Pode um advogado receber uma notificação para um julgamento num tribunal supostamente extinto? Pode. Pode um mandatário de uma viúva de 86 anos andar desesperado à procura de um processo, de maneira a que a senhora aceda às contas bancárias que tinha com o marido e, por fim, deixe de pedir dinheiro emprestado a familiares e vizinhos para se alimentar a si e ao filho deficiente mental? Pode.
Estas são apenas duas situações de um dia de trabalho – segunda-feira, 22 de setembro – de quatro advogados, que se dizem “clínicos gerais” da profissão (vão a todas) e exercem isoladamente, embora partilhem um 2.º andar de um prédio no centro de Lisboa. Se verificarmos o que de essencial aconteceu a Rui Santos, Paulo Simão Caldas, Maria José Valente e João Viana, no primeiro dia desta semana, fica patente que, com o colapso do Citius (a plataforma informática de acesso aos processos), a reforma do mapa judiciário, da ministra Paula Teixeira da Cruz, se tornou em algo entre o risível e o dramático. Sofrem clientes e advogados – que, além do mais, veem descer a pique o recebimento de honorários. Mas vamos ao concreto e definido, à hora em que ocorreu.
10h05 – ‘Eureka!’
Rui Santos, 62 anos, está há 22 dias a chocar contra uma parede chamada Citius. O advogado tem centenas de processos espalhados pelo País, de Albufeira a Viseu. Quando tenta consultá-los, a plataforma informática devolve-lhe sempre a mesma resposta, a vermelho: “Indisponível.” Mas eis que lhe chega uma notificação por correio (devia ser pelo Citius), “espantosamente” proveniente de um tribunal extinto (o do Trabalho, em Lisboa), a convocá-lo para uma diligência. Para esclarecer o assunto, e dado que o novo tribunal é no mesmo edifício, Rui Santos arrisca um telefonema para o antigo juízo, onde o processo em causa se encontrava. “Juiz 8, bom dia”, atende uma voz feminina, que o advogado identifica: é uma funcionária judicial que conhece bem. E Rui Santos não resiste: “Fala a extinta?” Do outro lado do fio rebenta uma sonora gargalhada. É uma vitória – tem um processo sinalizado.
Agora caem-lhe no “mail” alegações de recurso de uma colega mandatária da parte oponente à de um constituinte de Rui Santos. Primeira questão que o advogado se coloca: assim, como se conta o prazo de 30 dias para as contra-alegações? À cautela, faz a contagem a partir do momento em que recebeu o “mail” da colega, e enviará a sua peça em papel, por correio, invocando ao tribunal “justo impedimento” por impossibilidade de aceder ao Citius. [A legislação atual só valida os processos tramitados eletronicamente.]
“Podemos interpor novas ações, mas não são distribuídas – é mentira o que dizem”, afirma Rui Santos. Tudo o preocupa. O lamento que lhe sai, porém, é o dos processos de responsabilidade parental que tem paralisados, “uma situação muito complicada”.
11h15 – ‘Leve a papelada toda’
O advogado Paulo Simão Caldas, 52 anos, desdobra-se em telefonemas para o tribunal de Sintra. Uma cliente sua está prestes a dirigir-se ao Instituto de Medicina Legal (IML) de Lisboa, para fazer exames que afiram incapacidade física, na sequência de um acidente de automóvel e no âmbito de um processo de responsabilidade civil. O advogado pretende saber algo de essencial: se o tribunal enviou para o IML a documentação necessária que “municie” os médicos que vão examinar a sua constituinte. Não consegue obter resposta alguma e aconselha a cliente a levar consigo a “papelada toda”.
Seguem-se mais telefonemas, agora para um tribunal extinto, o das Caldas da Rainha, que o notificou para um julgamento. Acontece, ainda, que o caso é cível, competência que passou para a Comarca de Leiria. “Apareça, doutor, que o julgamento talvez se realize aqui”, diz-lhe uma funcionária do extinto tribunal das Caldas da Rainha. “Vou fazer 120 km, para estar às nove e meia da manhã nas Caldas, e arrisco, depois, um sprint de 54 km, para chegar a tempo a Leiria”, pondera Paulo Simão Caldas, com ironia.
12h25 – Bloqueio total
Maria José Valente, 46 anos, não desiste. Altamente pressionada por empresas suas clientes, para interpor ações de cobrança de dívidas, desdobra-se em diligências, mas os resultados são parcos. “Os funcionários não sabem de nada – e nem a uma simples ata de uma assembleia de credores consigo aceder”, diz, revoltada.
Como se a montanha de problemas não bastasse, os agentes de Execução encontram-se paralisados, à espera do renascimento do Citius. “Tudo parou, e correm juros para os devedores”, avisa a advogada.
15h15 – Com um drama nas mãos
Desde 26 de agosto que João Viana, 52 anos, não recebe notificações – quando o normal era chegarem-lhe todos os dias. Mas, no regresso ao escritório, tem uma surpresa: aguardam-no duas notificações, logo duas, relacionadas com constituintes seus que solicitam a liberdade condicional. O advogado, no entanto, tem o drama de uma cliente de Santarém por resolver. Trata-se de uma viúva de 86 anos, com um filho de 50 anos, deficiente mental, que não consegue aceder às contas de que era cotitular com o marido. O banco alega não saber o que pertence à senhora e, por outro lado, o que cabe ao filho, na qualidade de herdeiro. O advogado multiplica-se em contactos com o tribunal de Santarém, em busca do processo perdido, a partir do qual pode batalhar por uma autorização judicial que permita à sua cliente o acesso às contas bancárias. Por agora, sem resultados. João Viana sabe que a sua constituinte já pede dinheiro emprestado, para comprar comida e pagar contas domésticas. O advogado, claro, parece não pensar em mais nada…