Nos corredores das operadoras de telecomunicações, chamam-lhes “os piratões”. Estão habitualmente na lista dos melhores clientes: assinam os mais completos pacotes de televisão, os canais premium preferidos e não falham o pagamento de uma fatura mensal. São ainda conhecidos por terem conhecimentos avançados de engenharia eletrónica. Sabem como descobrir os segredos escondidos no cartão da sua box e, um dia, resolvem usar essa habilidade para ganhar dinheiro. Angariam uma rede de clientes – nos cafés da terra, em chats na internet ou em páginas do Facebook – e dão-lhes acesso a um pacote apetecível de canais de televisão, que normalmente inclui os pagos (sobretudo os desportivos) em troca de um pagamento entre os 10 e os 30 euros mensais. A prática chama-se cardsharing, é um método criminoso (envolve vários crimes) e, a par do streaming (serviço de transmissão de vídeo e/ou áudio em tempo real, acessível através de uma ligação à internet), é atualmente a grande dor de cabeça das operadoras.
A NOS adianta que pelo menos 70 mil pessoas em Portugal recorrerão ao cardsharing. E são números “conservadores”, diz a empresa. Se todas essas pessoas pagassem, de forma legal, pelos mesmos canais de televisão, as empresas que fornecem sinal de TV por cabo ou por satélite encaixariam 40 a 50 milhões de euros por ano. Mas, partindo do princípio que nem todos os clientes estão dispostos a pagar mais, e seguindo os estudos que dizem que 20% destes clientes serão recuperáveis, o fim deste tipo de pirataria permitiria que as operadoras encaixassem cerca de 7,5 milhões de euros anuais.
Imagine que uma só pessoa, a partir da sua casa, consegue partilhar o seu pacote de TV com centenas e centenas de televisões em qualquer parte do mundo, precisando apenas que todos os utilizadores tenham ligação à internet. Resumidamente, é isto o cardsharing. A técnica permite que um só cartão assinante consiga descodificar o sinal de outras boxes, que estejam permanentemente conectadas. Descobrindo os segredos do seu cartão, o “piratão” só tem de configurar outras boxes – que se compram facilmente no mercado. A partir daí, o número de pessoas a quem se pode vender estes serviços é ilimitado: à justiça portuguesa já chegaram casos de piratas que tinham 600 clientes. Mas, dependendo do número de servidores controlados, o número pode ser muito superior. Os clientes recebem os dados do cartão do assinante através dos dispositivos recetores adaptados (as boxes) e passam a usufruir do sinal televisivo descodificado, como se fossem verdadeiros clientes das operadoras de telecomunicações. Só que por uma pechincha, comparando com os preços oficiais do mercado.
Como esta técnica está centrada no cartão, e a Vodafone não usa cartões para autenticar as suas boxes, a empresa tem melhor sorte: não é um alvo direto de cardsharing. Ainda assim, admite sair lesada indiretamente com a prática criminosa. “Considerando que todos os clientes de soluções piratas poderiam ser clientes de qualquer operador, é legítimo pensar que uma parte desse negócio podia reverter para a Vodafone.” A operadora lembra que o esquema também penaliza o Estado – porque “os piratas não pagam IRC nem IVA” –, os artistas, e os clientes dos serviços mais pirateados, como os canais desportivos e outros canais pagos, “já que a perda de clientes legítimos e de assinantes levará os seus distribuidores a aumentar os preços”.
Os funcionários das operadoras ouvidos pela VISÃO são unânimes: o acesso por um preço reduzido à Sport TV e à Benfica TV são “as principais motivações” dos que recorrem a serviços ilegais como o cardsharing. Rui Marques, diretor de planeamento e controlo de gestão da Sport TV, diz mesmo que o fenómeno da pirataria é “uma doença para os canais premium”, sobretudo para os desportivos, que têm as assinaturas mais caras do mercado. O preço médio do canal desportivo anda entre os 20 e os 30 euros, que se somam ao que o cliente já paga pelo pacote de canais sem assinatura. Como a Sport TV vende diretamente aos operadores, que depois decidem o preço final de venda ao público, quanto mais subscrições o operador conseguir vender, melhor o preço de venda que será praticado pelo canal.
Naquele que foi o primeiro canal premium a aparecer em Portugal, e que se dedica em exclusivo à emissão de conteúdos desportivos, estima-se que cerca de 150 mil pessoas acedam todos os meses aos canais Sport TV de forma ilegal. O número engloba os que fazem cardsharing e streaming. Contas feitas, a estação fala de uma perda nas receitas de 50 milhões de euros anuais, a que se juntam mais 9 ou dez milhões de euros perdidos para o Estado em impostos não cobrados.
Quando se junta o streaming aos números do cardsharing, os valores calculados pela NOS também disparam: existirão pelo menos 255 mil utilizadores em território nacional, que representam 120 milhões de euros de receitas perdidas todos os anos pelo setor das telecomunicações e 14,4 milhões de euros não declarados às Finanças. O fenómeno não é obviamente exclusivo do mercado português. Em França, a consultora Ernst & Young promoveu um estudo alargado sobre o mercado da pirataria e concluiu existirem naquele país 13 milhões de consumidores de conteúdos piratas – que custavam mais de 2 milhões de empregos diretos e 430 milhões de euros de receitas fiscais não angariadas.
Se é cliente, também comete crimes
Dentro das empresas de telecomunicações, ninguém acredita na ingenuidade dos utilizadores. Quem compra saberá que está a comprar um serviço ilegal. A verdade é que quem usa o streaming ou compra um serviço de cardsharing também está a cometer crimes – de usurpação, de acesso ilegítimo a sistema informático ou de falsidade informática, punível com uma pena até cinco anos de prisão (ver caixa Sabia que pode ir preso?). Ainda assim, as operadoras e o Ministério Público têm poupado os utilizadores finais, procurando castigar quem desenvolve e fornece os esquemas ilegais.
Para esses, não tem faltado mão pesada. Em 2016, o Departamento de Investigação e Ação Penal de Gondomar acusou quinze pessoas de venderem sinal de televisão a mais de 500 clientes por cerca de dez euros mensais. No Montijo, outras três pessoas foram acusadas de promoverem um esquema semelhante, durante sete anos, a pelo menos 600 clientes. Já este ano, dois informáticos de Vila Nova de Paiva foram acusados de burla, falsidade informática e detenção de dispositivos ilícitos por terem pirateado o sinal da MEO e da NOS, recorrendo ao esquema do cardsharing, e a troco de um pagamento entre os dez e os 30 euros mensais. Alguns dos clientes do esquema foram alvo de buscas mas não são arguidos. Foram arrolados como testemunhas no futuro julgamento. E até já há registos de casos que foram julgados e terminaram com condenações. O Tribunal de Vila Nova de Gaia, por exemplo, condenou dois arguidos a 14 meses de prisão e ao pagamento de uma indemnização à operadora por terem partilhado o sinal televisivo com cerca de cinco centenas de pessoas.
Detetar uma rede de cardsharing não é fácil. Neste caso, não basta uma ordem judicial para bloquear um site – como tem acontecido com aqueles que permitem ver filmes e séries através de streaming ou de downloads. O que ainda salva as operadoras são as denúncias dos clientes legítimos, que se cansam de ouvir o amigo ou o vizinho a gabar-se de pagar uma bagatela pelos mesmos canais. “É frequente recebermos contactos de clientes que se sentem indignados por verem pessoas à sua volta a fazer este tipo de negócio, quando os próprios pagam as tarifas normais”, diz a Vodafone, acrescentando que nesses casos pede aos clientes para fazerem queixa às autoridades competentes.
Descobrir sites ilegítimos
Mesmo com a denúncia, não é óbvio que se consiga chegar ao “piratão”. Quem faz a partilha ilegal usa muitas vezes nomes falsos, pode ter os servidores em qualquer parte do mundo e, se sentir algum receio, em meia hora consegue desmontar tudo e desligar o serviço. Não é por acaso, aliás, que estes piratas são conhecidos por terem um serviço excecional de apoio aos clientes, chegando mesmo a ligar-lhes quando passam uns dias sem aceder à TV. Consta que, desde que o Ministério Público começou a investir no combate ao cibercrime, o fazem para controlar se estão prestes a serem descobertos. Além do mais, não é provável que se apanhe um em flagrante delito. Estas investigações tendem a ser demoradas e estão dependentes de confirmações técnicas, incluindo de dados das operadoras.
O gabinete de cibercrime da Procuradoria-Geral da República (PGR) diz estar em permanente “contacto direto com os magistrados que dirigem a investigação criminal, por forma a perceber quais as tendências nas queixas que chegam ao Ministério Público no domínio da cibercriminalidade”. Conhece “vários casos de cardsharing”, alguns com acusações e até com condenações, mas não consegue apresentar números específicos para o fenómeno. O gabinete que coordena o combate à cibercriminalidade confia que o método perderá importância e surgirão menos queixas judiciais à medida que as operadoras forem “adotando defesas tecnológicas” e lembra, por exemplo, que as boxes mais modernas já não têm cartões.
Como, ao contrário do cardsharing, o streaming está hoje praticamente ao alcance de qualquer pessoa com ligação à internet, a Sport TV tem investido aí os seus trunfos, tendo um departamento dedicado a descobrir sites que dão acesso ilegítimo aos seus canais. Esse departamento começa por comunicar com os sites, ameaçando fechá-los. Se nada acontece, recolhe fotos, vídeos e todas as informações associadas àqueles links e remete-as para o Tribunal da Propriedade Intelectual. A confirmarem-se as suspeitas, o tribunal manda os operadores bloquearem o acesso. O departamento tem ainda a hipótese de recolher provas e remetê-las para a Inspeção-Geral das Atividades Culturais, que também tem o poder de bloquear alguns sites. O canal tem enfrentado novos desafios no mercado da pirataria, como os fenómenos recentes da transmissão ao vivo dos jogos de futebol através das redes sociais, mas diz que “o streaming continua a ser o killer [assassino] mais difícil de combater”: “É fácil, tem qualidade, aparece nos motores de busca e todos nós conhecemos alguém que conhece um site ilegal”, diz Rui Marques, da Sport TV. A prática tornou-se tão recorrente que há quem admita sem pudores aceder ilegalmente a determinados canais. Desde que Augusto Inácio, ex-treinador do Sporting, disse num programa de televisão que via a “Benfica TV na net”, porque assim não pagava, que nas operadoras de telecomunicações se arranjou uma alcunha para quem vê conteúdos por streaming. Chamam-lhes “os Inácios”. E é altamente improvável que o leitor não conheça nenhum.
Os métodos…
Cardsharing – Ocorre quando um assinante de um pacote de canais de TV e de canais premium partilha os dados do cartão da sua box com outros utilizadores (sem que estes precisem de ser clientes das operadoras). Para isso é necessário boxes codificadas e servidores.
Streaming – É um serviço de transmissão de vídeo em tempo real, acessível através de uma ligação à internet. Não precisa de qualquer box ou cartão. Basta um aparelho ligado à internet e conhecer o endereço de um site que disponibilize filmes, séries ou jogos de futebol em direto.
… e os números
70 mil – Segundo a operadora NOS, numa estimativa “conservadora”, pelo menos 70 mil pessoas em Portugal terão acesso a um pacote de canais de televisão (que normalmente inclui canais pagos como a Sport TV e a Benfica TV), através do esquema ilegal de cardsharing.
255 mil – Se alargamos o leque a outros métodos de pirataria, como o streaming, a NOS diz que o número quase quadruplica. Serão 255 mil os utilizadores em território nacional.
€7,5 milhões – Estima-se que 20% das pessoas que recorrem ao cardsharing para ver televisão seriam “recuperáveis” pelas operadoras caso o esquema ilegal fosse desmantelado. Isso representaria 7,5 milhões de euros de receitas anuais.
€120 milhões – O streaming e o cardsharing causam perdas para o setor das comunicações de 120 milhões de euros anuais, segundo a NOS. Também o Estado perderá anualmente 14,4 milhões com os valores movimentados no mercado pirata e não declarados às Finanças.
(Artigo publicado na VISÃO 1258, 13 de abril de 2017)