No próximo dia 30 de Setembro, a Fundação Francisco Manuel dos Santos vai debater em Lisboa “Em que pé está a igualdade?“, trazendo a Portugal alguns dos maiores especialistas mundiais sobre as desigualdades, a teoria económica e a história das ideias políticas. Não esquecendo, importa referir, uma convidada muito especial: Ruby Bridges Hall, que em criança foi a primeira afro-americana a ter aulas numa escola de Nova Orleães (as manifestações de ódio dirigido a Ruby pelos colegas brancos e seus pais ficaram imortalizadas em notícias, livros, documentários e num famoso quadro de Norman Rockwell, “The problem we all live with”).
“Em que pé está a igualdade?” será um diagnóstico não apenas sobre o caso português, mas sobre todo o mundo. As desigualdades sociais e económicas são hoje um dos temas de maior interesse público: pessoas de dezenas de países indicaram numa sondagem que a sua maior preocupação social (acima da segurança, do terrorismo, do ambiente, da educação, de tudo) é a diferença de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres.
Os números são esclarecedores: segundo a Oxfam, as 8 famílias mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre dos 7 mil milhões de seres humanos. No livro “O capital no século XXI”, o economista Thomas Piketty estima que os 1% mais ricos do mundo têm em sua posse 50% da riqueza mundial. De acordo com o mesmo cálculo, os 70% mais pobres têm… 3%.
Em boa parte, a desigualdade económica é considerada preocupante porque o fosso entre os rendimentos dos mais ricos e os dos mais pobres tem vindo a aumentar. Branko Milanovic, um dos convidados do Encontro da Fundação, agrupou a população mundial em decis de rendimento e constatou duas coisas: que a “pessoa média” em cada um dos decis viu o seu rendimento aumentar ao longo dos últimos 30 anos; e que esse aumento no rendimento foi muito desigual entre os vários decis. Nestas décadas de forte globalização e neoliberalismo, quem mais ganhou (percentualmente) foram as classes médias dos países em desenvolvimento e os 1% mais ricos do mundo. Já as classes pobres dos países em desenvolvimento ganharam um pouco menos. E no fundo da tabela, com ainda menor ganho (quase nulo, na verdade), vêm as classes médias e baixas dos países mais desenvolvidos do mundo. Entre os quais Portugal.
Igualdade, sim, mas…
A revista Nature publicou, no início deste ano, um artigo com o título bombástico «Why people prefer unequal societies». No texto, Christina Starmans, Mark Sheskin e Paul Bloom revêem alguns dos principais trabalhos de psicologia comportamental relacionados com as desigualdades. Focam-se, concretamente, em experiências laboratoriais.
Os autores referem trabalhos com crianças, adolescentes e adultos. Nesses trabalhos, fica clara uma tendência igualitarista nos humanos: quando se pede a alguém que distribua um conjunto de objectos, ou outros recursos, quase todos os dividem por igual entre os participantes. Seja ou não a pessoa decisora um dos beneficiários dessa divisão. E haja ou não uma quantidade desproporcional de bens a distribuir: na dúvida, o decisor prefere pôr de parte ou deitar fora aquilo que vá além da proporção igualitária para cada um dos participantes.
Mas não é só: nos casos em que o decisor se apercebe de que alguns dos participantes se esforçaram mais, ou considera que eles fariam melhor usufruto (para si e para o colectivo) dos bens distribuídos, a divisão de bens no estudo não foi completamente igualitária. Os decisores deram mais a quem, no seu entender, tinha mais mérito.
Outro estudo referido no artigo da Nature, e que esteve na base de um texto de Dan Ariely publicado na Atlantic («Americans want to live in a much more equal country. They just don’t realize it»), mostra que os norte-americanos têm a ideia de que a distribuição de rendimentos no seu país é muito mais igualitária do que realmente é. E mais: acham que os ricos deveriam receber apenas três vezes mais do que os mais pobres. Um ideal que contrasta radicalmente com a realidade.
Mas esse artigo mostra também outra coisa: que se lhes fosse dada a possibilidade de nascer numa família com uma posição social aleatória numa sociedade imaginária (ou seja, se decidissem à luz de um «véu de ignorância» como o proposto pelo filósofo John Rawls), eles não quereriam que essa sociedade fosse igualitária. Prefeririam viver numa sociedade com pessoas um pouco mais ricas e outras pessoas um pouco mais pobres.
Os resultados do estudo de Dan Ariely e colegas, importa dizer, são transversais às várias faixas etárias e ideologias: pessoas de esquerda ou de direita, mais jovens ou mais idosas tendem a ter a mesma ideia. Igualdade, sim, mas com alguma desigualdade.
Repitam comigo: equidade, equidade, equidade
No artigo da Nature, Starmans, Sheskin e Bloom argumentam que igualdade não é o melhor termo para designar aquilo que, verdadeiramente, as pessoas tendem a preferir. A sociedade ideal não é radicalmente igualitária, não põe sequer todos os seus habitantes num mesmo plano de bem-estar económico. Diferentes esforços e diferentes capacidades merecem diferentes recompensas, mostram as preferências das pessoas nestes estudos. Isso terá algo que ver, dizem os autores, com a evolução da espécie humana: ao longo da nossa história, tivemos de colaborar para sobreviver (como caçadores-recolectores, como agricultores, como nómadas, etc.) e contámos necessariamente mais com aqueles que mais podiam fazer pelo sucesso da comunidade.
O termo certo a usar, dizem os três autores, é equidade: mais do que a desigualdade económica, alegam eles, preocupa-nos a iniquidade económica. Quando o “jogo” está viciado, pouco ou muito, isso sim provoca em nós uma sensação de injustiça. E de desigualdade. Sentimos que não temos os mesmos direitos. Que uns são mais “iguais” do que os outros. Que uns conseguem levar a melhor sobre os outros não através do seu mérito, do seu esforço e das suas capacidades, mas de características “sombrias”, de favorecimentos, de, no fundo, aspectos que viciam o “campo” tornando-o desnivelado.
No seu livro «Society of Equals», o filósofo político Pierre Rosanvallon, outro dos convidados do Encontro da Fundação, dá a entender isso mesmo: «A desigualdade é mais sentida quando os cidadãos acreditam que as regras se aplicam diferentemente a diferentes pessoas. O duplo padrão ofende-as, fá-las sentir que apenas elas seguem as regras enquanto os outros as contornam para sua própria vantagem» (tradução livre a partir do inglês). Segundo os autores do artigo na Nature, o termo correcto é iniquidade, não desigualdade. A palavra desigualdade é hoje um “chapéu” demasiado largo: designa ao mesmo tempo o fosso de rendimentos entre ricos e pobres e outras formas de injustiça social que são, na verdade, mais facilmente apreendidas pela designação iniquidade.
A crescente desigualdade de rendimentos corre paralelamente a formas de iniquidade, é certo. Reforça-as e é reforçada por elas. Não há, porém, nada na desigualdade em si mesma que seja rejeitado pela maioria das pessoas. (É menor o nosso choque em relação à riqueza de Cristiano Ronaldo do que o nosso deleite com o seu futebol.) De acordo com os estudos aqui referidos, um certo grau de recompensa pelo maior esforço no trabalho é considerado justo e a motivação certa para que nos empenhemos mais. As pessoas querem viver em sociedades onde a mobilidade social seja possível e justa. O problema é que vêem o “jogo” cada vez mais viciado, com os “vencedores” a serem sempre os mesmos. E ninguém aprecia um desporto cujos resultados já se saibam à partida.
Estes assuntos vão ser debatidos no Encontro da Fundação, dia 30 de Setembro.