Saiba quais as drogas psicadélicas que a medicina quer usar
Tudo tem o seu tempo. No universo científico, parece que é tempo de voltar às origens.
Ou de “voltar ao futuro”. A expressão é do polémico investigador britânico David Nutt, do Imperial College London, que tem boas razões para sorrir. O neurofarmacologista chegou a perder o cargo de consultor governamental para a área das drogas depois de ter publicado um artigo na prestigiada revista The Lancet, há quase uma década, cujos resultados o levavam a defender não apenas a reclassificação das substâncias ilegais menos perigosas, por exemplo, que o álcool como a afirmar que era preciso dar mais atenção aos seus efeitos secundários positivos na saúde mental. As decisões políticas que estão a ser tomadas nos continentes americano e europeu legitimam, em parte, a visão vanguardista de Nutt: a FDA (agência dos EUA que regula o setor dos medicamentos) autorizou o avanço de ensaios clínicos, de nível 3, com MDMA (ecstasy, a droga das raves) em psicoterapias assistidas de pessoas diagnosticadas com stresse pós traumático, o que significa que se está a um pequeno passo de se aprovar o medicamento; e a Alemanha legalizou o uso da canábis como fármaco paliativo em doenças graves (cancro, epilepsia e esclerose múltipla), desde que prescrito por médicos. A medida entra em vigor em março.
Deverá seguir-se a Itália, onde também decorrem ensaios clínicos.
Para o cidadão comum, a marijuana (canábis), os cogumelos mágicos (psilocibina) e a droga do amor (ecstasy) surgem associadas ao consumo recreativo. Porém, a evolução da neurociência e da medicina justificam o retorno das drogas psicadélicas ao meio laboratorial e clínico, onde estavam circunscritas há praticamente um século.
Assim foi com o MDMA, sintetizado pela farmacêutica Merck em 1913 e que chegou a ser informalmente usado em terapias de casal e com pacientes que sofriam de ansiedade e depressão, na segunda metade do século XX. O mesmo sucedeu com o LSD e a psilocibina, que saíram do laboratório para a rua, até regressarem à clandestinidade.
Agora que o uso clínico da canábis é permitido em 28 estados americanos e em 14 países europeus, entre os quais Portugal (apesar de, por cá, não serem comercializados fármacos em que a substância ativa é canábis), é tempo de “voltar ao trabalho”.
Ou seja, abordar as substâncias que alteram a mente sob o ângulo terapêutico. E operar mudanças legislativas em conformidade, já que desde a convenção de 1971 das Nações Unidas que estas drogas estão classificadas no grupo 1 (risco elevado para a saúde pública e com baixo valor terapêutico).
Após quase meio século de políticas proibicionistas e de propaganda “droga-loucura-morte”, estaremos a assistir a um novo paradigma científico e político, e a quebrar o tabu das drogas ilegais, ainda conotadas exclusivamente com a finalidade lúdica e manchada pelos danos associados?
ATIVISMO E BOM SENSO
Um dos lóbis europeus com mais força no campo das terapias psicadélicas é liderado pela investigadora e ativista inglesa Amanda Fielding, que comanda o think tank Beckley Foundation. Entre os argumentos usados, o mais forte assenta no facto de estas substâncias permitirem obter melhorias idênticas ou superiores às conseguidas com drogas legais para a depressão e a ansiedade, que implicam a toma diária e têm muitos efeitos secundários. O que parece estar em causa, a partir dos estudos que se conhecem, é a política de “dois pesos, duas medidas”, especialmente no alívio da dor: qual o problema em usar os psicadélicos de forma médica, se isso vem sendo feito com a morfina? A associação multidisciplinar para estudos psicadélicos (MAPS), que financia a fase 3 dos ensaios clínicos com MDMA, tem vindo a estudar o uso médico da substância em veteranos de guerra, vítimas de abuso sexual, polícias e bombeiros. Em 12 semanas de psicoterapia assistida com a toma do químico (em três das sessões), a severidade dos sintomas foi reduzida em 56% dos casos.
Michael Mithoefer, o psiquiatra que conduziu o estudo, afirmou ao The New York Times que o potencial de cura da droga é tão bom que ele deve chegar ao mercado em quatro anos. O tema vai ser debatido em abril, na conferência Psychadelic Science, em Oakland, na Califórnia.
Apesar de conhecido pela política de descriminalização bem sucedida, Portugal não está na rota dos ensaios clínicos com nenhuma destas drogas, seguindo o lema “esperar para ver”. A palavra a João Goulão, do serviço de adições e dependências (SICAD): “Para estas substâncias serem incluídas no arsenal terapêutico, é preciso mais evidências científicas dos benefícios e pareceres da Ordem dos Médicos.” Félix Carvalho, farmacêutico e secretário-geral da Eurotox (que agrega sociedades científicas de toxicologia europeias), acrescenta que é cedo para entusiasmos. “Alguns estudos também revelam potencial neurotóxico que pode levar à morte, ou apontam para os riscos a médio prazo, e todos têm de passar pelo crivo dos avaliadores das agências.” Por cá, não há qualquer registo de ensaios clínicos, embora estejam a decorrer alguns (com canabinoides e MDMA) noutros países da UE.
ERVA, REMÉDIO LEGAL, MAS…
O usos da canábis médica na Europa está longe de ser consensual. Apesar de aprovado em 14 países da UE, apenas está disponível em nove e, mesmo assim, com entraves. Uma investigação publicada pela universidade italiana de Salerno, há dois anos, salientou que os efeitos da planta são paliativos, mas não inócuos nem curativos. Porém, tal não impediu que socialmente se instalasse a ideia de que se é bom para tratar e o uso for descriminalizado, então também se pode consumir. Assim aconteceu em Espanha, na Catalunha, com a proliferação de clubes que começaram a ser uma porta para o mercado negro e levaram à intervenção do governo regional.
Na Itália, onde se prescreve há 10 anos hoje com menos burocracia e por médicos de família, foi preciso restringi-la apenas aos casos em que outras soluções se provassem ineficazes. Na Alemanha, o produto raramente é prescrito pelos médicos estatais e dificilmente pode ser pago pelos pacientes alemães (custa entre €800 e €1000 mensais) que reúnem os critérios para o seu uso. No Reino Unido, os serviços de saúde permitem o acesso restrito ao fármaco, mas os médicos raramente o prescrevem.
Estamos a falar de um spray bucal de THC e cabanidiol (CBD) que evita os efeitos psicoativos, mantendo os terapêuticos, destinado essencialmente a minimizar sintomas relacionados com a rigidez muscular na esclerose múltipla. O fármaco tem autorização de introdução no mercado português, mas, segundo o Infarmed, não é comercializado e a discussão sobre este assunto, na Ordem dos Médicos, é aparentemente inexistente.
Tal não impede que, em Évora, exista uma entidade licenciada para “cultivo, extração e produção de medicamentos” a partir da Cannabis Sativa L. Para a época de cultivo de 2016, a agência reguladora do Ministério da Saúde estima uma colheita de 21 toneladas (em 8,75 hectares), destinadas à exportação para. o Reino Unido, estando em curso o licenciamento para instalação de unidade industrial de extração e transformação da planta em produto final junto do IAPMEI.
Em declarações escritas à VISÃO, a associação Comunidade Cultivo em Portugal considera que é tempo de reverter a injustiça praticada contra a planta criminalizada nos EUA em 1937, “contra a recomendação da American Medical Association”. Por cá, temos a nosso favor o clima e o número de horas de sol anuais, que atenuam a destruição por fungos e bolores causados pela chuva, humidade e frio: “A produção de flores de canábis tem muitos pontos em comum com a de uva para vinho e Portugal beneficia das condições ideais com vista à produção exterior de alta qualidade.” O negócio (de abastecimento da indústria farmacêutica) afigura-se promissor e a Privateer Holdings, o maior grupo privado do mundo dedicado a este mercado, sabe disso.
O CEO, Brendan Kennedy, esteve na Web Summit realizada em Lisboa e manifestou o seu interesse em ter unidades fabris em solo lusitano, tal como Catherine Jacobson, que lidera a investigação na canadiana Tilray, produtora de canábis para fins medicinais.
INOVAR SEM PREJUDICAR
Do laboratório à prescrição médica vai um passo. A decisão da americana FDA de aprovar a última fase de ensaios clínicos com substâncias classificadas como controladas foi um marco. “Mesmo que o ganho encontrado seja pequeno, será uma solução eficaz se outras não funcionarem”, avança Zachary Mainen, neurocientista na Fundação Champalimaud. Em ciência, “não tem sentido dividir drogas em função do uso recreativo ou terapêutico, o que conta é o potencial aditivo e as reações adversas”. No caso da psilocibina ou do MDMA, este ponto não é crítico. Pelo que se conhece do seu consumo ilegal para fins lúdicos, “já se teria sabido se os riscos fossem substanciais”. O mesmo não se pode dizer dos canabinoides (o skunk em particular, pelo crescente teor de THC) que “são dos mais potentes desorganizadores mentais que se conhecem”, assegura o médico Álvaro de Carvalho. O diretor do programa nacional para a saúde mental lembra que “é cada vez mais comum encontrar jovens internados em psiquiatria por surtos psicóticos, cuja relação com o consumo de THC está demonstrada”.
Contudo, é bom ter presente o lema de Paracelso: do remédio ao veneno vai uma questão de dose. Tiago Reis-Marques, psiquiatra e docente do instituto de psiquiatria do King´ s College, em Londres, que investiga os efeitos dos psicotrópicos a nível mental em pequenos grupos de doentes, reconhece que, apesar de o uso de químicos para outro fim que não o inicial estar em voga, não existem estudos suficientes com eficácia comprovada na patologia psiquiátrica. De resto, “70% das moléculas que apresentam dados promissores em ensaios clínicos iniciais acabam por falhar sem se traduzirem em novas terapêuticas”.
Num registo idêntico, Luís Câmara Pestana, especialista em psiquiatria e farmacologia clínica, informa que “a prescrição de um tratamento off-label (indicado para outro fim que não aquele em que tem garantida a segurança e eficácia) tem implicações éticas relevantes, havendo ensaios que são interrompidos por os riscos de toxicidade serem consideráveis e não garantirem a segurança”.
A regulamentação é o grande desafio. Primeiro autor de estudos com THC no centro de neurociências e biologia celular na faculdade de medicina da universidade de Coimbra, o investigador húngaro Attila Köfalvi defende que “o potencial da marijuana com eficácia moderada na esclerose múltipla e dor crónica não justifica a legalização para fins recreativos”.
A questão é complexa. Basta pensar que, a partir de março, os médicos alemães vão ter de equacionar “em que doenças e a que pacientes prescrever, a dosagem e modo de consumo mais eficaz, contraindicações e casos em que receitar não vale a pena”.
Até esse dia chegar, fica no ar uma questão que ultrapassa a científica e entra no campo ideológico. Porque será que sempre houve cientistas e médicos interessados na experimentação de drogas que alteram a consciência? O investigador e psicoterapeuta José Pinto-Gouveia, da Universidade de Coimbra, deixa uma nota final à navegação (que é como quem diz, a todos nós): “A história mostra-nos que não há paraísos artificiais isentos de infernos e a ciência comprova que meditar, por exemplo, rejuvenesce o cérebro e não tem potencial de adição.”