“Se as portas da percepção fossem abertas, tudo apareceria como realmente é: infinito.” A citação do poeta inglês William Blake inspirou o título do livro do compatriota Aldous Huxley, que no século passado começou a tomar mescalina e descreveu a experiência em livro. O título inspirou a lendária banda americana The Doors, que abraçaram o movimento psicadélico como via de expansão da consciência. Seis décadas depois, o consumo de drogas ilegais com receita médica é a grande revolução que se avizinha. Autorizados pela FDA (agência que regula a o setor dos fármacos nos EUA), os ensaios clínicos finais com alucinogénios (no caso, o MDMA, ou ecstasy, vulgarmente usado nas festas ‘rave’) estão a revelar-se promissores e prestes a serem usados em psicoterapias assistidas para casos graves de stresse pós traumático (PTSD).
O tema vai ser debatido na conferência Psychedelic Science 2017, em Oakland, na Califórnia, entre os dias 19 e 24 deste mês, com a chancela da associação multidisciplinar para estudos psicadélicos (MAPS), sediada em Santa Cruz, na Califórnia, e que financia, as pesquisas que estão a dar que falar: em 12 semanas de psicoterapia com MDMA, a severidade dos sintomas de PTSD foi reduzida em 56% dos casos. Falámos com o casal que lidera esta investigação revolucionária. A partir da sua casa e clínica, em Charleston, no Estado da Carolina do Sul, o psiquiatra Michael Mithoefer, 70 anos, e a sua mulher, a enfermeira Annie, seis anos mais nova, mostraram-se entusiasmados, não apenas com o potencial de cura da substância que investigam desde meados do século passado, mas também com a tão aguardada aplicação na medicina, sonho que pode tornar-se real em apenas quatro anos.
Juntos há 44 anos e na vanguarda da pesquisa com psicadélicos. Como chegaram até aqui?
Nós estudámos os efeitos do LSD durante uma década, nos anos 1970, após receber formação com o psiquiatra checo Stanislav Grof. Constatámos então que o consumo controlado de psicadélicos com acompanhamento médico resultava muito bem em pessoas com traumas. Porém, quando o seu consumo foi tornado ilegal pela Drug Enforcement Administration (DEA), em 1985, as pesquisas ficaram paradas Em 2000 falámos com o fundador da MAPS, Rick Goblin. Quatro anos depois, iniciamos o primeiro estudo com protocolo e autorização governamental.
Quem financia as pesquisas? E onde estão a decorrer os ensaios clínicos?
A MAPS e alguns particulares é que o fazem, sem apoios estatais ou da indústria farmacêutica. As pesquisas são conduzidas em clínicas privadas, nos Estados Unidos – na Carolina do Sul e no Colorado – mas também em Israel, na Suíça e no Canadá. Os primeiros resultados são promissores, mostrando que a terapia assistida com MDMA produziu melhorias que as pessoas diagnosticadas com PTSD que não tinham obtido com outros tratamentos.
As melhorias que refere manifestaram-se de que forma?
Na redução da resposta de medo, na diminuição das defesas e na gestão das emoções. Neste caso, deixavam de ficar arrebatados ou paralisados por elas, o que não tinha acontecido com a psicoterapia ou com os fármacos, isoladamente.
Quais foram os critérios para participar nos ensaios clínicos?
Os pacientes são referenciados por psiquiatras, mas cerca de mil americanos contactaram-nos diretamente. A amostra era de 26 pessoas, só por aí pode ver o grau de necessidade! Há uma pré-seleção via telefone, para apurar se correspondem aos critérios da pesquisa. Preenchem um documento de consentimento informado e um psicólogo independente avalia a severidade dos sintomas de PTSD. São ainda submetidos a análises de sangue e a um eletrocardiograma, para despistar problemas cardíacos, porque o MDMA aumenta as pulsações e a pressão sanguínea.
Como descreve uma sessão de psicoterapia assistida com MDMA?
A sessão preparatória dura, em média, 90 minutos. No dia seguinte, de manhã, tomam o comprimido e, meia hora depois, são acompanhados por dois terapeutas: eu e a minha mulher ou equipas de pares que treinámos para o efeito.
Porquê a presença de dois terapeutas de ambos os sexos?
Por razões de segurança. Se as vítimas de abuso ou de trauma tiveram problemas com um homem ou com uma mulher, esse pormenor deve ser equacionado.
Quanto tempo dura a sessão e como é que a pessoa é assistida, durante e após a toma?
Cerca de oito horas. Encorajamos as pessoas dirigirem a atenção para dentro de si. Podem usar uma venda para os olhos e headphones. Começam por ouvir música relaxante, que depois se torna mais estimulante e, para o final, volta a ser mais calma. Depois começamos a falar com elas e sugerimos que se abram ao que surgir. Alternar o foco entre o “fora” e o “dentro” pode acontecer de meia em meia hora ou só a meio da sessão, depende de cada um.
Como se avaliam os efeitos da terapia assistida com MDMA?
As pessoas passam a noite na clínica e na manhã seguinte têm uma sessão de hora e meia com o terapeuta. Semanalmente falamos por telefone e são marcadas mais duas ou três sessões no mês seguinte, para integrarem melhor a experiência: mesmo com a ajuda do MDMA, é normal que surjam novos episódios ansiosos no processo de cura e que requerem apoio profissional. Quanto à eficácia, os efeitos obtidos até agora não são temporários.
Este protocolo é aplicável a outras doenças ou perturbações?
Há dois estudos da MAPS, um ligado à ansiedade social em adultos autistas realizado pela universidade da Califórnia, em Los Angeles, e outro em que o MDMA foi usado em pessoas com doenças que comprometem a vida, na área de São Francisco. Porém, estamos a investir nos casos de PTSD com terapia individual, onde os resultados são promissores. Por exemplo, em Toronto, onde seguimos casais em que um dos cônjuges sofre de PTSD, ambos tomaram o químico durante a terapia e tiveram melhorias nos sintomas e na satisfação conjugal.
A medicalização das chamadas ‘trips’ psicadélicas, glorificadas nos anos 1960´s, é para 2021?
Reconheço que as estimativas que fiz são otimistas. Vamos aguardar as conclusões dos estudos mas desiluda-se quem pensa que estas substâncias serão de livre acesso. A ideia é usá-las em clínicas especializadas e certificadas em tratamentos com MDMA.
Para isso é preciso pessoal especializados. O que estão a fazer nesse sentido?
Organizámos uma ação de formação para investigadores em Inglaterra, há uns anos. Era a maneira possível de avançar com o projeto sem problemas legais. As coisas estão a mudar e concorremos para ter acesso alargado aos psicadélicos, até antes de 2021, para que os terapeutas comecem a usá-los de modo controlado e fora do contexto de investigação.
Quem vai poder ter acesso aos psicadélicos e usá-los na intervenção clínica?
Psiquiatras, psicólogos ou enfermeiros na área da psiquiatria. Os candidatos selecionados recebem uma formação online, fazem um módulo de seis dias com vídeos sobre a abordagem e haverá um módulo adicional de cinco dias em contexto residencial, para terem acesso à sua própria experiência connosco. Porém, a permissão para fazê-lo é circunscrita aos Unidos.
Sobretudo na Europa, questiona-se se estas novas terapias são um passo maior que a perna. Admito que esta realidade seja preocupe algumas pessoas, mas vejam os dados. A MAPS é uma farmacêutica sem fins lucrativos que se submete a todas as fases de teste para demonstrar se o seu produto é seguro e eficaz. Não estamos sequer a advogar o uso generalizado desta abordagem. A mensagem é: há drogas psicadélicas promissoras para uso médico que devem ser estudadas com o cuidado que merecem: o MDMA, a psilocibina, o LSD e a ketamina, entre outras.
Porém, no meio científico, há quem alerte para os perigos dos paraísos artificiais.
Não são paraísos, mas sim catalisadores de um processo psicológico profundo para pessoas em sofrimento, sem melhoras com outras soluções. No limite, as pesquisas mostram que ninguém ficou pior. No caso da canábis, a situação é diferente: a investigação foi bloqueada durante tantos anos que as pessoas cansaram-se e decidiram avançar por si mesmas e mudaram as leis.
Há riscos por aferir na investigação ou os receios de decisores e cientistas são infundados?
Claro que há riscos, mas podem ser menores que os benefícios em situações muito específicas. Não se pode colocar tudo no mesmo saco: uma coisa é o modelo dos psicadélicos, usados poucas vezes como aceleradores de uma psicoterapia, outra é a canábis, prescrita regularmente como remédio para aliviar sintomas ou comprada legalmente para uso recreativo. Aqui, a investigação tem um papel determinante e mostra que o uso médico de psicadélicos é segura.
Mas as pressões da indústria, farmacêutica e recreativa, existem, ao ponto de haver quem fale do negócio do novo ouro negro.
São dois assuntos distintos. No caso recreativo, os estudos mostram que o álcool e o tabaco, substâncias legais, são bem mais perigosos do que a canábis, que não o é. Por um lado, cada um tem o direito de decidir o que quer consumir, por outro, há sempre o risco de abuso e as políticas proibicionistas só agravaram o problema, mas são assuntos distintos.
O risco de abuso e de adição coloca-se sempre, argumenta quem questiona a legalização.
Veja os opiáceos, ilegais mas autorizados para uso médico: o potencial aditivo da morfina é grande problema, mas não se vai proibi-los para alívio da dor após uma cirurgia, por exemplo. O mesmo para as benzodiazepinas [calmantes], sob controlo internacional, pelo excessivo consumo e por criarem dependência. Sou médico e ajudo pacientes. Não é aceitável impedir o acesso a tratamentos promissores pelo receio de serem mal usados fora do contexto clínico.
Refere-se ao MDMA, que parece ter um nível de perigosidade muito baixo se comparado com outras drogas, as legais incluídas [estudo de David Nutt, publicado na revista Nature]?
Milhões de pessoas no mundo consomem ecstasy ao fim de semana com intuitos recreativos. Quero dizer com isto que estamos a estudar a segurança e a eficácia do MDMA em tratamentos médicos; em alguns deles, havia pessoas que tinham tido uma má experiência em contexto lúdico: não sabiam o que fazer sozinhas com o que vinha à mente [associado ao trauma].
Alguma ressalva a fazer ou mensagem para os decisores e cientistas na área da saúde mental?
Lembrar que existem riscos, é um erro presumir o contrário. A diferença é que desta vez estamos a fazer as coisas de forma diferente, a criar condições controladas para minimizar riscos e acrescentar benefícios seguros à vida de quem sofre imenso sem uma solução à vista.