Contas bancárias com fundos duvidosos, arresto de bens pelo Fisco por acumulação de dívidas, vendas obscuras de ações, amigos que depressa passaram a arqui-inimigos – há um pouco de tudo na história de José Veiga que, na sequência da operação Rota do Atlântico, da PJ, o juiz de instrução Carlos Alexandre colocou em prisão preventiva na segunda-feira, 8, por suspeitas de corrupção no comércio internacional, tráfico de influências, fraude fiscal e branqueamento de capitais, cujo epicentro está em negócios milionários com a família presidencial do Congo Brazzaville.
Do ‘amor’ ao ódio de Pinto da Costa (e vice-versa)
O presidente do FC Porto deixou-se encantar, a partir da década de 1980, por um desenvolto rapaz nascido em Carrazeda de Ansiães, que emigrara com a família para o Luxemburgo ainda pequeno e que, no Grão-Ducado, enquanto ajudava a pagar as contas domésticas pintando carros numa oficina, e à noite estudava para concluir o 9.º ano, fundou ali um clube em honra dos dragões, a sua grande paixão. Pinto da Costa, mais do que a mão, deu-lhe um braço inteiro: referenciou-o a Joaquim Oliveira, para que este entregasse a Veiga a liderança da Futeinveste, e até o galardoou com um Dragão de Ouro. Apenas dois anos depois, em 1994, emancipou-se e, para óbvio desagrado de Oliveira, agarrou na carteira de clientes que tinha na Futeinveste e avançou para a sua própria empresa de agenciamento de futebolistas, a Superfute. Conseguiu logo concretizar dois bons negócios: levou Fernando Couto do FC Porto para o italiano Parma por €3,1 milhões, e Paulo Sousa do Sporting para a Juventus de Turim por €2,3 milhões, sendo este último escondido por Veiga algures no Algarve, a salvo de pressões dos dirigentes de Alvalade para que recusasse a oferta. Nada mau para começo de carreira, se atendermos a que, à época, o empresário já encaixava, por norma, 10% do valor da transferência.
Mas cedo José Veiga mostrou o seu carácter de sangue quente. Em 1998 tratava da mudança de Sérgio Conceição do Porto para a Lazio de Roma, quando Pinto da Costa se lhe atravessou no caminho, para lhe travar o passo acelerado em que já ia. O negócio seria finalizado por um empresário concorrente, Luciano d’Onofrio. Veiga respondeu à traição com a contratação, para a Superfute, de Alexandre Pinto da Costa, o que levou ao corte de relações pessoais entre pai e filho. O patriarca portista, atualmente com 78 anos, e o desenvolto rapaz de Carrazeda, hoje com 52 anos, tornaram-se inimigos para a vida.
A vias de facto, mesmo, José Veiga só chegaria, ao que se sabe, com o seu grande rival Jorge Mendes, o superempresário (de Ronaldo e Mourinho, por exemplo) que daria cabo da Superfute. Em 2002, no aeroporto de Lisboa, pegaram-se à pancada, após desembarcarem do avião que, por coincidência, os transportou a ambos de Milão. Bastaram uns piropos mútuos para que a cena de pugilato começasse. Não há notícia sobre quem deu ou levou mais murros. Como resultado, testemunhas só atestaram que os preciosos telemóveis de um e de outro ficaram fora de combate. Nota de rodapé: Veiga foi o primeiro empresário de Ronaldo, que o trocou por Mendes…
‘Damásio amigo, conto contigo’
Em 2003, José Veiga dizia que precisava de controlar um clube para ter uma montra dos futebolistas que representava, com vista a colocá-los noutras paragens em bons negócios. Serviu-lhe para o efeito o amigo Manuel Damásio, que lhe vendeu o pacote de ações que possuía, a troco de €766 mil euros, e de que o empresário necessitava para chegar aos 70% da SAD (Sociedade Anónima Desportiva) do Estoril-Praia, direta e indiretamente (aqui através de duas empresas, uma das quais a Superfute, cotada até na Bolsa livre de Paris). Agora, passados pouco mais de 12 anos, aquele ex-presidente do Benfica viu o seu escritório, em Cascais, ser alvo de buscas, na operação Rota do Atlântico, por suspeita de alegadamente branquear verbas obtidas por Veiga nos seus negócios congoleses sob investigação, no caso, supostamente, através da Ónus, empresa de investimentos imobiliários que junta, como sócios, Manuel Damásio, Godinho Lopes, antigo presidente do Sporting, e o brasileiro Filipe Resnikoff.
Mas as ações compradas por Veiga a Damásio naquele dezembro de 2003 trariam também problemas. Em janeiro de 2006, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) questionava a rápida venda de uma participação de 37% do capital detido por Veiga na SAD do Estoril-Praia, em 2004, a duas sociedades de direito britânico. A CMVM alegava a “falta de transparência” da transação, por nunca ter sido cabalmente esclarecida a identidade dos donos dessas sociedades inglesas. A polícia da Bolsa inibiu mesmo os direitos de voto inerentes às ações em causa. Mas a verdade é que a venda seria concretizada. Quando um banco luxemburguês, num arresto de bens contra José Veiga, por elevados créditos não pagos, tentou encontrar as ações do empresário na SAD do Estoril-Praia, deparou-se com uma mão cheia de nada. Lá iremos.
‘Phishing’ à luxemburguesa
Em setembro de 2000, José Veiga abriu várias contas no Dexia-Banco Internacional do Luxemburgo. Uma em seu nome, outra em seu nome e no da sua mulher, sendo ainda último beneficiário de mais cinco contas de outras tantas sociedades. De junho de 2002 a maio de 2003, seriam creditados, de forma fraudulenta, cerca de €1,5 milhões nessas contas. Descoberto o esquema pelo banco, Théo Malget, gestor de conta de Veiga no Dexia, confessá-lo-ia em tribunal. Malget disse que levantava montantes de outras contas, sem autorização dos respetivos titulares, e sem conhecimento do Dexia, e que desviava as verbas para as contas relacionadas com José Veiga.
O banco luxemburguês assumiu as responsabilidades financeiras perante os clientes lesados, e avançou com uma providência cautelar de arresto de bens do devedor, Veiga.
Em Lisboa, o empresário não admitia a existência da dívida, mas em novembro de 2006 uma juíza do tribunal de Cascais concedeu razão ao Dexia e decretou a respetiva penhora. Como nada havia em nome de José Veiga ou da sua mulher, foi arrestado o recheio da residência do casal em Cascais, operação acompanhada em direto por câmaras de TV e repórteres-fotográficos. Furibundo, Veiga dizia estar em curso uma cabala contra si. Pouco antes, já fora alvo de uma penhora feita pelo Fisco português. É o que se segue.
2006, o ‘annus horribilis’
José Veiga tocou o céu quando conseguiu, em 2000, a transferência de Luís Figo, do Barcelona para o Real Madrid, por €37 milhões, e de Zidane, em 2001, da Juventus para o clube galáctico, por €75 milhões. Também trouxe, em 2001, Mário Jardel, do Galatasaray para o Sporting, por €5 milhões, e levou, em 2002, Petit, do Boavista para o Benfica, por €3 milhões, Tiago, do Braga para o clube da Luz, por €2,5, a que se somaram, ainda para o plantel encarnado, Geovanni e o malogrado Féher, entre outros. Era o dono daquilo tudo e o presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, em junho de 2004, apresentou na Luz José Veiga como diretor-geral da SAD do clube e seu braço direito. Houve conquistas: o Benfica ganhou o campeonato nacional (época 2004/2005), após um jejum de 11 anos, e uma Supertaça (2005/2006). Foi responsável direto pela contratação dos treinadores Giovanni Trapattoni (o técnico da equipa campeã) e Ronald Koeman (que fez uma boa campanha na Liga dos Campeões, com vitórias sobre o Manchester United e, por duas vezes, o Liverpool). Mas também trouxe para a Luz 32 futebolistas, metade dos quais corresponderam a outros tantos falhanços.
Até que, em novembro de 2006, ao cabo de duas semanas terríveis, Veiga caiu em completa desgraça, sendo obrigado a demitir-se do cargo no Benfica, que exerceu durante dois anos e quatro meses, com um salário de €18 mil mensais. Antes do humilhante arresto feito pelo banco Dexia, já fora penhorado pelo Fisco, que lhe atribuía, à época, dívidas superiores a €2,5 milhões, por incumprimentos no pagamento de IVA e IRC no período entre 1997 e 2000. Foram-lhe confiscados 510 mil títulos da Benfica SAD, ações da SAD do Sporting avaliadas em €200 mil, do FC Porto (980 títulos), da Cimpor, da EDP, o camarote que tinha no estádio da Luz e equipamentos de escritório. Também um terço do seu ordenado no Benfica estava penhorado desde 2005.
Sempre efervescente e desconfiado, Veiga colocou Luís Filipe Vieira na sua lista pessoal de arqui-inimigos, por razões que ainda hoje se mantêm misteriosas. Até rompeu com Figo, que lhe propiciou um dos seus melhores negócios.
Polícia à porta
Logo após a sua saída da Luz, em novembro de 2006, Veiga foi uma manhã acordado por inspetores da PJ, que, com o respetivo mandado, o detiveram e levaram para o Tribunal de Instrução Criminal. Era suspeito de, em 2000, se ter apropriado indevidamente de €4,2 milhões na contratação de João Vieira Pinto pelo Sporting. Saiu com Termo de Identidade e Residência, obrigado ao pagamento de uma caução de €500 mil e entrega do passaporte. A Superfute entrou em insolvência e, em setembro de 2012, na sentença de 1.ª instância, Veiga seria o mais castigado dos quatro arguidos (com os então dirigentes sportinguistas Luís Duque e Rui Meireles, e João Vieira Pinto): dois anos e dois meses de prisão, com pena suspensa, por fraude fiscal, e três anos e nove meses de cadeia, por branqueamento de capitais. O tribunal considerou provado que a empresa Goodstone, com sede em Londres e que o Ministério Público acreditava ser propriedade de José Veiga, recebeu do Sporting aqueles €4,2 milhões, a título de “prémio de assinatura” por parte do então craque, os quais não foram declarados para pagamento de impostos.
Os arguidos recorreram para a Relação de Lisboa que, em julho de 2013, absolveu três deles, Veiga incluído. Sobrou tudo para João Vieira Pinto (hoje dirigente da Federação Portuguesa de Futebol), que, por ordem do acórdão, tinha de pagar €700 mil ao Fisco, para evitar um ano de prisão. Os desembargadores consideraram que, pela transferência em causa, Veiga não recebeu um cêntimo – como, aliás, o próprio sempre alegou, perante a descrença geral.
José Veiga ainda tentou, em Londres, renascer das cinzas como empresário de futebol, procurando adquirir um clube do Championship (a II Liga inglesa), projeto que falhou. Mas estava prestes a surgir o maná do Congo Brazzaville – que foi uma bênção enquanto durou. E agora o conduziu, por ordem do juiz de instrução Carlos Alexandre, à prisão preventiva.