A solidão embrutece. Vítor Baladinho repete a frase mais do que uma vez, à medida que revisita as duas décadas de companheiros e casas que tem partilhado, desde que chegou a Lisboa, com 25 anos, para fazer a tropa. Aos 47 anos, este professor universitário e colaborador da Fundação para a Ciência Tecnologia vê no aluguer conjunto de casa uma fórmula ideal para abafar a tal solidão e as saudades da mulher e do filho, que moram em Montemor-o-Novo, no Alentejo, e a quem se junta apenas aos fins de semana e nas férias.
No último andar de um prédio remodelado, perto de São Bento, no coração de Lisboa, um dos apartamentos é dividido por dois estranhos, ligados por um amigo em comum e o desejo de viver no centro de tudo, a preços comportáveis. Se Vítor e a jovem Inês Freixo não partilhassem a casa e as despesas, dificilmente conseguiriam estar tão bem situados. Mas há nuances a ter em conta: se para Inês, de 26 anos, licenciada em antropologia e a trabalhar num call center, esta é mesmo a única possibilidade de sobrevivência, para Vítor Baladinho a balança possui outros pesos. “Sozinhos criamos maus hábitos, ficamos deprimidos”, analisa. “Já vivi com homens, mulheres, novos, velhos. A partilha enriquece-nos muito, torna as pessoas menos egoístas. Sou ajudado quando estou doente, troco desabafos quando as coisas correm menos bem. Criei amigos de quem tenho imensas saudades.”
Todos os meses, pagam 225 euros ao senhorio e ainda têm de acrescentar metade das despesas com a água, gás e luz. Contas feitas, sai mais barato do que o quarto onde o professor estava anteriormente, que lhe custava 350 euros por mês, também no centro de Lisboa. “Aqui, já tenho direitos. Estamos em pé de igualdade”, descreve Vítor Baladinho.
O docente já viveu em mais de 20 casas. Em algumas, ficou apenas três meses; noutras, vários anos. “Esta é uma das vantagens de alugar: posso escolher o local e a companhia”, diz. “Se deixar de gostar de alguma coisa, mudo-me.” Desde os tempos da faculdade, em que começou por morar numa residência universitária, Vítor acumula experiências que davam um livro, até no estrangeiro. E de tal forma não se arrepende que, jura, se fosse dono de uma casa em Lisboa e vivesse sozinho, procuraria alguém com quem a partilhar. Falta dizer que não sente, nem por sombras, que essa opção prejudique a sua imagem de professor universitário.
Tal como Vítor Baladinho, são cada vez mais os portugueses que trabalham e dividem casa alugada. Uma tendência comum, nas grandes cidades europeias, e que, entre nós, representa uma das principais mudanças em curso no estilo de vida nacional. Permite desfrutar de uma casa por valores mais baixos, com frequência em locais habitualmente inacessíveis, como os centros das urbes, dividindo não só o valor da renda como todas as despesas associadas. Além, claro, de se evitar a solidão. Muitas das pessoas que optam por esta tendência são solteiras ou divorciadas. A grande maioria assume olhar para esta partilha como transitória – até que surja a oportunidade de morar numa casa integralmente sua. Mas, entre a vida solitária e estas pequenas comunidades, ganha a companhia de outros coarrendatários.
Apartamentos com história(s)
Não se pense, como é evidente, que tudo são facilidades. Vítor, por exemplo, só vive com pessoas conhecidas ou amigos de amigos. Escrutina, primeiro, as características dessa pessoa, os seus hábitos e, só depois, se debruça sobre as condições da casa. Diz que procura evitar ruas movimentadas, observa possíveis fontes de ruído, tenta conhecer os vizinhos. Trabalha muito e, por isso, é-lhe importante conseguir estar concentrado e descansar. “É também preciso um grande poder de encaixe”, avisa. “Eu sou muito versátil. Aceito todas as crenças, religiosas e políticas, e orientações sexuais. Mas, quando pretendo dormir, não quero ter barulho; e é essencial haver um mínimo de higiene e limpeza.” Aqui residem, aliás, frequentes focos de conflito. O professor universitário recorda uma das suas piores experiências, quando partilhou um apartamento em que um dos companheiros era indiano. As três assoalhadas depressa foram ocupadas por mais 23 pessoas e, para onde quer que fosse, Vítor já era reconhecido pelo cheiro a caril, que se entranhara na casa e na sua roupa. “Chegavam a comer no meu quarto e deixavam os pratos no chão”, lembra. Foi a gota de água para pegar na trouxa e voltar a procurar apartamento partilhado. Vítor Baladinho aprendeu, com os anos, a desprender-se de grande parte dos objetos pessoais. Com ele, traz apenas a cama, a secretária e o roupeiro, que se desmontam facilmente. Num abrir e fechar de olhos, muda-se para outra residência.
As casas, no centro de Lisboa, ou são muito pequenas ou demasiado caras. Para Manuel Azevedo, 23 anos, gestor num banco, Lara Duarte, 26, consultora numa auditora, e Sofia Menezes, 25, jurista, a partilha de apartamento é a única solução que vislumbram, nos próximos tempos. Apesar de já trabalharem e serem licenciados, consideram, em uníssono, que não têm condições para viver sozinhos. Ainda por cima quando tentam não abdicar do conforto de residirem perto do trabalho e do centro de tudo. Estão agora na zona do Príncipe Real, às portas do Bairro Alto, onde se concentra grande parte da diversão noturna. Os 310 euros e 270 euros que cada um paga – Sofia desembolsa mais porque ficou com o quarto maior, previamente sorteado – absorvem cerca de 40% dos seus salários. “É muito caro viver sozinho”, avalia Lara. “No limite, até o conseguia, mas prefiro viver assim e ter dinheiro para fazer uma viagem por ano.”
Conheceram-se há dois anos, quando, através de diferentes amigos, acabaram por partilhar a mesma casa. Na altura, existia ainda um quarto elemento – que saiu do grupo. Quando a senhoria desse primeiro apartamento os informou de que tinham de abandonar a casa, começaram logo à procura de outro poiso. Seriam Manuel e Lara a encontrar e a sinalizar o novo ninho. O primeiro onde tiveram direito a contrato de arrendamento. “Quando visitámos a casa [a que habitam agora], percebemos, de imediato, que era o que procurávamos”, conta Manuel. “Como nos pediram logo o sinal, pagámo-lo e só depois avisámos a Sofia – mas já sabíamos que ela ia gostar.”
Com a partilha diária, os três criaram laços e mostram-se amigos inseparáveis. Sofia diz que gosta tanto dos parceiros que tem, agora, as expectativas muito altas. “Como somos todos de fora, acabámos por ganhar bastantes amigos comuns”, relata Manuel. “Ao fim de semana, é frequente recebermos todos cá em casa, que já é conhecida como a pensão do Príncipe Real.” Neste T3 de pé direito alto e privilégio de calçada portuguesa no átrio do prédio, as tarefas são naturalmente partilhadas. Cozinham juntos e fazem os acertos de despesas comuns ao final de cada mês. Quando alguém pretende ouvir música e outro precisa de trabalhar ou quer telefonar, avisa o parceiro, que, de imediato, coloca uns headphones. E, para evitar discórdias com as limpezas, pagam a uma pessoa, que vai lá a casa tratar do assunto por eles. “Queremos é trabalhar e divertirmo-nos muito”, diz, a sorrir, Manuel.
O outro lado da moeda
Apesar de estar agora a ressurgir este modelo de vivência, Jorge Vala, psicólogo social e diretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, recorda que, desde o século XIX, as pessoas se habituaram a partilhar casas. Esta tendência foi, desde sempre, uma forma de amenizar a solidão e, em simultâneo, aliviar as dificuldades financeiras. “Nos anos 1970, por exemplo, era muito frequente as pessoas partilharem casas e quartos independentes”, esclarece Jorge Vala.
Casimiro Ferreira, sociólogo do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, corrobora: “Nesta sociedade, com o individualismo institucionalizado, a partilha de casa por necessidade financeira mostra que as pessoas ainda mais frágeis, com uma deficiente integração no mercado de trabalho, com medo de cair no limbo, na exclusão social, tendem a juntar-se.” Aquele sociólogo identifica no fenómeno o “objetivo de reduzir a insegurança pessoal”, que se torna, até, numa “experiência de crescimento emocional”, demonstrando igualmente, no entanto, que “no fundo somos vulneráveis”, ao contrário das insistentes “mensagens de empreendedorismo”. Onde Casimiro Ferreira quer chegar é a quem vive sob receios de exclusão social e financeira, resignando-se e nada reivindicando. É a “alienação pelo medo”, como diz.
No seu consultório em São Domingos de Rana (Cascais), Andrea Moniz, psicóloga, conhece bem esta realidade. Entre os seus pacientes, são mais de dez os que vivem em casas alugadas partilhadas. A falta de dinheiro e a solidão entram, com frequência, nas equações das consultas. “São, sobretudo, pessoas sós e sem filhos”, especifica Andrea Moniz. “A idade tardia com que saem de casa dos pais e a não opção pelo casamento acabam por fazer crescer o número dos que vivem desta forma. Tendemos, aliás, a amadurecer cada vez mais tarde.” Em muitos casos, são pessoas que fogem dos compromissos. Andrea Moniz descreve: “No princípio, tem piada; hoje, já é bem aceite viver com amigos, mas, depois, chegam a um ponto em que se confrontam com a solidão, mesmo estando acompanhados. Falta-lhes o amor.” Mas há também quem se defronte com novas realidades, como a viuvez ou o divórcio, o que traz problemas financeiros acrescidos. Estes casos são mais frequentes entre mulheres, que, em situações de separação e por norma, ficam com a casa do casal e os filhos a seu cargo. Para amenizar a quebra do orçamento, procuram entre amigas e conhecidas alguém com quem dividir o custo da habitação e as despesas. Mas, alerta Andrea Moniz, “o facto de serem amigas não significa que se consigam dar bem no dia a dia. É preciso haver um grande respeito, paciência e muita maturidade. Quaisquer feitios podem ser compatíveis, até mesmo pessoas mais conflituosas podem dar-se bem. É tudo uma questão de maturidade – que nem sempre chega com a idade”.
Três especiais “mosqueteiros”
“É mais fácil partilhar quando não existem emoções”, atira Cristina Leitão, 40 anos, gestora de marketing e recém-desempregada. “Não se exige tanto do outro, fazem-se menos cobranças. Em família, existem mais regras.” Cristina vive, há oito anos, num moderno T3, nas Olaias, em Lisboa, que lhe custa 270 euros por mês e outro tanto a Carlos Castro, 32 anos, gestor de operações, e a Eduardo Castro, 34, consultor comercial, mais as despesas de água, gás e luz.
Natural de Mafra, Cristina fez o percurso contrário ao habitual, já que, quando se mudou para a capital, com a entrada na faculdade, começou por viver sozinha, em casa de uma amiga da mãe. Foi só mais tarde, quando já trabalhava, que uma colega a desafiou a mudar-se para um apartamento onde se encontravam três raparigas. “Era uma forma mais barata de viver”, recorda. “Como nunca tive problemas com a partilha de espaço, foi muito fácil a adaptação.” Agora, é uma mulher no meio de dois homens. Para que tudo funcione sem problemas, utilizam uma caixa onde cada um deposita entre 30 euros e 35 euros por mês, para pagamento de despesas comuns extraordinárias, como detergentes ou papel higiénico. Sempre que falta algo em casa, quem dá pela falha trata das compras, apresenta o recibo e recebe da caixa. Apesar de a partilha implicar especial respeito, manter o equilíbrio, às vezes, não é fácil. “Há sempre uma pessoa que acaba por fazer o papel de mãe. Nesta casa, sou eu”, diz Cristina.
Os horários diversos minimizam as diferenças. Depois, Carlos e Eduardo arranjaram namoradas, o que os afasta mais de casa. De resto, partilham quase tudo. “Podemos comer à vontade o que cada um tem, mas, claro, não lhe acabamos com a comida”, exemplifica Eduardo. Ao jantar, é frequente ligarem uns aos outros para saberem se tomam a refeição juntos. E nem a televisão da sala chega a ser motivo de discórdia, já que adoram fazer zapping em conjunto. “Quando acontece algo que nos desagrada, falamos com o outro, mais cedo ou mais tarde”, diz Cristina. “Isso é importante. Até porque a arrumação, as despesas, a partilha das manhãs nas casas de banho e os namoros costumam ser as principais fontes de conflito. Aqui superamos tudo bem.” A rir, Cristina conclui: “Somos uma família não convencional.”
Babilónia na Net
“Procuro senhora ou estudante, com ou sem filhos, para partilhar casa comigo e com a minha filha. A renda é de 320 euros.” No OLX, um popular site de classificados gratuitos, caem todos os dias novos anúncios de quem busca casa ou parceiro para a partilhar. Há de tudo. Quem viva sozinho e procure alguém com quem dividir as despesas. Quem esteja mal e procure uma companhia para se mudar para outra casa alugada. Em crescendo, surgem sites especializados no aluguer de quartos e apartamentos, que se juntam aos de classificados generalistas. A par do passa palavra entre amigos e conhecidos, é aqui que decorre grande parte dos contactos. O mercado do arrendamento continua a florescer – bancos e proprietários em dificuldades tentam escoar casas a qualquer custo. Só as cauções e fiadores, cada vez mais na moda, estão a condicionar um crescimento mais acentuado. Por isso, a partilha de casa alugada apresenta-se como uma solução ideal. E bem mais simpática do que os tradicionais arrendamentos de quartos, onde as pessoas têm todas as despesas incluídas no valor da renda, mas onde o direito à utilização dos espaços comuns, como casas de banho, cozinha e sala, estão limitados.
Susana Silva, 34 anos, empregada de limpeza e autora daquele anúncio no OLX, rema contra uma maré azíaga. Desde que colocou o pedido, em junho do ano passado, recebeu várias respostas, mas continua à procura de uma solução. As débeis condições da casa alugada onde se encontra e o facto de viver com uma filha e um cão parece não ajudar. “Tive um brasileiro, de 45 anos, ainda uns meses, mas foi-se embora, quando o meu namorado começou a estar cá mais vezes. Não sei se ele tinha outras intenções…” Aflita com as despesas e a recusa de fazer obras por parte do senhorio, Susana procura agora alguém para seguir para outra casa, em São João da Talha (Loures), onde vive e de onde é natural. Para compensar o facto de não estar sozinha, o que torna a partilha menos fácil, mostra-se até disposta a cozinhar e a tratar da roupa da parceira ou parceiro que lhe apareça. E não receia partilhar casa com desconhecidos? “Tenho medo é de passar fome”, desabafa.
Duas casas numa só
Sem as despesas repartidas, João Brás não teria outra hipótese senão alugar um quarto modesto. Aos 24 anos, este operador de chamadas num call center já viu um aluguer ser recusado por falta de fiador. A mãe tinha-se oferecido, mas a senhoria não considerou o seu salário suficiente, para lhe dar garantias quanto ao pronto pagamento da casa. Por isso, este jovem da Póvoa de Varzim sabe bem o que custa chegar a uma habitação. Vive agora numa modesta moradia no Zambujal, arredores de Carcavelos (Cascais), com a namorada, Vera, e associado a outra pequena casa, onde moram o amigo Daniel e Marta, a companheira. Embora vivam em duas casas diferentes, ambas têm acessos e pátio comuns, pelo que os dois casais acabam por dividir, também, a sala e a máquina de lavar roupa. João e Daniel já tinham partilhado uma outra casa, em São Domingos de Rana. Mas um dos companheiros da partilha saiu e, como queriam viver com as namoradas, mudaram-se para aqueles T1, que lhes custam entre 200 euros e 300 euros por mês. A amizade antiga reforçou-se ainda mais. Têm uma horta comum e vivem uma boa parte do tempo em conjunto. Daniel Picolo, 25 anos, também trabalha num call center, e Marta Silva, da mesma idade, só estuda. Já Vera é fotógrafa, mas sem emprego. Prepara-se, aliás, uma reviravolta. João apronta-se para se mudar, uma vez mais. Vera vai regressar a casa dos pais e o namorado colocou um anúncio à procura de companheiro para dividir apartamento alugado no centro de Lisboa, onde trabalha. Acabou por descobrir um amigo na mesma situação, pelo que estão agora os dois em busca de casa. Daniel e Marta, esses, mantêm-se, para já, no Zambujal, com a perspetiva de receber um novo casal. Esta vida é mesmo feita de mudanças.