Encham-se os olhos de paisagens e a cabeça de pessoas. Por estas páginas há montanhas com vinhas por ali abaixo em socalcos, oliveiras e sobreiros que desenham caminhos horizontais nas curvas, o branco de uma igreja a sobressair numa aldeia. Há um rio que brilha lá ao fundo, ondulante como uma serpente de prata, metáfora ridícula só para quem nunca viu o Tua numa manhã de sol. E há pessoas como Maria Fernanda, por quem vamos começar este relato, tem de ser.
Entrámos-lhe em casa da segunda vez que descemos ao Amieiro, decididas a conhecer melhor esta terra de ferroviários na margem esquerda do rio, a 14 quilómetros de Alijó. Na primeira incursão, uns dias antes, uma trovoada afugentara-nos depois de irmos ao sítio onde existiu um teleférico construído pelos habitantes que assim chegavam num instante à linha de comboio na outra margem. Ficava “lalém”, tinham-nos indicado vagamente, apontando para um monte à esquerda da povoação. À segunda tentativa, era cedo mas já fazia calor quando estacionámos o carro num larguinho a meio da povoação e ouvimos um homem dizer, em tom de gozo: “A aldeia ainda não está morta.”
A esta frase seguir-se-ia uma pergunta – “Aceitam um café?” – e, uma dúzia de degraus acima, sentávamo-nos na cozinha de Alcino Meireles e Maria Fernanda Heleno, a beber nescafé e a comer bombons de praliné trazidos por uma das filhas, que mora em França. A dona da casa estava em pijama mas recebeu-nos de sorriso e piada pronta. Mais de duas décadas emigrada na Alemanha e nos Estados Unidos deram-lhe um à-vontade invejável.
Ao fim de uns goles de café instantâneo ficamos a saber que ele tem 80 anos, ela 77, casaram há 58 e nenhum dos cinco filhos quis ficar a viver na aldeia. A maioria dos seus 50 ou 60 habitantes já atingiu a idade da reforma; só mesmo nas férias é que se veem crianças e adolescentes. Sobram viúvas, que se entretêm a tratar das roseiras por estes dias, lindas, e falta um café de jeito. Aquele que existe é explorado pela junta de freguesia, costuma abrir ao meio-dia e ficar aberto noite fora, mas são tão raros os homens capazes de sair de casa depois do jantar que Alcino desistiu de lá ir. “Às vezes, nem se arranja um parceiro para jogar à sueca”, desabafa o antigo guarda-rios feito agricultor a tempo inteiro.
Alcino trinca mais um chocolate francês e Maria Fernanda levanta-se para mostrar uma casa do outro lado do largo. “É nossa”, vai dizendo, “e eu já teria ali feito um café se o meu marido gostasse de negócios”. O seu café haveria de fazer com que os turistas que passam de raspão depois de descerem da capela de Nossa Senhora dos Prazeres, no Monte da Cunha, se demorassem na aldeia. E daria jeito aos muitos mais que se diz que irão desembarcar quando a Barragem de Foz Tua encher e os barcos começarem a aparecer. Mas esse dia vem longe, calcula, e por isso não resiste à ironia: “Ainda tenho de ser eu a arranjar um rabelo para passear turistas.”
Uma capela com pinturas naÏfs
Hoje, chega-se facilmente de carro ao Amieiro – para quem vem do Porto, fazendo pontaria a Alijó, a vila mais próxima, é hora e meia desde que abriu o túnel do Marão; depois, atravessa-se S. Mamede de Ribatua e é quase sempre a subir. Mas até ao início dos anos 70 não havia caminho. Se fosse preciso ir a Alijó, só a cavalo ou a pé, numa caminhada que demorava mais de uma hora. Os comboios da Linha do Tua, que passavam na outra margem até 2008, eram o melhor meio de transporte.
Antes do teleférico, e antes ainda da ponte que seria levada por uma enxurrada em 1985, atravessava-se o rio num barco manobrado pela família Calisto. Pagava-se uma avença à junta e o valor fixava-se conforme a frequência e a carga. Dependia-se muito do apeadeiro de Santa Luzia ali defronte – até para chamar o médico, ia-se até lá para usar o telégrafo, conta Maria Fernanda, que se lembra bem de ver o dr. Adolfo Mariz chegar de barco e subir de burro.
Fora do verão, a travessia não era pera doce, imagina-se ao ver hoje o Tua correr caudaloso entre as fragas depois de ter chovido semanas a fio. Foi sempre um rio perigoso, com remoinhos provocados pelas passagens de água por baixo dos penedos.
O barulho é tão forte que se ouve da varanda de Margarida (Guida) Alves, no fundo do povo. A vista, excelente, será excelentíssima quando o rio selvagem e rápido se transformar num lago altaneiro, diz a viúva, de olho na mudança. “Se a água trouxer mais pessoas, vai ser bom para nós.”
Os laços da população do Amieiro com o Tua são estreitos, já se percebeu. Mas percebe-se melhor se acrescentarmos que, noutros tempos, ele servia para tomar banho, lavar roupa, pescar (junto ao açude) e fazer o que se costuma fazer numa retrete. Dentro em pouco, o rio que serpenteia lá em baixo subirá tanto que irá cobrir o caminho estreito na outra margem onde até há uns meses assentavam as travessas da linha férrea desativada. Entre o paredão da barragem e a estação de Brunheda, serão 16 quilómetros submersos, tendo sido demolidos cinco apeadeiros pelo caminho. Do lado da aldeia, até aos 171 metros acima do nível do mar, já se foi parte das vinhas, dos olivais, dos laranjais e das hortas como as de Guida ou de Hermínia Gordinho.
“Ia todos os dias granjear lá em baixo. Tinha batatas, tomate, pimento, feijão, cebola”, enumera Hermínia, que encontramos a caminhar entre os terrenos que lhe sobraram fora da cota de expropriação e os quatro pequenos galinheiros de onde sai o cacarejar de 22 galinhas, metade delas poedeiras. As galinhas são o seu maior entretém, além das rosas e da capela de Nossa Senhora da Conceição, que pertence à família Noronha, o que sobra da quinta onde trabalhou 46 anos. A capela já não tem imagens, mas o altar e as pinturas naïfs do teto valem uma visita.
‘Ou rua ou Tua’, dizia-se na CP
Hermínia é viúva de um ferroviário, uma entre muitas na aldeia. Os caminhos de ferro foram sempre o grande empregador da zona, por isso ela mostra alguma irritação quando recorda o fim da Linha do Tua, depois de dois desabamentos de terras, em 2007 e 2008, terem provocado quatro mortes. “Só houve acidentes quando eles pensaram na barragem e deixaram de fazer manutenção”, acusa, afastando o chapéu de palha para coçar a cabeça. “Para a gente, fazia mais jeito o comboio do que a barragem…”
O vizinho Arsénio Quintas teria gostado de a ouvir. Trabalhou quase 40 anos como chefe de estação e encarregado de apeadeiro nesta Linha que nas cidades se olhava como o degredo. “Ou rua ou Tua”, ameaçava-se quando se queria castigar um funcionário.
Agora que está reformado, Arsénio tem mais tempo para se dedicar à agricultura e aos negócios da cortiça. Quando pensa na Barragem de Foz Tua, pensa que as pessoas devem estar preparadas para as evoluções, mas ninguém lhe tira da ideia de que ela não beneficiará a sua aldeia nem o resto da região. “A luz não vai ficar mais barata”, lembra. Mas pior, acredita, foi a morte do comboio. “Daqui sempre se despachava um cestinho para um familiar no Porto…”
Tinha de ser com produtos da terra porque lojas nunca houve. À saída, ainda seguimos o som da buzina da carrinha do Pão do Tua e compramos biscoitos de azeite e laranja ao Iulian, um romeno de 26 anos, há 8 em Portugal. Uns dias antes, na vizinha Safres, éramos surpreendidas pela música da camioneta do sr. Moutinho, “o piteiro”, com um carrego de frangos, coelhos e ovos capaz de tirar da toca meia dúzia de habitantes de uma aldeia-fantasma. Os ovos eram de aviário, uma pena, mas calham bem a quem não tem meio de transporte para sair da aldeia.
Aqui as distâncias não se medem aos quilómetros. Circular pela região do Tua obriga a subir e a descer montanhas, e a cruzar o rio mais do que uma vez, mas a recompensa está na paisagem que se intromete a cada curva da estrada. Vamos distraídos e – bang! – pare-se aqui o carro porque esta fotografia vai ficar ainda mais fantástica do que as anteriores.
O susto acontece quando vemos pela primeira vez o paredão da barragem que, em cinco anos, se ergueu na garganta mais fina do rio, a chegar ao Douro. Mais tarde, veremos como é ainda mais impressionante de noite, as luzes do estaleiro a dar-lhe um halo fantasmagórico. Uma comporta com 108 metros de altura, já tínhamos lido; num arroubo de fantasia, apetece ser gigante e tirá-la com um puxão.
Vêm aí os achigãs?
Quem já começou a receber a última tranche de dinheiro das expropriações ficou a saber que a EDP quer começar a encher a albufeira ainda este mês. Não consegue prever com exatidão quanto tempo irá demorar a alagar os terrenos e fragas, mas arrisca que não será muito. Este inverno, a água quase saltou o paredão e atirou contra o betão todo o lixo que não tinha sido removido depois do desbaste das margens, iniciado em outubro.
Uma vez atingido o chamado Nível Pleno de Armazenamento, serão 420 hectares inundados, acabando-se com a parte de canhão selvagem do rio que hoje segue sinuoso até Brunheda. Aí, o Tua alarga, os terrenos estão quase ao nível da cota máxima (170 metros), e a linha férrea mantém-se como dantes. Mas como a albufeira irá estender-se ao longo de 27 quilómetros, até à freguesia de Freixiel é certo que as águas hoje rápidas vão dar lugar a um lago.
De Brunheda, enquanto o comboio não recomeça as suas viagens para norte, ainda é possível caminhar pela linha até ao Cachão. Daí para a frente, por €1,70, o metro de superfície leva os passageiros até Mirandela. Mais interessante em termos paisagísticos é o caminho inverso, de Brunheda para sul. Embora os túneis já tenham sido emparedados, ainda se consegue percorrer parte da linha agora só coberta de pedras. Uma das entradas mais fáceis, por estes dias, é pelas Termas de São Lourenço, um lugar abandonado que ainda atrai gente interessada nas propriedades curativas das suas águas sulfurosas.
O cheiro a enxofre não afasta Abel Marialva, que mora em Vila Nova de Gaia mas conhece bem esta zona porque nasceu em S. Mamede de Ribatua. Todos os anos, instala-se uma semana nas velhas termas por causa da artrose da mulher. Os dois arrendam um quarto com serventia da cozinha, numa casa que já foi albergaria, e ali ficam quase isolados. Só em junho é que a Câmara da Carrazeda de Ansiães cuida para que se deem banhos e hidromassagens, sob acompanhamento médico.
Encontramos Abel no tanque onde alguém colocou flores artificiais numa imagem de São Lourenço, descalço na água fumegante. “Parece que sai do cilindro!”, compara. Rimo-nos com ele, mas o vapor é tanto e tão malcheiroso que só queremos sair dali rapidamente. E saímos, descendo rumo ao rio. Ele vai castanho da chuva da véspera, o barulho da água a bater nas pedras impressiona. Dá para perceber por que tanta gente usa a expressão “natureza em estado bruto”. Se fosse fim de semana, era certo que encontraríamos grupos de amigos a fazerem as suas despedidas a esta parte da Linha do Tua.
Mais acima, o rio parece outro. Continua rápido, mas alarga e nas margens veem-se vestígios dos socalcos das vinhas expropriadas e das azenhas arrasadas para dar lugar à futura albufeira. A jusante dos açudes, se já fosse verão e as águas estivessem mais paradas, seria bom para nadar. Aqui e ali, surgem pequenas línguas de areia e fragas onde os pescadores se põem à coca da boga e do barbo.
São peixes que não resistem aos morcões, as pequenas larvas de mosca, ensina Luís, funcionário de uma área de serviço entre Mirandela e Vila Real nessa manhã a aproveitar a folga para ver como está o rio junto a Sobreira, que já pertence a Murça. No domingo, 29, a aldeia recebe um concurso de pesca desportiva organizada pelo Inatel, e ele costuma ir mais para norte, onde as águas são menos mexidas. Em cinco minutos, vemo-lo apanhar meia dúzia de barbos pequenos bons para fritar, como já tínhamos experimentado no restaurante Calça Curta, junto à estação de Foz Tua, de frente para o rio Douro. A primeira hora junto ao açude rendera-lhe quase dois quilos de peixe. Com o tempo virá muito achigã, que é bicho de barragem.
Sobreira é a aldeia onde vive Pedro Duarte, o agricultor-ativista, de 37 anos, que Jorge Pelicano, autor do premiado Páre, Escute e Olhe, sobre a Linha do Tua, escolheu como personagem principal de um dos quatro microdocumentários que compõem O Último Ano do Tua, uma campanha de sensibilização paga pela Herdade do Esporão. Nesta empresa vinícola alentejana, que também tem uma quinta no Douro, acredita-se que enquanto não vier a água ainda vale a pena lutar para travar a barragem que irá transformar irreversivelmente a região e, com grande probabilidade, as vinhas e o vinho.
Ainda será possível travá-la?
O Esporão pertence à Plataforma Salvar o Tua, uma associação de defesa do ambiente criada há três anos por organizações locais e ambientalistas. No site ultimoanodotua.pt, além dos filmes de Pelicano (A Última Vindima, A Última Colheita, A Última Descida e A Última Caminhada) existe uma carta para enviar à UNESCO, alertando a organização que atribuiu a classificação de Património Mundial da Humanidade à região Demarcada do Alto Douro Vinhateiro para a necessidade de parar imediatamente a construção da barragem. Até esta semana, já seguiram mais de 22 mil cartas.
Encontramos Pedro Duarte no Café Avenida, logo abaixo da sua casa. Uma sorte porque não usa telemóvel e passou as primeiras horas da manhã a sulfatar as vinhas, quase todas da casta Rabigato. Já é a terceira volta este ano e lá mais para a tarde irá pôr herbicida, “para prevenir o que aí vem”, explica. “Com a humidade da barragem, a uva fica mais cheia mas também vamos ter de usar mais sulfato e herbicida.”
Uma das paredes da sala principal do café encontra-se tapada por uma fotografia da praia fluvial da Sobreira. A praia nunca foi registada, mas estava sempre cheia no verão, e todos os anos era montado um barzinho. Nada na fotografia lembra o que acabámos de ver junto ao rio. Desapareceram as árvores e os arbustos que iam até à água, resta um amontoado de pedras onde antes se erguia um moinho e é preciso esquecer “a açude” que os miúdos da aldeia usavam para passar a pé para a outra margem.
Pedro Duarte fala na represa no feminino e parece que essa simples troca empresta mais emoção ao seu discurso. “O amor que tínhamos pelas coisas… É um pedaço de mim que está aqui. Custou-nos cada árvore cortada”, diz, “e vai custar-nos a liberdade perdida de usar a açude”. Mais ainda vai custar à centena e pouca de habitantes da Sobreira, 35 deles jovens e crianças, verem o “potencial enorme” da aldeia acabar “num charco de água”, lamenta.
Ali, como noutras aldeias da região, o que dá o dinheiro é o vinho e o azeite; as hortas são para consumo próprio. O futuro passaria pelo turismo, acreditava Pedro, oitavo filho de agricultores modestos, criado pelos padrinhos que eram donos de vários hectares de terreno (quase quatro deles agora expropriados). “O turismo planeado é de passagem. Quando era pequenino, via passar o comboio antigo e dizia-lhe ‘Adeus’. Vamos fazer o mesmo aos barcos.”
Crescemos a ouvir a frase “Para lá do Marão, mandam os que lá estão”, mas por estes dias a sensação é de que quem mora junto ao Tua manda muito pouco. Nem por isso Pedro Duarte cala o que pensa. “Se calhar sou um revolucionário, não sei. O que sei é que um dia os meus filhos [de 8 e 16 anos] vão poder dizer: ‘O nosso pai lutou por isto’.”