Há pouco mais de três anos, Carlos Andrade, presidente da Fundação António Silva Leal, começou a receber sinais de que algo estava a mudar nos relatos sobre agressões na intimidade. “Foram chegando ao nosso conhecimento, com mais frequência, casos de homens vítimas de violência doméstica e começamos a perceber que a realidade não era exclusivamente feminina”, explica o responsável daquela instituição de solidariedade social à VISÃO. No último ano, segundo dados oficiais e da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), as denúncias de maus tratos por parte de vítimas do sexo masculino rondaram os 15 por cento, o mais alto valor de sempre, em mais de 26 mil queixas apresentadas a nível nacional. “Já tínhamos sugerido ao anterior governo, no âmbito da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), a abertura de uma casa abrigo para homens vítimas mas, na altura, responderam-nos que isso não era urgente”, esclarece Carlos Andrade.
Agora vai ser uma realidade. Depois de formalizada a assinatura da carta de compromisso com o Governo esta quarta, 28, a casa abrigo abrirá a 1 de outubro no Algarve, com capacidade para dez homens. Tem um financiamento assegurado da ordem dos 100 mil euros provenientes das receitas dos jogos sociais. É um projeto-piloto, que será reavaliado daqui a um ano. Num universo de 40 casas abrigo atualmente destinadas a mulheres vítimas de violência doméstica, esta é a primeira direcionada a “inquilinos” do sexo masculino. “Quando voltamos a colocar a questão a este Executivo, foram altamente sensíveis e admitiram a necessidade de, também nestes casos, promover uma resposta formal em condições de igualdade”, relata o presidente da Fundação António Silva Leal.
A própria secretária de Estado da Cidadania e Igualdade admitiu à VISÃO ter feito o seu próprio caminho nesta matéria. “Fiz uma reflexão e também evoluí no meu pensamento sobre os homens e a violência”, explica Catarina Marcelino, lançando a pergunta: “O que acontece atualmente a um homem vítima de violência se precisar de uma resposta residencial? Ou vai para uma pensão ou vai para uma instituição de “sem abrigo”. E isso não é uma resposta adequada”, assume. Por isso, quando aquela instituição lhe propôs uma solução, a resposta foi imediata. “Vivemos numa sociedade em que não é suposto os homens serem vítimas. As representações sociais condicionam-nos. Mas enquanto decisores políticos, temos o dever de não fechar as portas a todos aqueles que precisam da nossa ajuda”, refere a governante, acentuando o facto de este projeto ter sido “bem recebido” pelas organizações de mulheres com trabalho nesta área. De resto, explica, há um trabalho geracional a fazer: “Vamos atuar na área da violência no namoro. Estas coisas não acontecem apenas aos 40 anos, que é a idade média da vítima e do agressor. Estamos a falar de pessoas que nasceram e viveram em democracia e há aqui algo em que falhámos, enquanto sociedade”, admite.
Já este ano, a APAV lançou uma campanha exclusivamente destinada a homens vítimas de violência doméstica com o objetivo de quebrar “o ciclo da vergonha”, uma vez que os indivíduos do sexo masculino demoram, no geral, mais tempo a quebrar a barreira do primeiro pedido de ajuda. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna e os dados recolhidos pela APAV, Lisboa, Porto e Faro continuam a ser os distritos onde foram registadas maior número de queixas, grande parte das quais tendo o conjugue ou ex-conjugue como agressor.
Nem mais uma vítima sem resposta
A secretária de Estado visitou, entretanto, a casa abrigo e ficou “bem impressionada” com as instalações: “Vem responder a uma necessidade, faz falta. Não sabemos o que vai acontecer, ninguém sabe, mas a entidade que acolherá homens vítimas tem uma equipa técnica muito boa”, reconhece a secretária de Estado. “É importante o País ter uma resposta para este problema”, concorda Carlos Andrade. “Até por vergonha, os homens não procuram este tipo de solução. E se o fazem é já em situação de desespero. Quando começamos a notar isso, pensámos numa resposta. A igualdade de género está na lei e não é só a favor das mulheres”, resume o presidente da Fundação António Silva Leal.
A abertura desta casa abrigo não encerra as soluções do género que o Governo está a preparar para outro tipo de vítimas. Para a comunidade LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros e Intersexuais) vai abrir, até ao final do ano, uma resposta em Lisboa, protocolada com a associação ILGA. Em Matosinhos, também haverá uma, em parceria com a Associação Plano i. Na área da deficiência, está igualmente prevista a abertura de uma residência de acolhimento para mulheres deficientes. “Apesar do grande investimento do anterior governo nas casas abrigo, verificámos que havia áreas sem resposta”, explica Catarina Marcelino. “Tudo isto são experiências piloto, mas estou muito curiosa para perceber o que sairá daqui”.