O nome pode não lhe dizer grande coisa, mas Pedro Domingos é um tipo famoso. Pelo menos na área das tecnologias de informação, onde é uma referência internacional. Este português de 50 anos, licenciado no Técnico e professor de Ciências da Computação na Universidade de Washington, foi notícia por esse mundo fora. A razão deixaria qualquer um orgulhoso: o seu último livro, The Master Algorithm, lançado em setembro de 2015, foi recomendado por Bill Gates como leitura obrigatória para quem quer perceber o que se passa e o que vem aí na área da Inteligência Artificial.
Não é preciso ser o geek mais respeitado do planeta para saber que, na indústria tecnológica, a inteligência artificial é a área do futuro. E, dentro desta, há uma espécie de território sagrado que ocupa alguns dos maiores cérebros do mundo: a aprendizagem automática, “machine learning” na gíria tech. Na abordagem tradicional, dão-se instruções aos computadores para efetuarem uma determinada operação numa determinada situação. Aqui, a palavra de ordem é programar os computadores para recolherem informação e aprenderem com ela através de sofisticados algoritmos. Ou seja atenção ao verbo, a pensar como um cérebro humano faz, que induz além de deduzir. Uma máquina que se ensine a si própria e que, assim, seja capaz de superar largamente os limites do conhecimento humano.
O livro de Pedro Domingos versa precisamente sobre este território auspicioso, enumerando (para qualquer pessoa entender) as cinco correntes de investigação nesta área onde ele próprio é especialista e uma referência, capaz de abrir mundos até há bem pouco tempo apenas imaginados na ficção científica. Desengane-se quem pensar que esta é uma realidade longínqua: a aprendizagem automática nos computadores já está aí, a uso no dia a dia, em formas “simples” mas promissoras. Quando o Edgerank, o poderoso algoritmo do Facebook, escolhe as notícias que aparecem em primeiro lugar na sua timeline, aprendeu com as suas preferências. A última caixa automática Tiptronic da Porsche percebe quais são os padrões de condução do utilizador e adapta-se aos estilos individuais de cada um de forma a fornecer o perfil correto de equipamento a cada condutor. Quando a Amazon lhe recomenda um livro novo ou a Netflix uma série, fazem-no de acordo com o seu histórico de padrão de consumo.
Neste contexto, o algoritmo-mestre seria uma espécie de Santo Graal que todos os que trabalham nesta área procuram: um só algoritmo universal do qual “todo o conhecimento presente, passado e futuro poderia derivar”, explica Pedro Domingos.
Desde miúdo que mostrava interesse por várias áreas, recorda o irmão Tiago, cinco anos mais novo, também engenheiro. Seguir artes chegou a ser uma possibilidade. Mas no 10º ano venceu a eletrónica, o que o fez escolher a escola Afonso Domingos, em Lisboa. O facto de ser filho de Delgado Domingos, carismático professor do Instituto Superior Técnico, conhecido pela sua oposição à Energia Nuclear e falecido há dois anos, terá influenciado no momento de entrar para a universidade. Seguiu Eletrotecnia e Computadores e depois do mestrado embrenhou-se logo no admirável mundo da Inteligência Artificial. “Teve uma carreira brilhante desde o início. Com artigos publicados em importantes revistas”, recorda o atual presidente do Técnico, Arlindo Oliveira, que foi seu colega nos dois anos em que Pedro Domingos lecionou na escola de engenharia.
O sucesso deu nas vistas e os convites começaram a chegar, de todas as partes do mundo. Tornou-se inevitável mudar-se para a América, onde, nesta área em particular, tudo acontece primeiro. A Universidade de Washington, em Seattle, foi a escolha óbvia. Uma incubadora de tecnológicas, com alta concentração de génios por metro quadrado. É nesta cidade que fica a sede da Microsoft ou da Amazon. “Há um grande ecossistema de empresas e centros de investigação nesta área”, justifica.
Apesar deste caminho sem retorno, a nível profissional e mesmo pessoal é casado com uma americana de origem tailandesa e tem um filho vem com frequência a Portugal. Além da família, sente falta do “peso da História”. “Os americanos são extremamente práticos e voltados para o futuro, mas a cultura portuguesa tem uma textura e uma riqueza que não se adquirem em duzentos anos”, compara.
A favor do ‘open source’
Não é só o passado que o fascina. A ficção científica e as suas previsões sobre o futuro sempre funcionaram como uma fonte de inspiração para a malta que anda à frente do seu tempo. Na adolescência, Pedro Domingos foi grande consumidor dos livros de Isaac Asimov ou da saga de O Senhor dos Anéis. Aliás, o título do livro é inspirado na trilogia.
Hoje, arrisca dizer que a realidade vai à frente da ficção. “Como diz o Alan Kay [importante informático americano], a melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo. Mesmo assim, a ficção científica tem sido sem dúvida uma fonte de inspiração para a Inteligência Artificial. Por exemplo, as três leis da robótica do Isaac Asimov são frequentemente um ponto de partida para debates sobre como controlar as nossas criações tecnológicas”.
E controlo é um conceito importante ao longo do livro. Ao contrário dos profetas da desgraça, que apostam num mundo comandado por robôs, Pedro Domingos defende a supremacia da espécie humana. “Poderemos controlar o nosso ADN, aumentar a capacidade intelectual. Iremos tornar-nos numa espécie diferente, irreconhecível”, sustenta.
Também é muito provável que se fale de uma questão quente nesta área. O acesso livre. Nas páginas finais, deixa um apelo: “Se um dia inventar o algoritmo-mestre, por favor não corra a patenteá-lo. Disponibilize-o, colocando-o em código aberto.”
“O risco não é que os computadores se tornem demasiado inteligentes e tomem conta do mundo; é que eles são demasiado estúpidos e já tomaram conta do mundo”
Entrevista a Pedro Domingos, Professor de Ciências da Computação na Universidade de Washington
Já se tinha cruzado com Bill Gates antes? Como viu esta recomendação ao seu livro como sendo leitura obrigatória para compreender o mundo da Inteligência Artificial?
Não o conheço pessoalmente, mas já me cruzei com ele algumas vezes, tanto profissionalmente como por vivermos na mesma área de Seattle. O Bill sempre se interessou muito por Inteligência Artificial, e diz mesmo que um grande avanço em machine learning ou aprendizagem automática valeria dez Microsofts. Hoje a competição nesta área é intensa, e a Microsoft é uma das empresas de ponta. Um dos diretores da Microsoft recomendou o meu livro ao Bill, e ele gostou muito. A recomendação pública do Bill foi ótima, claro, porque ele é extremamente influente nesta área, e a recomendação ajudou o livro a ser conhecido.
Porquê fazer um livro de divulgação sobre um tema tão complexo?
A aprendizagem automática é hoje uma área que afeta diretamente a vida de todos nós, enquanto cidadãos, consumidores e profissionais. Os algoritmos de aprendizagem decidem que resultados de pesquisas na web recebemos, que filmes, livros e músicas nos são recomendados, e que tweets e updates no Facebook vemos. São parte integral dos smartphones e de sistemas como a Siri e Google Now; selecionam candidatos a empregos; decidem quem recebe crédito; investem na Bolsa; são utilizados por políticos para escolher que eleitores tentar influenciar; fazem diagnóstico médico; estão na origem dos casamentos em que os casais se conheceram via sites de encontros e muito mais. Portanto, todos nós precisamos de compreender a aprendizagem automática, para a utilizarmos melhor, e para evitar a concentração do poder nas mãos dos que a dominam. Isto não significa compreender os detalhes dos algoritmos, mas apenas ter uma ideia geral do seu funcionamento. É como um carro: só engenheiros e mecânicos precisam de saber como funciona o motor, mas os condutores precisam de saber como os utilizar.
Para um leigo, como explicaria as potencialidades da aprendizagem automática?
As tecnologias são como superpoderes: os aviões permitem-nos voar, os telefones permitem-nos comunicar à distância, os computadores amplificam a nossa memória e a nossa inteligência, etc. A aprendizagem automática é um novo superpoder, que nos permite prever o futuro e adaptar o mundo a nós sem que tenhamos que o programar ou construir explicitamente para esse efeito. Um dos seus limites é que algumas coisas são intrinsecamente imprevisíveis e, portanto, mesmo com infinitos dados não há algoritmo que as aprenda.
O que gostaria e prevê que ainda venha a acontecer, neste campo, nas próximas décadas?
Gostaria que o master algorithm fosse inventado, e penso que é bem possível que isso aconteça na nossa era. Este algoritmo-mestre é um algoritmo capaz de descobrir qualquer conhecimento a partir dos dados. É de certa forma semelhante ao que fazem os cientistas no seu dia a dia, mas numa escala muito mais vasta em termos da quantidade de dados que podem ser analisados e da correspondente quantidade de conhecimento descoberto. Em áreas extremamente complexas, como a biologia e a medicina, em última análise só com a ajuda da aprendizagem automática se podem resolver os grandes problemas, como curar o cancro.
Este algoritmo-mestre não é uma quimera como a pedra filosofal ou a imortalidade?
Quem sabe? Há muitos investigadores em biologia e medicina que pensam que a imortalidade não é uma quimera. Os algoritmos de aprendizagem que existem hoje são já algoritmos-mestre no sentido em que há provas matemáticas de que podem descobrir qualquer função se lhe forem fornecidos dados suficientes, mas a questão em aberto é como descobrir conhecimento com uma quantidade realista de dados e recursos computacionais. E, empiricamente, o cérebro humano e a evolução são algoritmos-mestre que existem já na natureza; resta “apenas” compreender como funcionam e programar os computadores para fazer o mesmo.
Esses são, de facto, dois dos principais paradigmas da aprendizagem automática que descrevo no livro. O algoritmo-mestre é para o raciocínio indutivo o que o computador é para o raciocínio dedutivo: uma máquina de uso geral, que não se restringe apenas a uma aplicação específica, em contraste com uma máquina de escrever ou uma calculadora. Há cem anos, a ideia do computador enquanto máquina de uso geral pareceria completamente fantástica. Por todas estas razões penso que não há dúvida que o algoritmo-mestre existe; a questão é se somos capazes de o descobrir com os nossos limitados cérebros humanos.
É um otimista. No seu livro, não teme que as máquinas capazes de aprender possam tomar conta do mundo e subjugar o homem. Porquê?
As máquinas são extensões de nós, projetadas e desenvolvidas por nós para atingir os nossos objetivos. Elas não têm vontade própria ou objetivos próprios; não são agentes independentes capazes de se voltarem contra nós, da mesma forma que o braço não se volta contra o cérebro que o controla. Mesmo que as máquinas sejam infinitamente inteligentes e para lá da nossa compreensão, nós controlá-las-emos da mesma forma que o nosso DNA, que é apenas uma molécula, nos controla a nós. É natural confundir a Inteligência Artificial com a humana, porque a humana é a única que conhecemos, mas na realidade elas são muito diferentes. A imagem que temos dos filmes de Hollywood, em que os robôs são basicamente pessoas mecânicas, é sedutora mas pouco realista.
Outros pensadores como Nick Bostrom (autor do outro livro recomendado por Bill Gates) é menos otimista. Onde divergem?
O Nick é um filósofo, e eu sou um engenheiro informático. O livro dele é muito interessante, mas é essencialmente um livro teórico, contemplando cenários que dificilmente se realizarão na prática. Por exemplo, o Nick preocupa-se com a possibilidade de uma máquina cujo objetivo é produzir clipes de papel destruir o mundo na sua procura de produzir mais e mais clipes. Mas na realidade é fácil impor limites a priori aos recursos que a máquina pode utilizar – isso faz-se todos os dias na indústria – e mesmo sem esses limites a máquina estaria em competição com milhões de outras máquinas, sujeita a polícia também ela dotada de Inteligência Artificial, etc. A Inteligência Artificial não é isenta de riscos – longe disso- , mas o risco principal deriva de os computadores ainda não terem senso comum e já tomarem toda a espécie de decisões importantes, como que pedidos de cartões de crédito são aceites e que indivíduos são considerados potenciais criminosos. Mas a forma de evitar os erros que os computadores cometem é torná-los mais inteligentes, não menos. O risco com a Inteligência Artificial não é que os computadores se tornem demasiado inteligentes e tomem conta do mundo; é que eles são demasiado estúpidos e já tomaram conta do mundo.
Na sua visão, como seria um mundo pós-algoritmo-mestre?
No mundo pós-algoritmo-mestre, a típica família da classe média tem um robô doméstico da mesma forma que hoje tem uma televisão e um carro. O cancro e todas as outras grandes doenças foram curadas, e quando surge uma nova doença a cura é rapidamente descoberta. Ninguém trabalha; as máquinas fazem funcionar e crescer a economia, e todos recebem uma mensalidade generosa do Estado, suficiente para viver melhor do que os ricos vivem hoje. As guerras infelizmente provavelmente não vão desaparecer, mas serão travadas exclusivamente por máquinas. Os nossos conhecimentos em todas as áreas da ciência serão muito mais vastos e profundos do que hoje. E a sociedade será mais humanista e espiritual, porque dará mais valor às coisas que não podem ser produzidas por máquinas.
Nunca pensou em saltar da investigação académica para o mundo empresarial, lançar uma startup e ganhar bom dinheiro com isso?
É uma possibilidade sempre presente, e tenho de facto várias ideias para potenciais empresas. Mas só quero fazer uma empresa que seja potencialmente a próxima Google ou Facebook, e a universidade é o lugar ideal para fazer a investigação capaz de conduzir a grandes avanços, livre da necessidade de produzir resultados a curto prazo que caracteriza a indústria.
(Artigo e entrevista publicados na VISÃO 1214 ,de 9 de junho de 2016)