Foi em abril que se anunciou o adiamento do Brexit para o Dia das Bruxas. O plano esfumou-se, entretanto, mas continua a ser alimentado. Hoje, os jornais titulam, já em modo de brincadeira, que é dia de não-Brexit ou “happy third” porque à terceira não foi de vez. Antes, já o Urban Dictionary, um dicionário informal online de gírias em inglês tinha considerado o uso do termo “brexiting” para a atitude de alguém que se despede de todos numa festa, mas continua no mesmo local, ou que vai abandonar um jogo de cartas a dinheiro e mantém-se na mesa. Ou seja, passa a designar a atitude de dizer que se vai fazer algo e depois não o fazer.
O processo não tem sido fácil e isso é claro numa rápida retrospetiva. Vejamos: 2013, janeiro. O primeiro-ministro, David Cameron, promete realizar até 2017 um referendo sobre a permanência do país na União Europeia, se for reeleito nas eleições gerais de 2015 e depois de uma renegociação da relação com a União Europeia (UE). Dois anos depois, o Partido Conservador vence as eleições com maioria absoluta (330 dos 650 lugares na Câmara dos Comuns do parlamento de Westminster). Na primeira declaração oficial, após a vitória, Cameron confirma a promessa de realizar o tal referendo. Chegamos a 2016 e, a 19 de fevereiro, ao fim de intensos debates em Bruxelas, UE e Reino Unido chegam a um acordo, redefinindo a relação britânica com o bloco europeu e, no dia seguinte, é anunciada a data de 23 de junho para a votação.
Tudo passa a ter um caráter mais definitivo na manhã de 24 de junho quando o mundo acorda com os resultados: 52% a favor da saída, 48% pela permanência. Votaram 72 por cento dos 46,5 milhões de eleitores britânicos. David Cameron, o primeiro-ministro que convocou o referendo, e liderou a campanha para permanecer na UE, anunciou a sua demissão, desencadeando uma eleição interna para a liderança do partido.
Duas semanas depois, Theresa May, que foi ministra do Interior durante seis anos nos governos Cameron, e igualmente defensora da permanência na UE, é declarada líder dos conservadores. E, às portas do parlamento britânico, May garantiu que “‘Brexit’ significava ‘Brexit'”.
É empossada ainda em 2016 e eis que chega 2017. Ainda durante janeiro, May faz um discurso em que traça objetivos e prioridades para as negociações, acabando a defender que “a saída sem acordo é melhor do que um mau acordo”.
Fim de março e o Governo britânico ativa o Artigo 50.º do Tratado de Lisboa, desencadeando uma contagem decrescente de dois anos para o processo de saída do Reino Unido da UE. Seguem-se toda uma série de reveses – e os trocadilhos, com referência ao número 50, não demoraram: de “50 shades of Brexit” a “50 shades of delay“…
Ainda houve tempo para se alinhavar um acordo preliminar durante 2017. Mas em dezembro, os deputados conservadores votam contra o próprio governo e apoiam a proposta da oposição, que queria incluir, na lei britânica, um voto final sobre um eventual acordo negociado com Bruxelas.
Em 2018, há eleições antecipadas, mas nem por isso se alcança o governo “forte e estável”, pelo qual a primeira-ministra fez campanha. Na primavera, Reino Unido e a UE declaram progressos nas negociações e definem um período de transição após o ‘Brexit’, que se estenderá de 29 de março de 2019 até 31 de dezembro de 2020 – mas admitem um impasse sobre a fronteira da Irlanda do Norte. E, em junho, iniciam-se as negociações formais para a saída. É quando a lei, que revoga a da Comunidade Europeia de 1972, é promulgada, tornando irreversível a saída do país da UE: será às 23 horas de 29 de março de 2019.
Só que, às portas de 2019, há mais contrariedades. A 10 de dezembro, May volta a adiar a votação do Acordo de Saída prevista para o dia seguinte, dado o risco de derrota por uma “margem significativa” e promete pedir “garantias adicionais”. As suas suspeitas acabam por se confirmar a 15 de janeiro, já deste ano, quando os deputados chumbam o Acordo de Saída.
A trapalhada desde então é tal que volta a ser aprovado um adiamento da data de saída. Estamos em meados de março e, uns dias depois, May anuncia que pediu à UE um adiamento da data de saída e vai voltar a submeter o acordo ao parlamento britânico. A comissão europeia adverte que qualquer adiamento não deve superar a data das eleições europeias. Mas, reunidos em cimeira, os líderes da UE recusam adiar o ‘Brexit’ até 30 de junho, aceitando antes uma extensão até 22 de maio ( caso o acordo de saída seja aprovado), ou então pode ser logo a12 de abril, se for chumbado.
As ruas de Londres enchem-se numa enorme manifestação contra a saída e, ainda nesse mês de março, May oferece a sua demissão em troca da aprovação do tão aguardado acordo. 29 de março: Nada feito. Os deputados britânicos rejeitam esse tal acordo pela terceira vez.
A 5 de abril, May pede novo adiamento até 30 de junho, mas meia dúzia de dias depois, o acordo com Bruxelas atira a data limite para 31 de outubro. No entretanto, fracassaram as negociações entre o governo de May e a oposição trabalhista, até que a 24 de maio, May anuncia a sua demissão da liderança do Partido Conservador, desencadeando uma eleição interna cujo vencedor há de assumir a chefia do governo.
É então que, para o lugar de May, é eleito Boris Johnson, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros do governo da sua antecessora e se demitira no verão de 2018.Durante a sua campanha, prometeu que o Reino Unido sairia da UE dentro do prazo, com ou sem acordo. Acabaria por se revelar um meme por si só.
Desde então, e diante do risco de uma saída abrupta, sem acordo ou termos detalhados para tal, os 27 líderes europeus já concordaram duas vezes em adiar o prazo para a saída, flexibilizando, portanto, o limite originalmente determinado sob o Artigo 50. No início de setembro, o Parlamento britânico acabou por aprovar legislação que impeça um Brexit sem acordo. E eis que chegámos a outubro, numa sucessão de acontecimentos sempre acompanhada da respetiva paródia online. Em fotografia ou vídeo, houve mêmes para todos os gostos, não há quem não tenha dado por isso.
O curioso foi que, a meio deste mês, ainda não se vislumbrava o que mais poderia acontecer, uma reportagem divulgada pelo The Telegraph revelava que toda esta sucessão de piadolas não era completamente casual, havendo mesmo uma campanha orquestrada por Boris e companhia, com o fim de conseguir angariar mais apoios – ou, como lhe chamou o diário britânico, uma “meme machine”.
Quando se anunciou que afinal só haveria Brexit em janeiro de 2020, o mesmo The Telegraph não perdeu a oportunidade de titular: “have a very merry Brexmas.”. Mas há mais, muitos mais. Eis a nossa seleção – rematada pela recordação da magnífica Yes, Minister, sitcom britânica transmitida entre 1980 e 1984, mas que continua a deliciar o mundo – e que, pelo menos num momento, se referiu à razão maior porque o Reino Unido aderiu à União Europeia.