As semelhanças impressionam: registada a primeira infeção, a doença espalhou-se pelo mundo com a ajuda dos viajantes. No caso, das tropas em combate na Primeira Guerra, depois de um cozinheiro americano ao serviço do exército ter sido internado na enfermaria da base de Fort Riley, no Kansas, com sintomas de gripe, a 11 de março de 1918. O resto do seu percurso pelo mundo fez-se entre fábricas de munições e movimentações de soldados em comboios e autocarros, mas a notícia foi censurada até aparecerem os primeiros contágios em Espanha.
Aqui ao lado, a cobertura livre dos casos deu-lhe o nome por que a conhecemos: gripe espanhola. Sem tratamentos específicos, os hospitais ficaram rapidamente sobrecarregados. Teatros, cinemas e igrejas foram fechados, em alguns casos durante meses. Houve competições desportivas adiadas, mas nem todas – e muitas atraíram grandes multidões. Várias ruas em vilas e cidades foram borrifadas com desinfetante e algumas pessoas passaram a usar máscaras, enquanto seguiam as suas rotinas diárias. As mensagens de saúde pública eram confusas – e, como agora, as notícias falsas e as teorias da conspiração eram abundantes.
Também havia campanhas publicitárias a alertar contra a propagação de doenças através da tosse e espirros e nenhum país escapou
Em algumas fábricas, como conta ainda Arthur Newsholme, um dos maiores especialistas britânicos em saúde pública, no seu relatório de 1919 para a Royal Society of Medicine, as regras permitiam momentos para fumar, na crença de que os cigarros ajudariam a prevenir a infeção. Entre os conselhos generalizados à população, sobressaia o publicado no tabloide britânico de então News of the World: “lavar o nariz com água e sabão, de manhã e à noite, forçando-se a espirrar em seguida e depois respirar profundamente”. Também havia campanhas publicitárias a alertar contra a propagação de doenças através da tosse e espirros e nenhum país escapou, embora a escala do impacto da doença e os esforços para proteger as populações tenham variado muito. E havia as máscaras, claro – por muitos chamadas de “focinheiras” (tal como a espécie de açaime que se usa nos animais), “escudos de germes” ou “armadilhas de sujidade” – embora nem todos as usassem de forma correta, como atestam os relatos de cortes feitos na zona da boca para que permitissem fumar ao mesmo tempo.
Protestos e encontros desafiadores de caras destapadas
Há cem anos não havia o conhecimento científico de hoje, nem material certificado, mas, tal como agora, as máscaras, à época feitas de gaze e pano de queijo, revelaram-se uma das maiores armas da linha da frente na batalha contra a pandemia. Em uníssono, as autoridades médicas exortaram o seu uso para ajudar a retardar a propagação da doença, e o governo americano associou mesmo o seu uso a uma atitude patriótica, de defesa do país. Pouco depois, surgiriam as primeiras portarias sobre a obrigatoriedade, principalmente nos estados ocidentais, e a maioria das pessoas até cumpriu. Mas, num cenário em que bares, restaurantes, teatros e escolas permaneciam fechados, as máscaras tornaram-se um bode expiatório, um símbolo do “excesso de alcance governamental”, gerando protestos e encontros desafiadores de cartas destapadas.
O primeiro relato dessa contestação data de outubro de 1918, quando as autoridades municipais de São Francisco decretaram a obrigatoriedade de usar máscaras em público. Segundo a California State Library, cansados após meses de restrições, alguns dos moradores da cidade resolveram criar um movimento batizado de Liga Anti Máscara. Desconfiados da sua eficácia, acusaram as autoridades de violarem os seus direitos – e, num encontro, em janeiro de 1919, chegaram a reunir mais de 2 mil pessoas.
“Muitas pessoas simplesmente não gostavam de usar máscara”, confidenciou há tempos à BBC Brasil a historiadora Nancy Bristow, autora do livro American Pandemic: The Lost Worlds of the 1918 Influenza Epidemic (“Pandemia Americana: Os Mundos Perdidos da Epidemia de Gripe de 1918”, em tradução livre). “Em alguns círculos também se tornou um item de moda, mas não faltou quem argumentasse que era uma intrusão excessiva do governo”, recorda. Até que, em meados de novembro, quando restaurantes, hotéis e diversão noturna em geral abriram portas, apesar de o uso de máscaras ainda ser obrigatório, muitas pessoas decidiram ignorar a determinação. E quando, a 21 de novembro, dez dias após o fim da Primeira Guerra, o som de sirenes ecoou pela cidade, anunciando o seu fim, a multidão simplesmente saiu à rua, tirou a máscara da cara e atirou-a para o chão.
Multas e até prisão
A celebração haveria de se revelar prematura, os casos de infeção subiram vertiginosamente nas semanas seguintes e as autoridades voltaram a insistir para que a população usasse máscara em público – mas não se repôs a obrigatoriedade. Contam os relatos da época que apenas 10% da população aderiu de novo à medida, o que, perante um número de doentes novamente em crescendo, levou as autoridades a decretar outra vez a obrigatoriedade. E quem desobedecesse estava sujeito a multa e até prisão.
Desta vez, porém, a exigência foi recebida com resistência. Os comerciantes receavam que a regra tivesse impacto negativo nas vendas – e a desconfiança aumentou depois de a Associação Americana de Saúde Pública ter publicado um artigo numa revista científica no qual dizia que as evidências sobre a eficácia das máscaras eram contraditórias.
Foi neste contexto que surgiu a Liga Anti Máscara, formada por empresários, comerciantes e até alguns médicos – ao que se seguiu o tal encontro de milhares em São Francisco, evento que terá igualmente contribuído para propagar a doença. Ali se pediram assinaturas para um abaixo-assinado pelo fim da obrigatoriedade e também a demissão do responsável da cidade. Este inicialmente resistiu à pressão, afirmando que as posições do movimento não representavam o desejo da maioria dos moradores. Mas uma semana depois, a exigência do uso de máscara foi revogada. A cidade acabou por registar cerca de 45 mil infetados e mais de 3 mil mortes, uma das mais altas taxas per capita dos EUA.