Uma procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa usou um processo por violação do segredo de Justiça para vigiar os passos, as contas bancárias ou o histórico de mensagens telefónicas de quatro jornalistas, entre eles Sílvia Caneco, jornalista da VISÃO.
Sem qualquer autorização prévia de um juiz de instrução, a procuradora Andrea Marques, que tutela uma investigação por alegada violação do segredo de Justiça no caso e-Toupeira, decidiu extrair o histórico de mensagens telefónicas trocadas entre um coordenador de investigação criminal da Polícia Judiciária e a jornalista da VISÃO. O mesmo aconteceu com um histórico de SMS de Isabel Horta, ex-jornalista da SIC. A par disso, a procuradora do DIAP de Lisboa mandou a PSP vigiar outros dois jornalistas: Carlos Rodrigues Lima, da Sábado, e Henrique Machado, hoje jornalista da TVI e à data jornalista do Correio da Manhã, que já foram constituídos arguidos no processo. O primeiro viu ainda ser-lhe imposta a quebra do sigilo bancário.
Apesar de a investigação já decorrer há quase três anos, a jornalista da VISÃO nunca foi chamada ao processo na qualidade de testemunha ou de arguida, desconhecendo o teor dos sms recolhidos ou, sequer, se se enquadravam no âmbito do objeto do processo – que tinha como objetivo apurar alegadas fugas de informação espeficamente no caso e-toupeira.
Os atos do Ministério Público põem em causa uma relação entre jornalista e fonte que é protegida pelo Código Deontológico dos Jornalistas e pelo Estatuto do Jornalista, e vista como quase sagrada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem concluído que só podem existir restrições à liberdade de informação quando se está perante “necessidades sociais imperiosas” e que a liberdade de imprensa se sobrepõe à violação do segredo de justiça. As diligências do Ministério Público aqui em causa poderão ainda configurar um crime de violação de correspondência e configuram uma violação do sigilo profissional do jornalista (segredo que só pode ser “desmantelado” pelos tribunais superiores).
Todas estas operações foram deliberadas pela procuradora Andrea Marques sem autorização prévia de um juiz de instrução. E essa nem será a única ilegalidade. É que o inquérito, que teve início a 9 de março de 2018, visa investigar suspeitas de violação do segredo de justiça, violação de segredo por funcionário e falsidade de testemunho, crimes que não permitem diligências tão invasivas da privacidade como as que foram feitas neste caso, precisamente por terem molduras penais reduzidas. Com a agravante de estarem entre os alvos jornalistas, devidamente protegidos pela lei.
Tentando antecipar a publicação das notícias a respeito do processo, o DIAP de Lisboa, dirigido pela procuradora Fernanda Pêgo desde outubro de 2017, emitiu na noite passada um longo comunicado, no qual tenta justificar as suas ações. Nunca falando na recolha dos sms, o esclarecimento centra-se nas vigilâncias para alegar que foram ordenadas “por se suspeitar que os jornalistas em causa mantinham um contacto próximo e regular com agentes policiais ou do universo dos tribunais”. Ou seja, o próprio comunicado assume que o objetivo era descobrir quem eram as suas fontes. “Entendeu-se ser de extrema relevância probatória compreender com quem se relacionavam e que tipo de contactos estabeleciam com ‘fontes do processo’, de modo a procurar identificar os autores das fugas de informação, também eles agentes da prática de crimes.”
O comunicado remete para uma intrincada junção de artigos de vários Códigos – Civil, Penal, e Processo Penal – na tentativa de justificar porque as manobras de investigação foram feitas sem validação de um juiz de instrução. E ainda diz que quando estas diligências “suscitaram maior melindre”, foram “previamente comunicadas e, inclusivamente, acompanhadas pela hierarquia”. Ficam por esclarecer quais eram, para o Ministério Público, as diligências melindrosas e quem era a hierarquia que teve conhecimento e as consentiu: se Fernanda Pêgo, diretora do DIAP de Lisboa e imediata superior hierárquica da procuradora Andrea Marques; se Joana Marques Vidal, que à data das operações de vigilância a jornalistas ainda era Procuradora-Geral da República; se a atual PGR, Lucília Gago.
Contactada pela VISÃO, Joana Marques Vidal respondeu: “Como magistrada estou sujeita ao dever de reserva e não me posso pronunciar sobre casos concretos. Todas as informações devem ser solicitadas aos órgãos próprios através do gabinete de imprensa.” A VISÃO perguntou à PGR se Joana Marques Vidal ou Lucília Gago foram informadas ou consentiram as diligências do processo que visaram jornalistas, ou se tudo foi preparado entre a procuradora Andre Marques e a sua superior Fernanda Pêgo, mas ainda não obteve respostas.
A origem do processo
Este processo por violação do segredo de justiça começou a 9 de março de 2018, na sequência de fugas de informação para alguns jornalistas relacionadas com uma operação de buscas do caso e-toupeira, levada a cabo três dias antes (operação em que foi detido o então assessor jurídico do Benfica, Paulo Gonçalves). E acabaram por ser precisamente os jornalistas os primeiros visados na investigação, quando a 3 de abril desse ano a procuradora do DIAP de Lisboa deu instruções à PSP para que dois jornalistas fossem seguidos e vigiados pela PSP. O relatório final dessa operação foi entregue por aquela polícia em outubro.
Já em 2019, no dia 12 de junho, a procuradora Andrea Marques decidiu partir para outra rara operação e fez buscas nas instalações da PJ, pedindo o acesso ao correio eletrónico de alguns coordenadores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção e inclusivamente do ex-diretor da PJ, Almeida Rodrigues. Pediu ainda o acesso à respetiva facturação detalhada dos seus telemóveis e que os emails apagados fossem recuperados. Em setembro de 2019, voltou ao mesmo local, para diligências adicionais. E, a 5 de dezembro desse ano, numa nova ida à PJ, um coordenador de investigação criminal daquela polícia foi interrogado, constituído arguido e viu o seu telemóvel imediatamente apreendido. Foi a partir daí que a procuradora do DIAP de Lisboa decidiu extrair o histórico de mensagens trocadas entre este e outras três pessoas, duas delas jornalistas, nunca acautelando o direito à proteção da confidencialidade das fontes de informação. Mais tarde, já em setembro de 2020, decidiu quebrar o sigilo bancário de um dos jornalistas.
O que diz a lei
O artigo 38º da Constituição Portuguesa define a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação social. A liberdade de imprensa implica o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à proteção da independência e do sigilo profissionais.
Crimes como a violação do segredo de Justiça não se enquadram no catálogo de crimes que permitem ações de vigilância. A lei nº 5/2002, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, admite esse tipo invasivo de recolha de prova apenas em crimes como o terrorismo, a corrupção, o branqueamento de capitais, a participação económica em negócio, os diversos tipos de tráfico, a pornografia infantil, o lenocínio ou o contrabando. O artigo 6º da mesma lei reforça ainda que a recolha de som e prova, sem consentimento do visado, depende de uma prévia autorização de um juiz.
O Estatuto do Jornalista (Lei nº1/99) regula o interesse dos jornalistas no acesso às fontes de informação e enquadra legalmente o sigilo profissional, estabelecendo que “os jornalistas não são obrigados a revelar as suas fontes de informação, não sendo o seu silêncio passível de qualquer sanção, direta ou indireta”.
O artigo 192º do Código Penal dita que comete um crime de devassa da vida privada quem, sem consentimento, “captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos”.
O artigo 194º do Código Penal determina que comete um crime de violação de correspondência quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicações ou divulgar o mesmo.
Também o Código Deontológico do Jornalista reforça ainda que “o jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos”.