reabilitei-o e quis fazer o mesmo a outros.”
“Todos os animais agridem por medo”, assegura. “Se identificarmos a fonte desse medo, resolvemos o problema. Em 75% dos casos, ele deriva de um mau estar físico, como uma otite, hérnia ou gastrite. Nos restantes 25% devemos tratá-los como se houvesse uma dor real, pois pode ainda existir a memória desse sofrimento.”
Nem mesmo Zé Piqueno, um cabritinho de 13 dias, que mal sabe andar, e que está apenas de visita, tem receio da invasão canina. É constantemente apaparicado pelos funcionários que o rodeiam e pegam ao colo sempre que o adivinham na iminência de engolir ervas ou pedras. O recém-nascido ainda está a viver em casa de uma voluntária, que lhe arranjou um casaquinho por causa do frio, como se tratasse de um animal de companhia.
A história da chegada de Zé Piqueno à AmorEmpatia é um bom exemplo do que pode acontecer por aqui, por culpa de uma filosofia de ação assente na sensibilização: “Ele pertencia a uma exploração de cabras de leite e foi-nos trazido, em segredo, pela neta dos donos, que o guardavam para a Páscoa”. Depois do resgate, Ricardo Oliveira convenceu a rapariga a confessar aos avós o que tinha feito e qual a razão que a levara a agir de tal forma. Resultado? Pela primeira vez, na mesa da celebração pascal daquela família haverá apenas peixe.
Depois de tomarmos nota de outros tantos episódios como este, torna-se impossível não regressarmos a casa com o coração mais aconchegado. Mesmo que até tenhamos as mãos enregeladas de uma manhã de reportagem ao ar livre, numa zona bastante ventosa.