No ano em que se assinalam os 30 anos da Unidade de Transplante de Medula do Instituto Português de Oncologia de Lisboa, o livro “30 anos, 30 histórias” reune casos de gente que foi transplantada e superarou a doença. Homens, mulheres e crianças que se submeteram aos tratamentos, sempre na esperança da cura e com total confiança na medicina e nos profissionais do IPO. Recorde três casos e testemunhos inspiradores:
“Estragaram-me com mimos no isolamento. As enfermeiras, então, davam-me tudo o que lhes pedia.”
Joel Matos
33 anos, serralheiro mecânico
Aplasia medular
Transplantado em 15 de setembro de1987, aos 3 anos e meio
Joel Matos, o mais antigo sobrevivente de um transplante de medula em Portugal, foi uma das primeiras pessoas a ser submetida a esta técnica no nosso país, há trinta anos.
As memórias que Joel guarda desse tempo são poucas e algo vagas, e misturam-se com a informação que recebeu da equipa médica e da família, em especial da mãe, que o acompanhou ao longo de todo o processo.
Tinha apenas três anos e meio quando uma aplasia medular o levou ao Hospital de Ovar, que o encaminhou para o IPO de Lisboa, onde a Unidade de Transplante de Medula (UTM) estava em fase de abertura.
Embora desconheça a origem da sua aplasia medular, Joel suspeita de alguma relação com as amigdalites frequentes que tinha em bebé – mais ou menos de 15 em 15 dias – e que o obrigavam constantemente a tomar antibióticos. Sabe que deu entrada nas urgências do Hospital de Ovar com muitas hemorragias e que daí o transferiram para um hospital do Porto, “do qual retenho algumas imagens menos agradáveis, como estar amarrado à cama, já que cada movimento que fizesse provocava novas hemorragias.”
A família de Joel chegou a pôr a hipótese de o levar a Inglaterra para o transplante: “Cá estava tudo ainda muito cru.” Mas a médica que o atendeu no hospital do Porto “disse aos meus pais que eu era um caso para o dr. Abecasis – que tinha acabado de chegar de Inglaterra e estava a batalhar para abrir a UTM.” Joel diz que foi o quarto doente a ser transplantado em Portugal, “e o único que sobreviveu” desses primeiros.
Joel tem dois irmãos, mas só um era dador compatível: a irmã, na altura com 15 anos.
Fez quimioterapia antes do transplante, e esteve em isolamento quase quatro meses. Tanto quanto sabe, não sofreu complicações. Lembra-se de a mãe ir ao quarto do isolamento, de fazer birras, de fechar as cortinas para as pessoas que iam visitá-lo não o verem: “Estragaram-me um bocado com mimos nesse período. As enfermeiras, então, davam-me tudo o que lhes pedia, desde seringas a gazes, sei lá, o que me passasse pela cabeça, elas davam-me. A minha mãe tentava pôr travão naquilo, mas não conseguiu evitar que eu saísse de lá muito mimado.”
Na sua memória ficou registada a enfermeira Cristina, “e uma outra, da qual não recordo o nome, com ar de enfermeira à antiga, óculos arredondados, com um relógio de metal no bolso, só deixava que fosse ela a tirar-me sangue. Obviamente, lembro-me do dr. Abecasis, sempre com o cabelo branco…”
Depois de lhe ser dada alta, Joel ficou em Lisboa, em casa de familiares. No início, tinha de ir ao IPO de mês a mês, depois de três em três meses, depois de seis em seis. Hoje em dia, tem uma consulta anual.
O grande “choque” foi o início da escola, aos seis anos: “Tive de fazer o “desmame” do mimo. Tinha estado dois anos em Lisboa, tinha tido sempre a minha mãe comigo, e na escola ainda tive mais problemas, porque a minha professora entrou no jogo do ‘coitadinho’.” Joel faz questão de dizer que nunca se sentiu como “coitadinho”: “Brincava normalmente. Nunca tive qualquer tipo de trauma por causa do transplante”, apesar de não ser um tema de que fale habitualmente, “ninguém tem nada a ver com isso, é um assunto de família.”
A única restrição que ainda mantém é a de não consumir bebidas gaseificadas, por causa da descalcificação provocada pela quimioterapia. Aliás, diz, “é agora que noto os efeitos secundários desses tratamentos, sinto dores nos joelhos e nos cotovelos.” Um efeito secundário para o qual esteve sempre preparado foi o de poder não ter filhos: “Na endocrinologia, disseram-me que a probabilidade de o conseguir era quase nula.” Mas esse “quase” fez toda a diferença – Joel tem um filho com cinco anos, uma surpresa para todos, incluindo para a equipa médica que o tem seguido ao longo destas três décadas.
“Este ano levei o meu filho a Lisboa, para conhecer o dr. Abecasis. Que, claro, ficou muito contente. Acho que, a princípio, nem acreditavam que fosse possível ele ser meu filho”, diz Joel.
No 11º ano, Joel enveredou pela mecânica. Grande adepto do desporto motorizado, com destaque para o automobilismo e as motos (“já tive motos-quatro”), acabou por mudar de profissão por razões de saúde: “Arranjei três hérnias lombares e nunca quis ser operado, porque achei que isso iria limitar-me.” Enveredou então pela serralharia mecânica. Agora está a construir casa e teve de “deixar o vício” do desporto automóvel: “Há que fazer opções.”
Joel está “muito agradecido ao dr. Abecasis e à dra. Isabelina. Presumo que para eles, eu seja um verdadeiro caso de sucesso.”
“Temos de ser positivos e ter a certeza que vamos sair desta”
Carlos Horta e Costa
63 anos, economista
Vice-presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia
Leucemia mieloide crónica
Transplantado em 2 de novembro de 1993, aos 39 anos
“Cabeça sempre positiva. A melhor coisa que me pode acontecer é acordar de manhã, é sinal de que estou vivo. Acordo e vou viver”. Esta é a mensagem que Carlos Horta e Costa, vice-presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL), gostaria de passar a todos os doentes e a todos os que precisam e fizeram transplante de medula.
Carlos Horta e Costa sabe do que fala. Aos 39 anos foi-lhe diagnosticada leucemia mieloide crónica, de forma absolutamente casual e inesperada. A sua secretária tinha um cunhado que era analista e que ia passar pelo escritório para fazer análises de rotina. Carlos Horta e Costa aproveitou, e não desconfiou de nada quando à noite lhe ligam a pedir nova recolha de sangue, alegando que um dos frascos se partira… Andava meio cansado, mas trabalhava muito e fazia ginástica, por isso o diagnóstico foi uma surpresa total e absoluta: “Foi estranho. Um primo meu morrera em 15 dias depois de saber que tinha uma doença destas. A palavra tinha uma carga emocional tão grande, acho que me entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Mas no dia a seguir fui ao IPO fazer a biópsia – e comecei a fazer o caminho, que durou quase um ano”.
Continuou a trabalhar normalmente. Todos os dias tomava uma injeção de interferon: “Tinha de ter cuidado com a alimentação, o interferon é um tiro no fígado, adeus a gorduras, bebidas alcoólicas. Caiu-me o cabelo, às vezes tinha febre durante uns dias, a pele estalava, num ano tive de interromper o trabalho três ou quatro vezes. Mas não foi um sofrimento horrível”.
Estava à espera que os valores da sua medula estabilizassem para poder fazer o transplante. Carlos Horta e Costa tem 11 irmãos, dois que são gémeos eram perfeitamente compatíveis consigo, pelo que era só escolher o dador: “A partir de um certo momento, a espera torna-se angustiante. Quer-se fazer e não se quer. Cheguei a ir a Londres, ao grande especialista Goldman, com uma amostra da minha medula. Não foi muito simpático. Disse-me logo que tinha uma doença fatal e que se não fizesse o transplante, morria. E que não estava a fazer ali nada, porque em Portugal tinha especialistas tão bons como em Inglaterra. Até o hospital era feio, só a receção, onde eram feitos os pagamentos, é que era acolhedora. Eu já estava habituado ao IPO”.
Quase um ano depois, estava pronto para o transplante. Católico praticante, foi a Fátima, mas na vinda foi informado que não tinha quarto, porque o doente que devia ter saído teria de lá permanecer mais tempo. Sentia-se cansado, começou a emagrecer, o cabelo acabou de cair, cortou o bigode, não lhe apetecia falar do assunto com ninguém. Finalmente, entrou para o isolamento, a 25 de outubro, fez o transplante a 2 de novembro, e saiu a 24: “Pensava que seria complicadíssimo, mas não, estava sossegado a ver televisão. Põem o cateter, e é tudo por aí, não há mais picadas. Nos dias do isolamento tinha visitas – só não quis naqueles dias da ‘terra queimada’ – lia, ouvia música e trabalhava. Quando não dava para esterilizar os documentos, pedia ao meu motorista para os mostrar da janela”.
Carlos Horta e Costa não tem a menor dúvida que em situações extremas como estas, “ou a cabeça funciona, ou é terrível. Visitei várias vezes colegas de situação, e uma vez vi um, que era professor de ténis, tinha 21 anos, que não reagia, só dizia que estava farto, farto, farto. Morreu. A cabeça é o principal. Temos de ser positivos e ter a certeza que vamos sair desta”.
Regressou ao trabalho seis meses depois do transplante (“o normal é nove meses a um ano”): “Já não aguentava mais. Tinha restrições. Evitar ajuntamentos, só podia trabalhar de manhã ou de tarde e não podia haver ar condicionado. Eu parecia um E.T. – magríssimo, sem cabelo, de máscara. Todos os dias fazia o meu passeio a pé por Campo de Ourique, ia sempre de chapéu e sobretudo”.
A comida, diz, “era uma maçada”. Sempre acabada de fazer, recipientes e talheres esterilizados, o que tornava difícil refeições fora, doces e compotas só em embalagens de hotel – que na altura não eram fáceis de encontrar, e os vários alimentos iam sendo autorizados pouco a pouco: “A primeira refeição em casa foi um bife com batatas fritas. E no dia D+120 pedi à minha mulher para me fazer dois ovos estrelados com batata frita e salsichas de lata fritas”. Pequenos marcos que não se esquecem.
Um ano depois do transplante, as coisas começaram a normalizar. Agora só vai ao IPO uma vez por ano, está reformado, tirou um curso de cozinha (“adoro cozinhar”), outro de navegação, gosta de andar de moto, sobretudo junto ao rio, e é vice-presidente da APCL: “A ideia foi de um colega transplantado, que não sobreviveu. E quem puxou pela ideia e a concretizou foi o dr. Duarte Lima – que também teve uma leucemia – que juntou um conjunto de médicos e pacientes e constituiu a associação em 2002”.
Esta grande batalha serviu para fortalecer os laços entre todos, de tal modo que se autointitulam “o quarteto fantástico”
Inês Domingos
26 anos, educadora de infância
Leucemia mieloide crónica
Transplantada em 28 de setembro de 1994, aos 3 anos.
Inês Domingos foi pioneira em muitas coisas. Em Portugal, foi a primeira pessoa a receber um transplante de medula a partir de células estaminais retiradas do cordão umbilical do irmão – uma proeza que mobilizou muita gente, muitos meios, muita fé e muita sorte para permitir que hoje faça uma vida normal, tenha a profissão que escolheu e pratique livremente os seus hobbies de eleição: viajar e cozinhar.
Inês fez Erasmus na Noruega, é educadora de infância numa escola em Linda-a-Velha, e ainda trabalha em part time na organização de festas infantis no Jardim Zoológico de Lisboa. Sempre que pode, viaja. Para Nova Iorque ou para o Porto, do que gosta mesmo é de estar em movimento. E aponta responsabilidades aos escuteiros, onde andou, neste seu “espírito de aventura, de liberdade, de independência”.
Para trás ficaram anos de luta e de angústia de que Inês, felizmente, mal se recorda. Mas para os pais, Anabela e Paulo, essas marcas ficaram para sempre. Sem lamentações. Inês sobreviveu, João chegou saudável e o seu nascimento permitiu salvar a vida da irmã – ao contrário do que acontece em muitas famílias, esta grande batalha serviu para fortalecer os laços entre todos, de tal modo que se autointitulam “o quarteto fantástico”.
Febres baixas e uma amigdalite persistente levaram Inês ao hospital de São Francisco Xavier quando tinha apenas um ano e três meses. O baço dilatado obrigou a mais exames e a internamento imediato. Anabela recorda a angústia de não perceber nada do que estava a passar-se, pouco lhe explicavam. Quando chegou o resultado do mielograma levaram a bebé de ambulância para a pediatria do IPO de Lisboa. “Aí, o meu mundo desabou”, conta Anabela, “explicaram-me de forma muito dramática que a Inês tinha uma leucemia mieloide aguda, uma doença de tipo adulto, provocada por um cromossoma que degenerou, que era como se ela tivesse 60 anos. Era uma leucemia muito agressiva. Disseram-nos que iriam tentar pará-la, estavam a conviver com um problema novo, teria de se viver um dia de cada vez”. Os pais recordam que “a quimioterapia era um horror, ela era muito pequena”.
No início, Inês reagiu bem, uns meses melhor, outros pior. Os pais revezavam-se nas baixas ao trabalho para acompanhar a filha. Aos dois anos piorou. Ao ponto de o médico dizer aos pais que era uma questão de dias, não havia nada a fazer. “Não nos deram esperanças nenhumas, foi muito dramático”, conta Anabela, “ela estava no isolamento, toda ligada, vivíamos hora a hora. Numa dessas horas, estava eu lá sentada, entrou um senhor magrinho, de bata branca, a perguntar-me se eu era a mãe da Inês. Apresentou-se como Manuel Abecassis, disse que gostaria de falar connosco para ver se quereríamos embarcar com ele numa aventura. Eu não estava a perceber nada. ‘A Inês está muito mal’, disse ele, ‘Para ela melhorar, a senhora tem de engravidar, temos de correr contra o tempo, fazer uma série de exames, consultas de genética’. Nem sabíamos o que havíamos de pensar. Ele insistiu: ‘De certeza que querem ter mais filhos, são um casal novo (tínhamos 27/28 anos). Digam-me amanhã se querem entrar nisto’”.
Nem de propósito, Inês começou a melhorar. Para Anabela, “foi um sinal”. Foi uma aventura, e uma aventura de pioneiros. A começar pelos testes genéticos, que à época estavam muito no início, como os informou um especialista inglês que consultaram, que lhes disse que esta era a única hipótese da filha. Anabela só tinha um ovário e tinha estado um ano para conseguir engravidar de Inês. Do João, foi logo, “nem queria acreditar”. Inês aguentou-se durante os nove meses da gravidez, e quando nasceu foi feita a recolha das células do cordão umbilical – tudo isso também era pioneiro, e o IPO teve de solicitar ao ministro da Saúde (na altura, Maria de Belém) verba para o aparelho que permitiria congelar as células durante 12 anos, já que Inês teria de entrar em remissão para fazer o transplante. João nasceu em maio, em agosto Inês piorou. Avançaram para o transplante, com irradiação corporal total (tiveram de improvisar proteções para os órgãos, para a radiação só incidir na medula), com anestesia geral, mas os anestesistas não podiam ficar no quarto, tiveram de monitorizar a partir de fora – também uma inovação. Todo o serviço foi fechado para o transplante de Inês, que ficou “em super, ultra isolamento. Até para a alimentação parentérica era preciso improvisar, “ainda não havia tubos para criança, era tudo mesmo pioneiro, nunca se tinha feito isto a ninguém com menos de 30 quilos”, conta a mãe.
Inês foi para a escola aos sete anos. Tanto a ela como ao irmão (e até aos amigos), os pais explicaram que Inês tinha uns bichinhos no sangue e que o João tinha dado as sementinhas do seu sangue para matar os bichinhos.
A escola não foi fácil para Inês: “As crianças dizem a verdade, são curiosas, faziam perguntas, eu não sabia responder, não tinha cabelo, era baixinha”. Conta que aos 17/18 anos teve apoio psicológico no IPO, “chegou uma altura em que tive de explodir. A doença não me limita, mas era tímida e introvertida, e depois deste apoio saí da minha concha. Agora, estou de bem com a vida”.